O Preço - CLTS 11
Eduardo já estava pronto, escolhera a melhor roupa, olhava ansioso o relógio. Leonel disse que estaria chegando às 21 em ponto. Espalhadas pelo casebre com cheiro de mofo e fumaça de cigarros, diversas esculturas inacabadas e algumas telas criavam uma atmosfera de decoração abstrata. Na geladeira velha de Eduardo, apenas uma garrafa d`água e um pedaço de coxinha, bênçãos de uma quarentena forçada.
Mas havia uma peça que estava embalada, uma encomenda do amigo Leonel para seu patrão, uma estátua de 1,5 m de altura feita de gesso. Pedido de um cliente que ele conheceria naquela noite, no ato da entrega, a promessa era de excelente pagamento. Isso era algo inusitado, jamais havia acontecido, seu trabalho nunca obtivera o devido reconhecimento. A forma como a escultura deveria ser feita e os materiais a serem usados foram lhe repassados nos mínimos detalhes acompanhados de um desenho feito pelo próprio contratante.
Eduardo estava surpreso com o resultado obtido, não havia sido um trabalho qualquer, em sua opinião, era um trabalho... sinistro, estranho. Exótico, para causar uma boa impressão. Era a imagem de um ser híbrido, de aparência mítica. Queria entregar logo a peça pra se sentir mais à vontade em casa. Seu processo criativo passava pelo crivo da intuição desde sempre e ele sentiu algo incomum enquanto suas mãos a criavam.
Alguém bate à porta. Eduardo vira sua dose de conhaque. Meia garrafa se fora na espera de Leonel.
- Eae seu porra, demora do cranco. Pensei que tu num vinha mais. – falou Eduardo.
- Relaxa a piriquita ae, oh, nobre artista! Hoje será um dia inesquecível pra você... e você vai me agradecer, se tudo der certo. Tu vai sair dessa miséria. E entrar em outro mundo... sair desse buraco. Tu sempre foi “sangue no olho”, bicho solto.
- Mano, se isso vai acontecer eu num sei, só sei que se tu não chegasse logo, eu ia sair daqui chapado. Ia bezerrar em cima do teu patrão. Quando eu não vomito com Dreher, eu me cago.
- Conseguisse fazer a parada? Pelo tamanho daquele embrulho, deve ter conseguido. Cê é foda, man. O que tu achou da erva que o teu melhor cliente até agora mandou como incentivo? Da boa né? Meu amigo, em tempos como esses, só essa maconha já pagaria o serviço. Essa veio da Holanda. Tem um beck aí ainda?
- Hômi, eu fiquei trilouco. Tenho mais não, torrei tudo no mesmo dia que tu me desse. Se eu não me inspirasse com esse “chá”, ia parar de esculpir e pintar pra rodar a bolsinha. Da boa mesmo, porra. Pensei que ia ter uma hemorragia ocular e num ia conseguir fazer nada, minha boca ficou tão seca que nem água batia... as mãos tremendo e eu vendo coisa...
- Pode crer.
- Mas terminei tua encomenda de primeira, segui à risca as instruções. Espero que tenha ficado como ele imaginou, sei lá. Peguei viagem fazendo essa estátua, man, parece coisa de oferenda. Esse cara é macumbeiro?
- Eu diria que quase... só que um pouco mais sofisticado. Ele é gringo, essa galera é meio louca. Mas a vida é uma viagem mesmo, nêgo véio... tu num sabe da missa um terço... Vai depender só de tu mudar isso... Eu mudei... e olha agora como eu tô: tô bem de vida, dinheiro num falta... Tudo tem seu preço e inclusive nós também temos o nosso preço...
- Eu pago 5 conto pra te traçar, fila da puta, e ainda tá muito.
- Qué isso, jovem. Eu ainda tô gostosão.
Ambos riram.
Leonel e Eduardo cresceram na periferia de Maceió, criaram um forte laço de amizade, estudaram juntos o ensino médio e depois passaram 10 anos sem contato até que por acaso se viram no centro de Tanque D` Arca, uma cidadezinha do interior. Eduardo tentava vender algumas de suas obras numa feira livre, imagens de santos, carrancas, telas à óleo e porta-incensos, e se surpreendeu ao ver o velho amigo trajando um terno caríssimo e dirigindo uma Porsche Cayenne. Pelo que Eduardo lembrava dele, seu último emprego havia sido como vendedor numa loja de sapatos. Desde que se reencontraram e Leonel se prontificou a ajudar o amigo eles ainda não haviam conversado bem sobre como Leonel vinha ganhando a vida. Só sabia que ele estava trabalhando para uma empresa alemã.
- Eae, como é que tu tá vivendo, heim? Com o comércio parado e tu sem emprego fixo, vendendo bibelô, tá ruim as coisas pra tu, né? Deve tá quase de esmola, tu tá só o osso. Artistas de verdade só se lascam nesse país. Pra dar certo na Arte, não precisa ser talentoso, tem que ser oportunista, man. As pessoas se iludem com os enfeites.
- Tô como Deus quer né mano... as coisas sempre se...
- Deus quer que você se foda. – Leonel o interrompe.
- Qué isso, man. Tu é ateu agora, é? Não acho que foi Deus que botou esse vírus nas ruas ou os políticos em seus cargos. Embora eu concorde que Ele infelizmente inaugurou esse cabaré... Ele deixou que a gente decidisse. O Homem estragou tudo.
- Então, tu acha que Deus te quer num lugar como esse aqui? Nessa fedentina? Sem nada pra comer, esmolando um auxílio do Governo? Um cara com o talento que tu tem, se fudendo pra nada? Pra não ter nem onde cair morto? Mano, eu vi o cachimbo no chão da sala quando eu entrei... tu tas no crack ainda... não acredito... tu merece muito mais... mas o Deus que nos forçaram a adorar tá pouco se fudendo pra isso. Ele quer que tu se ajoelhe e implore. Só que Ele tem um concorrente... e ele faz melhor que Ele...
Leonel se conteve. Estava falando muito.
As palavras de Leonel fizeram Eduardo refletir um instante. Muitas vezes sua fé fora questionada, o distanciamento da família por causa das drogas e a carência por um abrigo o tornaram uma pessoa solitária e reclusa. Sua Arte era uma catarse que nada lhe trazia além do básico para não morrer de fome, isso quando trazia. Seus poucos colegas não sabiam nada sobre sua vida pessoal, mas percebiam que ele nunca tinha histórias pra narrar, nenhum assunto que demonstrasse que alguém o esperava além dali. Por vezes, Eduardo amaldiçoou o Deus que conhecia. Dizia para si que faria qualquer coisa pra deixar de ser um fudido.
- Pode crer, Léo. O mundo jaz no maligno... e pra fuder tudo, o Homem é fraco por natureza... tô assim porque sou fraco...
- O mundo “é” do maligno. Eu não acho, eu tenho certeza. Ou é do que convém chamar de Mal, tudo se trata de interesses. Mas se for pra viver adorando um bom Deus sem ter nada aqui nessa existência, prefiro servir a quem pague melhor. Eis a questão do “termos nosso preço”. É o valor próprio. Seu acordo com você mesmo, tá ligado.
- Tipo um contrato... Mas não se pode servir a dois deuses...
- E é por isso que eu tô aqui. Pra te fazer acordar desse sonho de servidão. Essa é uma chance única... eu sugiro que quando o momento chegar, você não dê pra trás. O chefe adorou seu trabalho pelas fotos, como eu disse, só vai depender de você. Tá na hora de deixar de comer miojo pra comer comida, viado.
- Valeu, meu velho. Só agradeço essa força.
Eduardo pegou a estátua e eles caminharam pela rua lamacenta até chegarem no carro de Leonel, que naquele momento era de um modelo popular. Antes de entrarem, uma voz infantil cortou o ar frio e reverberou no ouvido de Eduardo. Aquela voz era de uma pequena conhecida.
- Boa noite Seu Duardo... a paz no Senhor! – a menininha de casaquinho amarelo que se dirigira a ele sempre falava daquela forma, era filha de uma vizinha. Só que sua voz soara um pouco abafada, efeito da máscara rosa que cobria metade de seu pequeno rosto.
- Boa noite, Dona Mirelinha, tu tas sozinha aqui é mulher? Cadê sua mãe?
- Ela tá ali na casa da tia Vane, já tá vino pa gente ir pa casa. Ponde é que o sinhô vai? Puquê o sinhô tá sem máscara? Num quero que o sinhô fique doente não.
- Vou ali vender um bonecão daqueles que tu viu lá em casa. Se eu vender, eu prometo que vou comprar uma Barbie pra tu. Num se preocupe que o tio num vai ficar doente não.
- Tá bom... se tivé a que tem um carro rosa, o sinhô compra?
- Com certeza! Dona Mirelinha, A Princesa! – Eduardo lhe soprou um beijo.
A menina sorriu.
Uma mulher se aproxima dela e pega sua mão. Ela carrega um balde na cabeça. Cumprimentou Eduardo com um sorriso tímido, que acenou enquanto as duas subiam a rua. Leonel estava de pé ao lado do carro e também as observava. A mulher era bonita.
- Conquiste a filha... coma a mãe... leve bala...
- Deixa disso, jacaré. A mulher é viúva. Essa menininha dela é inteligente demais, 6 anos, gosta de me ver trabalhando lá em casa. Adoro ela... se eu tivesse tido um filho eu...
- Tu ia tá era mais fudido agora. Vamo e deixa de frescura que o chefe tá esperando. – Leonel antes de sair olha com atenção na direção de mãe e filha que já entravam em uma pequena casa sem muro há cinquenta metros de onde estavam. Seu rosto adquiriu uma expressão pesada, seus olhos se mantiveram fechados e giraram nas órbitas por alguns segundos... antes de ele entrar e dar a partida. Leonel estava estranhamente lambendo os lábios quando acionou a ignição.
- Como é o nome da mãe daquela menininha mesmo? – Leonel pergunta.
- Verônica. Já quer furar meu olho é?
- Nada. Curiosidade, só. Verônica, mãe da Mirella...
Eles viajaram por duas horas ao som de música clássica. Uma chuva forte caiu durante o percurso. Eduardo, dormiu por todo o trajeto.
O conhaque tinha batido no estômago vazio.
***
- Acorda ae, cachaceiro véio. Tamo chegando já. - Leonel balança Eduardo.
Pela janela do carro podia-se ver frondosas árvores margeando a estrada de barro por onde seguiam. Eucaliptos gigantes cobriam uma lua cheia que ascendia continuamente.
- Onde é que a gente tá, man? Dormi pra caralho.
- Tamo em Comendador Negromonte, numa das fazendas do patrão. Espero que o negócio aqui seja rápido. Frio da porra.
O carro parou quando chegaram a uma porteira. Um guarda abriu a cancela e eles desceram.
- Vamo andando daqui. – Leonel falou.
Eles caminharam por uma passarela decorada com inúmeros duendes e sapos nas beiradas, um gramado perfeito rodeava uma mansão que brilhava ao fundo sob luzes alaranjadas vindas de lâmpadas rústicas. A arquitetura do imóvel se remetia ao século passado, os dois andares lhe davam um aspecto imponente. Eduardo segurava a estátua em um dos ombros.
- Caralho, esse teu patrão tem dinheiro, visse.
- Dinheiro é pouco. Ele tem poder... muito poder...
Não chegaram a tocar a campainha, a porta se abriu quando se aproximaram e uma mulher os recebeu.
- Sr. Alexsander está na sala de reuniões. Podem entrar.
- Obrigado, Sofia. Sempre linda e educada... – respondeu Leonel enquanto lhe beijava a mão. A senhora de idade não esboçou nenhuma reação.
Enquanto se dirigiam ao local indicado, Eduardo ia observando os quadros e esculturas que emolduravam sua visão espantada. Dragões, centauros, unicórnios, cobras, cabeças de bode empalhadas, quadros gigantes onde imagens desconcertantes de pessoas sendo assassinadas estavam expostos por todos os lugares. Havia uma escultura de um empalado. A aura do lugar o fez sentir como se adentrando num castelo antigo, e algo como uma excitação começou a lhe assaltar. Só a confiança em Leonel o mantinha com os pés no chão.
- Esse Sr. Alexsander curte mesmo arte pesada. Agora entendi a encomenda que ele fez.
- Man, se ligue. Quando a gente entrar, eu só te peço uma coisa: só responda o que ele perguntar e não faça perguntas. Discrição, man. Discrição. Se tem uma coisa que o chefe preza além da grana é discrição, então, vê se não vacila. Ele te paga, a gente vaza, e pronto. Demorou?
- Demorou. Sem vômitos então.
Leonel bateu três vezes com a aldrava e a porta se abriu. O cômodo espaçoso estava em penumbra, mas logo adiante viram um clarão que logo foi percebido por Eduardo como uma lareira. Era possível ouvir o som crepitante da lenha.
- Vocês estão atrasados. – uma voz rouca, com sotaque diferente e arrastado, soou quebrando o silêncio.
- Desculpe, Sr. Alexsander. O tempo fechou e eu tive que vir devagar. Esse é o cara. – Leonel faz um sinal com a mão para Eduardo.
- Boa noite, chefe. Linda casa. Aqui tá a encomenda. Segui as instruções...
- Ok. Ok. – Alexsander o interrompe de maneira fria. – Desembrulhe pra mim. Me deixe vê-la.
Eduardo começou a tirar o papel marrom que envolvia a imagem e uma sensação de arrependimento despontou sorrateira em seu íntimo, de repente era como se ele estivesse fazendo parte de uma grande encenação. Quando a imagem surgiu aos olhos de todos, Alexsander soltou um suspiro.
- Perfeito... perfeito perfeito perfeito! Como eu vi em meu sonho... Deixe-me tocá-la. Sim... isso é uma obra de arte... majestosa... oh... minha querida... espere só mais um pouco... Leonel, você está de parabéns. Tem sido ótimos olhos para mim... – o homem falou enquanto tocava a imagem de um ser bizarro. Pernas femininas em um tronco masculino... no lugar dos seios, duas caveiras... e nas palmas das mãos que estavam abertas estendidas para frente, um par de olhos de tamanho anormal... Sua cabeça, lembrava a de um réptil...
A reação chamou a atenção de Eduardo de uma maneira diferente de como chamaria se fosse por pura satisfação pela missão cumprida. A expressão no rosto do homem alto e loiro, que aparentava estar na casa dos 40, era de puro deleite e assombro. Seu olhar tinha algo de voraz...
- Nunca pensei que um escravo pudesse ter tanta capacidade... você realmente me surpreendeu, Eduardo, filho de Maria do Carmo e João Guedes. Realmente, desde que você pintou aquele quadro aos 7 anos, algo mais te acompanhou até aqui... você merece mais que um pagamento. Você merece saber...
Eduardo o olhava sem entender como ele sabia daquelas informações. Seu bom humor habitual se dissipou e ele se tornou mais alerta. Leonel estava de cabeça baixa e olhos fechados. O homem continuou.
- Hoje eu farei algo novo. Vou te conceder a chance de uma nova vida... se você aceitar, eu te contratarei. Mas antes disso, pode olhar seu saldo bancário? Faça isso que eu espero. Suponho que isso sirva pra te ajudar a decidir se quer ou não trabalhar pra mim. Vou lhe servir uma bebida para ajudar a pensar.
- Valeu... quer dizer, obrigado Sr. Alexsander. Só um instante. – Eduardo, um pouco confuso e inquieto, sacou seu celular e por um aplicativo checou seu saldo, que da última vez em que consultara era de R$ 22,50. Não havia repassado o valor do serviço, então qualquer coisa já valeria à pena. Quando o saldo foi atualizado, seu coração iniciou uma súbita disparada.
- Não... o senhor só pode tá de sacanagem... desculpe Sr. Alexsander, mas isso é uma brincadeira sua e do Leonel, né? – o saldo atualizado que aparecera na tela de seu celular era de R$2.OOO.O22,50.
- Esse dinheiro é seu. Pode transferi-lo, fazer o que quiser com ele a partir de agora. Nenhuma instituição questionará sua procedência. Esse foi só o primeiro pagamento. Seja meu artista pessoal e eu te oferecerei mais... no entanto, decida agora. Você paga esse preço? Ou melhor, qual será seu preço? O que te peço é que morra pra tudo que aprendeu até aqui e eu te ensinarei o real propósito de todas as Artes... Se sua resposta for sim, beba desta taça. Se for não, e eu entenderei, pode sair e continuar sua vida. Suponhamos que agora, nesse exato momento, eu sou Morpheus e você é o próprio Neo. Já assistiu Matrix, suponho. Hoje eu acordei com um humor diferente e você tornou meu dia ainda melhor com seu primoroso trabalho.
Eduardo discretamente beliscou seu braço enquanto olhava o saldo no aplicativo. Estava praticamente desempregado, aluguel atrasado, fugindo da realidade cada vez mais com ajuda de seu cachimbo, e agora parecia estar vivendo algum tipo de sonho maluco. Só podia responder sim àquela altura, não tinha nada a perder porque não tinha exatamente nada... não podia medir as consequências de sua escolha, não com a barriga roncando de fome...
- Eu aceito senhor... seja lá o que for que o senhor quiser de mim, eu quero... – Eduardo estendeu a mão e tomou a taça. Um líquido vermelho-escuro foi solvido em um só gole. O sabor era desconhecido para ele, mas imediatamente, um efeito vertiginoso o acometeu...
- Ah... Léo... o que tá acontecendo... socorro... Meu Deus... me ajude... - uma dor corrosiva o consumia por dentro. Eduardo se contorcia quando viu o homem despejar uma outra taça por sobre a estátua. Sua visão foi se tornando embaçada à medida que a dor aumentava, o cenário ao redor começou a girar, mas ele viu claramente quando a imagem que esculpira começou a se mover e o homem a segurou nos braços... acariciando-a... logo após, a pôs dentro de um saco.
- O Mestre a quem sirvo governa este Mundo desde que a Luz se converteu em Trevas... - Alexsander sussurra - por trás do que vocês chamam de pensamento... educação... ciência... conceitos e ideologias... está a mão dele... Nos governos... religiões... no que vocês comem e bebem... na internet que você usa... está sua escravidão... no dinheiro que te domina... e vocês estão cegos... como deve ser. A mão de nossa Fraternidade é o exército que molda a retomada do Reino pelo verdadeiro Rei... Esse Mundo, será nosso...
A dor de Eduardo agora se convertia numa sensação inebriante de prazer. Era como se o mais forte sedativo misturado ao alucinógeno mais potente tivesse caído em sua corrente sanguínea. Ele começa a gargalhar em desespero...
- Eu quero mais... me dá mais... por favor... eu imploro – uma sede inimaginável faz com que Eduardo se arraste na direção de Alexsander.
- Pobre criança... vinde a mim que eu te saciarei... seja livre, descubra a verdade...
Alexsander estalou os dedos e toda a sala se moveu num giro de 360º. Num segundo, eles estavam diante de um altar onde cordas pendiam dos braços e pernas de uma criança que chora em desespero. Eduardo, em meio a seu delírio orgástico, se levanta com a ajuda do anfitrião e tenta fitar a cena, mas sua sede o consome... ele só pensa em beber mais do que havia provado. Em todo o momento, Leonel está parado no mesmo lugar, os olhos ainda fechados. Alexsander estala outra vez os dedos e dois homens entram com cães grandes e negros presos a correntes.
A menina presa grita. Seu grito é de um pânico inominável... sua voz frágil está quase rouca de tanto que esperneara, nua e com frio, sem entender como havia ido parar ali de uma hora pra outra... só lembrava de ter deitado com sua mamãe em sua cama com sua bonequinha e então acordara ali...
Eduardo está paralisado. Ele sabe quem é a menina...
- Façam! – ordena Alexsander.
Os homens aproximam os cães da menina e eles a mordem nos braços... ela grita... suas pernas também recebem mordidas furiosas... o sangue escorre enquanto o choro da menina rasga o cômodo que mais se assemelha a uma caverna...
- Dona Mirelinha... não... não... – Eduardo plana numa realidade além de qualquer possibilidade. Nem mesmo o crack o havia levado a um ponto tão indecifrável de necessidade. Mesmo diante da cena aterradora que presenciava, sua sede ainda continuava implacável...
- Retirem a seiva agora! – Alexsander fala em voz alta.
As cordas são afrouxadas e os membros mutilados da menina esguicham sangue púrpura... ela ainda gritava pela mãe quando um dos homens enfiou um bastão metálico fino em sua nuca estancando seus gritos de dor... ele suga a haste e apara o líquido que escorre na outra ponta com um jarro. Em seguida, larga o corpo inerte da criança como se fosse um saco e traz o sangue colhido até Alexsander, que o entrega para Eduardo.
- A partir de agora, você será meu servo... Serei seu Mago Negro... beba. Adrenocromo. – ele ergue o recipiente, seu rosto, agora é o rosto de um lagarto - O elixir da imortalidade...
Eduardo bebeu avidamente do líquido quente... filetes vermelhos escorriam pelo canto de sua boca enquanto ele provava do mais puro êxtase... naquele instante, nenhuma lembrança da criança falante e alegre que chamava suas esculturas de “bonecões” existia... só o vislumbre de uma nova vida... uma vida onde mais nada seria o mesmo... ele só precisava pagar o preço...
***
No dia seguinte, Verônica corria desesperada à procura da filha que sumira sem deixar rastros. Cinco dias se passaram sem nenhuma resposta. A polícia não encontrava nenhuma pista. Os vizinhos que se prontificaram a ajuda-la perceberam que Eduardo não aparecia em casa há alguns dias e teceram suas suspeitas. Verônica não conseguia imaginar que Eduardo pudesse estar envolvido no desaparecimento da filha, logo ele a quem a filha tanto gostava...
Três semanas depois, quando o luto já havia despedaçado qualquer esperança, uma mensagem de um número desconhecido chegou no celular dela. Verônica abriu o WhatsApp e leu:
“Verifique seu saldo bancário. Não se preocupe. Nenhuma instituição bancária lhe questionará. Sua filha está bem. Mas não a espere voltar. Só pedimos seu silêncio daqui pra frente. O preço do não cumprimento dessa única exigência... será seu silenciamento imediato.”
Com lágrimas abundantes a escorrer e mãos trêmulas, Verônica foi até o caixa eletrônico mais perto, crente de que a brincadeira de péssimo gosto que estavam lhe pregando diante da tragédia que estava vivendo era uma tortura imperdoável. Quando o saldo apareceu na tela, suas pernas enfraqueceram... o ar lhe faltou enquanto ela tentava entender o que via...
- Meu Jesus amado... oh meu pai... por que meu Deus... minha filha... oh meu Deus... minha filha... eu quero minha filha! – um choro avassalador irrompeu enquanto ela gritava. As pessoas próximas a observavam assustadas, alguns sabiam do desaparecimento da filha da mulher que esperneava...
Na tela do caixa eletrônico, o número 3 acompanhado de 8 zeros, estava sendo exibido...
FIM
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TEMAS:OBRAS DE ARTE\DESAPARECIMENTOS\TEORIA DA CONSPIRAÇÃO