COVA RASA

Era uma criança muito bonita. Quando me candidatei ao emprego fiquei encantada com tanta formosura. Laila tinha cinco anos e doces olhos azuis. Parecia tão mimosa que rezei para conseguir aquela colocação. Passei por uma entrevista tranquila. A mãe de Laila, fisicamente muito parecida com a filha, me passou confiança e sensatez. Fiquei em torno de uma hora naquela casa e adorei tudo. A criança perfeita, pais lindos, atenciosos e educados. Seria tão bom se eu conquistasse o emprego de babá de Laila! Resolveria muito dos meus problemas. Eu ficaria muito feliz de viver naquela casa enorme e confortável. Na hora de ir embora, Laila fez questão de me dar um abraço bem apertado e nunca me senti tão acolhida.

A resposta veio em uma semana. Eu estava empregada! Juntei minhas roupas em duas mochilas e no dia combinado assumi minhas funções de babá da Laila.

A família morava numa grande casa em um bairro afastado do centro. Havia outras residências no condomínio, mas o contato com a vizinhança era mínimo. No início estranhei. Parecíamos tão isolados! Porém, logo me vi às voltas com os cuidados de Laila. Os pais saiam cedo para o trabalho e nós passávamos o dia todo juntas. Laila foi um amor nos dois primeiros dias.

Até que ela resolveu matar um gato.

Eu estava preparando o almoço com a porta da cozinha aberta para o vasto jardim. De repente olhei para o lado e deparei-me com Laila, tão angelical no seu vestidinho cor-de-rosa, segurando um gato branco pelo pescoço. Dei um grito e soltei a colher que caiu no chão espalhando comida. Os olhos de Laila, tão frios, e o gato de língua de fora me deixaram muito assustada. O rosto de Laila era uma máscara de maldade. Nem parecia a menina fofa que eu aprendera a amar.

— Laila, o que você fez?

Ela sorriu e largou o bicho no chão. Eu nunca havia visto aquele gato na vida. Devia ser dos vizinhos. Eu queria muito que Laila respondesse que não tinha nenhuma relação com a condição do bicho.

— Eu o matei.

A confissão feita em tom frio me chocou mais ainda. Tentei fingir serenidade. Laila parecia possuída por um espírito maligno e eu não podia mostrar para ela o quanto aquilo tudo era terrível para mim.

— Por que você fez isto com o gato, Laila?

— Não gosto dele.

Fiquei sem ter o que dizer. Olhei para o gato morto aos pés da criança. De uma hora para outra os olhos azuis se tornaram doces. Outra garota. Eu permanecia pasma.

— Bem, temos que enterrá-lo.

Laila pulou por sobre o gato, passou por mim ignorando-me totalmente e foi para a sala assistir televisão. Fiquei estática por alguns segundos, meio catatônica. Eu teria que enterrar o gato. Nunca tinha passado por uma situação semelhante na vida.

Achei uma pá na garagem e fiz uma cova para enterrar o bicho. Quando terminei, meia hora depois, eu sentia uma bola dentro do estômago. De repente, Laila e aquela casa me pareceram muito sinistras.

O restante da tarde foi tranquilo, mas não consegui mais ficar à vontade com Laila. Ela, contudo, se portou normal o tempo todo. Almoçou bem, dormiu o soninho da tarde, andou de bicicleta pelas ruas do condomínio, sempre sorrindo e exalando doçura. Era tudo muito surreal.

Os pais chegaram no horário habitual e aproveitei o momento que a mãe de Laila estava na cozinha para contar o ocorrido. Ela me escutou atentamente enquanto tomava um copo de suco de laranja. Era possível escutar os gritinhos felizes de Laila brincando no outro cômodo com o pai.

— Posso entender seu desconforto ─ afirmou ela me olhando fixamente. — Peço que não se assuste. Laila é assim mesmo.

— Assim mesmo? Como assim?

— É um traço da sua personalidade ─ a mulher baixou o tom de voz. — Ela não gosta de animais. Da outra vez aconteceu o mesmo com um filhote de cachorro que veio, por engano, parar no nosso jardim.

Arregalei meus olhos. Achei que estivesse entendendo tudo errado.

— Ela é uma boa menina ─ a mãe de Laila sorriu. — Contamos com a sua discrição.

Meu Deus, pensei. A criança é psicopata.

Pensamentos conflitantes passaram velozes pela minha mente. E se eu pedisse para ir embora? Não, eu não podia. Estava cheia de dívidas. Precisava aguentar firme. Laila não era uma garotinha ruim. Era dona do sorriso mais lindo do mundo, a despeito de ter assassinado dois animais.

— Que Deus me ajude.

*

Aquele primeiro mês passou tão rápido e com tantos afazeres que quase me esqueci dos feitos de Laila. No mais, ela vinha se portando muito bem, como uma criança normal. Laila gostava de me presentear com belos desenhos que fazia com seus lápis de cor. Líamos histórias juntas e depois ela dormia no meu ombro igual um anjo. Eu queria acreditar que aquilo que eu presenciara nunca mais iria se repetir.

O próximo golpe veio em um dia à tarde. Os pais de Laila precisaram fazer uma viagem a negócios. Eles voltariam somente no dia seguinte. Mas não me importei. Laila vinha se comportando tão bem que a morte do gato parecia algo surreal. Eu decidira – para meu próprio bem – esconder aquele fato em um canto obscuro do meu cérebro. Descobrimos, no jardim, um enorme formigueiro. Arrepiei-me só de ver aquelas formigas graúdas. Laila, ao meu lado, disse:

— Odeio estes bichos.

Estremeci. A voz de Laila saiu algo... tenebroso. Virei para o lado. Os olhos dela estavam parados e a boca era um risco fino. Fiquei sem saber como agir.

— Er... Elas não causam mal, Laila.

Foi tudo muito rápido. Com uma força que me surpreendeu, Laila me empurrou sobre o formigueiro. Eu caí de cara sobre os insetos em meio a um grito de susto. Formigas entraram na minha boca, olhos e morderam minhas bochechas. Fiquei em pé, batendo no meu rosto com as mãos, tentando afastar os bichos dos meus braços, cuspindo as que entraram na minha boca. Foi horrível. O tempo todo Laila riu de mim. Uma risada maldosa e asquerosa.

Então um véu vermelho cobriu meus olhos. Enlouqueci. Desferi um tapa tão forte ao lado da cabeça de Laila que ela caiu. Somente percebi o que tinha feito quando o surto passou e vi que a pedra que Laila havia batido a cabeça se tingia de sangue.

— Laila, levante.

Suspendi Laila pelos ombros, porém ela parecia uma boneca de pano. O ferimento ao lado da cabeça era feio. Feio e fatal. Sacudi-a algumas vezes aos berros:

— Acorda, desgraçada! Acorda!

Fiquei em pânico. Meu corpo gelou. Não senti mais as picadas das formigas. Com a mesma pá que havia enterrado o gato, fiz um buraco para Laila e a pedra ensanguentada. A sepultura foi no limite com a outra propriedade, afastada da casa.

Eram apenas quatro horas da tarde. E eu tinha o cadáver de uma criança enterrado no jardim.

*

Fiquei sentada no degrau da varanda, atordoada, e a noite chegou. Meus olhos não desgrudavam da pequena sepultura. De repente, me dei conta que era noite e levantei para acender a luz. Estava sozinha, com medo e pasma com o que tinha acontecido. Eu não sabia o que fazer. Pensei em ligar para a policia, correr até o vizinho mais próximo, fugir. Me matar.Mas não fiz nada. Continuei sentada, em estado catatônico, tão gelada que parecia que a morta era eu.

Algo se moveu próximo à sepultura de Laila. No início pensei que fosse algum animal e levei um susto. O movimento cessou e então achei que fosse impressão minha. Eu estava perturbada demais. Uns dois minutos depois aconteceu a mesma coisa. Algo estava se movendo na cova rasa de Laila. Fiquei em pé. Não sabia se fugia ou ia até lá conferir o que era.

Permaneci no mesmo lugar.

Uma mão saiu de dentro da terra. Não me dei conta na hora o que era aquilo. Os dedos romperam a terra e em seguida apareceu a mão inteira. Meu coração quase parou. Depois surgiu a outra mão. Ambas as mãos se ergueram em direção ao céu como se quisessem pegar alguma coisa. Lágrimas correram pelo meu rosto inchado pelas mordidas das formigas.Minha voz ficou presa na garganta. Achei que fosse um pesadelo. Mas não era. Eu estava bem acordada.

Depois das mãos terem rompido a terra, a cabeça loira de Laila surgiu. Ela sentou, ereta, e balançou os cabelos de um lado para o outro para tirar a sujeira da cabeça. Então olhou para mim.

Nossos olhos ficaram fixos um no outro por alguns segundos. Laila havia virado um zumbi. Levantei pronta para fugir, porém meus joelhos estavam fracos demais para me sustentarem tamanho meu medo. Caí no chão, sem ar e à beira de um ataque de nervos. Olhei para frente outra vez. Laila chutou a terra que voou para cima e para todos os lados. Eu observava a cena bizarra. Parecia que ela estava se divertindo ao fazer aquilo. Acho que escutei uma gargalhada. Havia vários sons ao meu redor. Pássaros, um cachorro latindo ao longe, meu coração descompassado. E a gargalhada de Laila.

Então ela se virou de lado e ficou em pé. Eu, caída no chão, sem forças para me levantar, assisti Laila tirar a terra do vestido, da pele e dos cabelos. A ferida agora havia virado uma massa seca de sangue. Eu devia ter fugido. Laila era uma morta-viva.

A criatura (sim, agora Laila era isto) veio caminhando até mim. Um andar meio arrastado, mas firme. Laila sorriu e mesmo com as bochechas sujas de terra eu pude enxergar suas covinhas. Mas aquele sorriso... Era como se o diabo tivesse entrado naquele corpo. Tentei levantar, contudo não consegui ficar em pé outra vez. Uma fraqueza enorme tomara conta do meu corpo. Uma tonteira, um enjoo, eu me sentia doente. Ao mesmo tempo a coisa vinha se aproximando. Laila era tão bonita quando era viva, mas agora... Agora ela era um monstro que caminhava na minha direção e que chegava cada vez mais perto. As mãozinhas se crisparam como se ela quisesse me esganar. Ah, mas eu tinha mais força que Laila. Ela era uma criança e eu, uma mulher adulta. Laila não me venceria ainda que eu estivesse me sentindo tão mal.

Ela me sorriu e eu reparei nos dentes sujos de terra. Eu estava completamente sozinha com Laila. Ou no que ela se transformara. Então ela deu uma gargalhada, uma coisa sinistra e maquiavélica. Estremeci. Não, eu precisava me erguer. Precisava sair daquele lugar antes que ela chegasse perto de mim. Eu devia ter chamado a polícia desde o início, antes mesmo de enfiar Laila na cova rasa.

Uma paulada na cabeça me deixou mais zonza do que eu já estava. Caí para o lado e me vi deitada no gramado olhando para as estrelas. Minha cabeça doía e encostei a mão na testa. Estava pegajosa. Era sangue. Gemi. Laila cresceu ao meu lado. Reparei que ela segurava um pedaço de pau na mão. Foi aquilo que me atingira. Se eu estivesse no meu estado normal, não teria sido abatida daquele jeito.

— Laila, por favor... – consegui murmurar. — Me perdoe.

Ela apernas me olhou com aqueles olhos que antes eu achara tão lindos. A última coisa que vi foi aquele pedaço de pau firme nas mãos dela.

— Morra.

*

Dei um cutucão com meu pé na cabeça dela. A babá sangrava pelo nariz e pela boca. Morta. Feito o gato. Como o cachorro que arranquei a cabeça. Tipo meu primo que eu empurrei no lago aquela vez. Ops, mas ele não morreu. Meu tio conseguiu salvá-lo antes. Uma pena. Minha cabeça doía, acho que tenho terra na garganta. Preciso ligar para meus pais. Acho que eles estão longe, mas serão os únicos que poderão me salvar (de novo).

Peguei o celular da babá que estava sobre o sofá. Minha mãe atendeu logo.

— Oi, mamãe. Eu fiz de novo.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 23/05/2020
Reeditado em 23/05/2020
Código do texto: T6956198
Classificação de conteúdo: seguro