Felizes os convidados - CLTS 11

Era um domingo qualquer, como qualquer outro domingo numa cidadezinha encravada na serra, típica das cidades de Minas Gerais. Dia de missa, uma das poucas atrações da população, pobre em economia e em opções de lazer e entretenimento. Era costume sagrado das famílias se deslocarem de seus casebres dos vilarejos para irem para a igreja que ficava na colina mais alta da cidade, sua única torre ficava mais alta do que qualquer coisa naquelas estâncias.

Na porta da igreja, uma mulher franzina encontrava-se sentada com um cachorro esmaecido no colo. Estava muito fraco e mórbido, talvez tivesse calazar. Ela, magra e fraca tal como o cachorro, estava toda assanhada e com enormes olheiras. Uma rajada de vento passa bem forte, arrasta as folhas secas da rua e faz a porta da igreja bater com força contra a parede.

“Felizes os convidados para a ceia do senhor”

- Chegou a hora, vou pegar a hóstia, fique aqui Jeremias, volto já minha coisinha fofa, você ficará bem, tá.

Ao som de um violão desafinado e de um piano melancólico, um coral de senhoras de meia idade cantavam:

“Eu quis comer esta ceia agora

pois vou morrer e já chegou minha hora

Comei, tomai, é meu corpo e meu sangue que dou

Vivei no amor, eu vou preparar

A ceia na casa do pai.’’

Podia-se ouvir nitidamente vozes engasgadas, roucas e fora de tempo. Parecido com aquelas vozes de tia fumante. Tereza pega a hóstia, faz o sinal da cruz e caminha de volta para o seu lugar, a música seria cantada ainda por cerca de longos 3 minutos, até que todos que pudessem, recebessem sua hóstia.

Tereza chega na porta da igreja, se abaixa e fica de joelhos por alguns segundos do lado do cachorro. Sussurrando, ela rezava palavras inaudíveis, abre os olhos, faz um carinho na cabeça do cachorro, enquanto que com a outra mão ela retirava a hóstia da boca. Jeremias ficou contente com o carinho e abre a boca mostrando os dentes, o momento ideal para Tereza pegar a hóstia e introduzir na boca do animal. Um senhorzinho quase cego que estava do lado bodeja: “eu não acredito no que estou vendo, essa pecadora dando o pão do senhor Cristo para esse animal pulguento e doente”

Todos que estavam do lado começam a observar a situação e de repente a igreja toda começa a cochichar num burburinho só. A fofoca chega até o coroinha que de imediato vai correndo falar com o padre. O padre fica em choque, faz um sinal para o coral parar de cantar e vai em direção ao microfone.

- Meus irmãos, estou muito entristecido pelo o que acabei de presenciar, com certeza o Senhor não se agradou com isso. É o cúmulo, quem já se viu dá a hóstia para um animal; pobre, inocente e selvagem, ele não entende nada da palavra de Deus. Ele não tem culpa, coitado. Mas sua dona sim! Pelo poder concedido a mim por Deus, declaro essa filha de Deus excomungada da igreja católica e seu cão deverá ser sacrificado.

A igreja começa a entoar gritos de ordem: - pecadora! - Endemoniada! - Mate esse animal! - Jesus tá voltando! - Vai ferver no fogo do inferno sua vadia!

A mulher não se intimidou com a situação, pelo contrário, ela começa a andar no corredor central da igreja em direção ao altar, enquanto todos observam ela com cara de julgamento. Ela grita: - eu mereço defesa e eu posso me explicar. Ela pega o microfone da mão do padre e grita: - Vocês são uns fudidos da porra, São Francisco deve tá se revirando no caixão nesse momento, vocês se acham melhores que os outros animais, mas vocês não são nada. Pobre do meu cachorro, tadinho, ele tá doente e merece o pão da vida.

Enfurecido e sem pensar duas vezes, o padre empurra a mulher do altar, que cai entre as cadeiras dos fiéis, raivosos e motivados pelo padre, começam a bater nela vorazmente. O cachorro que estava quase morto, abre os olhos e começa a latir, se levanta desesperado e tenta procurar sua dona, seus olhos começam a ficar vermelhos e seus pêlos extremamente eriçados, ele corre em direção ao altar e vendo o padre, salta sobre ele, mordendo seu pescoço. Foi pego de surpresa e não consegue se defender, enquanto os fiéis se ocupam em maltratar Tereza, seu cachorro morde o padre em diversos lugares e diversas vezes. Seu rosto ficou todo coberto de sangue, e só então os fiéis largam a mulher e vão socorrer o padre enquanto Tereza, toda ferida, se aproveita da situação e tenta fugir, derramando sangue por toda a igreja.

Sem explicação,o sino começa a tocar em badaladas não rítmicas, as paredes começam a tremer e o chão se abre no meio da igreja. O lustre de velas cai no altar, em cima do padre e dos que o ajudam, como se fosse álcool, o fogo começa a se espalhar pelo sangue que foi derramado naquela igreja, se o vinho é o sangue e vinho tem álcool, talvez isso explicasse. Jeremias começa a uivar, enquanto a torre da igreja vem abaixo e bloqueia quase por completo a única porta da igreja, ficando apenas um pequeno espaço que mal daria para passar uma criança desnutrida. Tereza consegue sair, mesmo fraca, mas com sangue nos olhos e raivosa, obstrui a saída com o sino que havia caído, tinha cerca de 80 centímetros de diâmetro e deveria pesar uns 300 quilos, era quase impossível ela ter feito aquilo, mas seu desejo por vingança e sua vontade que todos ali morressem talvez fez com que o diabo lhe desse forças. Fugiu, correu feito louca e sem destino.

As pessoas que moravam nas partes mais baixas e distantes começam a observar aquela nuvem de fumaça, - não dá para ver a torre da igreja. De fato não dava, agora, sequer existia, não tinha mais igreja, só cinzas e ruínas. Uma estátua do profeta Isaías feita pelo artista Aleijadinho que se encontrava em frente a igreja, parecia ser a coisa mais viva que se encontrava naquele lugar. Aqueles que não tinham ido para missa, começam a chegar no local e não conseguem entender o ocorrido, tentam encontrar entre os escombros sinais ou resquícios de vida, nada encontravam. De repente houvesse um barulho entre os destroços. - Estou ouvindo um latido, vem dali, debaixo daquela pedra!

Anos depois

Das cinzas se reergueu, no lugar da antiga igreja foi construída uma nova igreja, de São Francisco, e um memorial em homenagem aos mortos naquele incidente. Em frente a igreja não se tem mais figura de santo ou profeta, ao invés disso, uma grande estátua de um cachorro, o único sobrevivente. Contrariando todas as recomendações do Vaticano, aquela agora era a única igreja do mundo a conceder o pão da vida para cachorros. Donos desfilavam todos os domingos com seus Chihuahuas, bulldogs, Rottweilers e os cães dos mais diversos pedigrees nos recintos da igreja, pasmem, até batizados eram realizados, quem quisesse batizar seu bichinho teria que desembolsar um dinheirão. Não se estranharia uma mobilização para que outros animais também pudessem comer da hóstia, divorciados e doentes mentais ainda não foram agraciados, por enquanto, só os convidados.

Juan Bercles
Enviado por Juan Bercles em 23/05/2020
Reeditado em 24/05/2020
Código do texto: T6956151
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.