192 - Quarentena
Para cá do egoísmo o mundo é cálido, o tempo de ócio, a vida parada a uma esquina. O medo ainda está mas habituei-me a ele. Ainda não somos íntimos e deixei-o até agora preso ao televisor que só transmite a mesma coisa até à náusea. Reabrirão os templos e Deus, que lhes ficou sempre à porta, nem precisa dizer que não vai. Nem a missas nem a procissões com santos fumigados e crentes a guardar todas as distâncias. O medo disse que ia mas desistiu logo que todos se convenceram que desconfinar era abrir a gosto todas as fronteiras. – Há quanto tempo te não via! Dá cá um beijo ao avô e um abraço ao tio. A seguir, já penduradas as máscaras como enfeite abaixo do queixo, esquecidas as marcas do resguardo, juntinhos como dantes, mais sequiosos de pele, de pelo, de língua sem ser estufada, reatam os rituais antigos e são agora bárbaros a comer carne crua. Ai que saudades tive de ti! Nem imaginas como aparecias nos meus sonhos, como saías sem roupa e vinhas ao meu escuro desafiar-me para jogos de pancada onde qualquer murro era beijo e qualquer beijo avanço até ao alto da cratera. Depois vinha-me a sede de fogo e …zás, ardia na fornalha até voltar a ser só cinza. Para cá do medo o mundo volta a saber a nada.