Contos de Terror: Efeito Macumba
 
 
 
O amor pede sacrifício... - CLTS 11
 

Problemas amorosos

O vento trazia a chuva e um tanto de frio até o meio do escurecido recinto, amontoando as pessoas mais para junto do tabique de madeira fina. Do outro lado ressoou a voz áspera, resmungando ritmada, os pés marcando compasso no chão.

A compunção na cara de Elza era mais fervorosa que se estivesse assistindo à missa, à qual comparecia, pontualmente, toda manhã de domingo. Um velório não a deixava tão embebida dos mistérios do Além quanto aquela sessão com o babaloxá.

Pairava no ar uma fumaça espessa misturada ao odor gosmento de fumo barato. Vozes tímidas murmuram respeitosas nas consultas, quase ininteligíveis aos ouvidos ágeis que se encontram do lado de cá da parede:
— Então, Pai, quer que traga uma criança AQUI? — a voz da mulher era aguda e irritante. Ela pedia ajuda, inconformada com o seu namorado que tardava em pedir divórcio para a esposa que dizia não mais amar.

— Vai amá ocê sim, minha fia, eh, eh... o nego véio garante. Só carece de fazê um trabainho. Despois que oceis casá tudo vai ficá mais mió. Vai sim, eh, eh... — falou por sons graves que perfuravam a atmosfera pesada do minúsculo terreiro, carregada de entidades invisíveis a olhos comuns.

Pai puxou uma baforada do cachimbo, cuspiu de lado, olhos revirados, dos quais só se distinguiam a massa esbranquiçada. Refletiu mais alguns segundos, e deu seu parecer definitivo, inquestionável: pois já não viu que ele merecia toda fé? Ou não confiava no Pai? Que necessidade tinha de mentir, por acaso ia ganhar alguma coisa se ela fosse enganada? Que fizessem logo o negócio. Ou queria ver se o velho se esquecia e falava diferente de outra vez?
 
Sentia as picadas de milhares de vespas dentro das suas pernas, enquanto descia atravessando ruas e ruas até a escola. O som do tênis golpeando o acelerador ecoava junto com as pulsações rápidas de seu coração. O suor tinha transformado seu rabo-de-cavalo em uma corda grossa que a chicoteava nos ombros. As varetas de ossos delicados dentro dos tornozelos dela pareciam que iam quebrar.

Elza correu mais, engolindo o ar seco, sentindo-se desnorteada, mas resoluta.

 
A criança

A menina sentada no ponto da van-escolar, verificava suas curtidas no canal do YouTube Kids, e só reparou na mulher quando ela já estava praticamente em cima dela. Poderia ter largado a mochila e saído correndo pela rua deserta. Era ágil e conhecia bem as esquinas e os becos por ali. No ar da tarde, pairava uma chuvinha contínua, e a mulher, grande e desajeitada, ficaria nervosa se precisasse sair correndo atrás dela e certamente teria de desistir.

Tudo isso passava pela cabeça da garota em um segundo. A mulher parou bem a sua frente, usava máscara de proteção respiratória e gorro. Olhou ao redor. Apoiou a faca no pescoço da menina que arquejou e deixou o celular cair. A mulher o pegou e colocou no bolso do jeans.

Estava bem claro que não era nenhuma pegadinha nem uma piada de mau gosto. Era maio. O Halloween seria no final do ano.

— Se você gritar, resistir ou sair correndo, eu a mato. Entendeu? — a menina fez que sim com a cabeça.

— Muito bem. Bota essa venda.
 

Preparação

Elza, puxando a menina pela mão, transpôs a cortina de pano; chapinharam uma poça d'água e receberam no rosto uns pingos frios que caíram do telhado.  O homem e a mulher se entreolham significativamente. Refletia nos olhos do Pai os mistérios do mundo, deste mundo em que vivia e de que conhecia muito bem o lado amargo, mas que lhe parecia ser o único possível.

O Pai tomou a menina no colo, aspergiu água na cabeça dela e sem interromper a cantarola, acomodou-a em uma cadeira. Ela se moveu devagar, dobrando os joelhos com cuidado, mas batendo fortemente na cadeira que caiu, barulhenta.

— O que é isso? — Os olhos do pajé saltaram na direção dela.

— Desculpa — sussurrou a menina. Uma poça de urina se formou no chão. Ela manteve a cabeça baixa, balançado para a frente e para trás. — Desculpa-desculpa-desculpa.

A garotinha, tremia tanto que as pernas da cadeira golpeavam o chão como um pica-pau furando uma árvore. Ainda vendada, choramingava e se debatia, sacudindo tristemente a cabeça, sublinhando o gesto com discreto e sofrido suspiro.

 
Do outro lado do buraco da porta algumas pessoas acompanhavam as atribulações. Ninguém se incomodava com a indiscrição das paredes, nem os que se enfumaçam com as diversas velas e defumadores que pontificavam o Pai, místico e absoluto, nem os que purgavam uma espera enorme em meio à umidade da noite que se prometia longa.

No fundo, todas aquelas vidas retratavam mesquinharias sempre parecidas. Segredo a gente só deve guardar do que diz no confessionário da igreja, coisas que podem comprometer a imagem que se deseja que os outros façam.

A voz do umbandista, rouca e embrulhada, como que se empertigou e despediu os consulentes, embalando-os em uma oração secreta dita com palavras rápidas e murmurantes, através da qual transitavam santos e anjos, as sete linhas com sete falanges cada uma, as sete legiões.

Abençoou cantado, enquanto os fiéis saíam:
Se é de credo em credo,
se é de cruz em cruz,
o Pai benze
em nome de Deus
e da Virgem Maria.
 
O Pai pediu para Elza ficar ali com a menina, deu-lhes chá para beber e também virou um copo. Saiu dizendo que tomaria em banho de ervas.

A mulher penteou os cabelos da menina, como o mestre pedira. Ambas começavam a sentir o corpo formigar e o coração bater descompassado. Um tremor esquisito percorria a espinha de Elza. Seria aquilo mesmo que desejava. Logo não haveria caminho de retorno.

 
Despacho

Vestido de branco, o umbandista acendeu velas dessa cor, que dispôs em círculo. e, próxima à cabeça da criança, uma vermelha. Fez o sinal da cruz e ingeriu outra dose do chá até o final, procurando não deixar nada no copo. Ajoelhou-se e encostou a cabeça no chão, pedindo licença para que os guardiões da fé autorizassem seu trabalho. Ofereceu um copo de pinga, um charuto e uma vela preta a Umbaô:

— Terão o que desejam, assim como terei o que quero! — o orixá, em ira eterna, respondeu com o tom grosso da voz do Pai, que estirou um pano preto no chão, colocou a menina deitada em cima, e cortou as roupas dela com uma faca, amarrando-lhe os braços e as pernas em estacas fincadas ali. Nesse momento, Lúcifer se manifestava no corpo do homem. O ritual se iniciara.
O homem cortou a palma da mão da moça na borda lascada de um copo quebrado, e esfregou o sangue na borda:

— Deixo o chão sumir e o horizonte girar. Chupe carne e rodopie no mesmo lugar, jogue as mãos para cima. — Ele a fez segurar a menina que se contorcia, enquanto usava o sangue da mulher, para pintar uma cruz de cabeça para baixo na pequena testa.

— Isto é nojento! — Não era a palavra certa, mas era a mais fácil. A mulher, como se estivesse bêbada, não chegou a desmaiar.

— Só segure firme — o homem esbravejou. A menina gemeu e se afastou do dedo sangrento. O sangue se espalhou num aguado rosado pela testa dela, correndo para dentro dos seus olhos.

Elza reparou no calor da pele da criança, no fogo que corria por debaixo dela, no sal do suor e das lágrimas, percebendo que ela estava sem os sentidos, não estava normal.

Pai tocou delicadamente no seu ombro direito, no esquerdo, no esterno, na testa, solene como um padre:

— Em nome do Pai das Trevas e dos demônios profanos, eu batizo essa criança na igreja de Lúcifer — apenas palavras, a mulher lembrou a si mesma, porém o mestre do cerimonial parecia se divertir como se não estivesse dando a mínima. A garota parecia completamente anestesiada.

Então aconteceu: um golpe com a machadinha separou o pé da perna direita da garota; depois o outro. O homem colheu o sangue com uma caneca e derramou-o na cabeça de Elza:

Pra que o amado nunca ande atrás de otra muié — começou a beber o mesmo chá de antes e deu mais para a moça. Ela já se perdia. Totalmente descontrolada. Foi quando ele repetiu os gestos, então cortando cada uma das mãos:

— Pra que o amado nunca toque em otra muié! — Mais sangue, porque tudo estava manchado, respingado.

A moça colocou as mãos nos ouvidos tentando impedir aquela fala medonha de penetrar no cérebro. Impossível, o som estava dentro da cabeça. O rosto ia tomando a forma do pavor.

Pai colocou um pouco de álcool em cima de uma Bíblia, riscou um fósforo e o arremessou. Uma labareda se formou iluminando seu rosto. Ele trouxe a cabeça da menina mais perto e colocou uma foto do amado em sua boca. Abraçando-a, enfiou a faca em sua garganta...

Uma explosão de uma névoa vermelha no ar. Um jato de sangue no teto. Sangue esguichado no chão. Um emaranhado quente de tentáculos vermelhos jogados pelo topo da cabeça dos presentes ali, espalhados por um lado do pescoço e do rosto da menina.

O sangue sujou mais as mãos e a camisa do Pai. O calor do fogo fez o suor escorrer pela face dele que, na tentativa de limpar, passou a mão ensanguentada na testa e bochecha, formando uma pintura horrenda. Segurando firme o coto de corpo da menina, despejou o sangue em cima da bíblia o que fez gerar uma explosão... Um círculo de fogo se formou ao redor, duas poças de lava brotaram do piso como dois demônios.
— Tá funcionano — ele arrancou o coração da sacrificada e lançou-o no fogo. Mais sangue espirrado. Gotas pequenas se fixaram nas lentes dos óculos de Elza.

— Pra que o coração do amado more em ocê! — a mulher esticou os dedos para tocar o coração, conforme Pai ordenara. Sentiu uma pulsação na garganta; imaginava um osso atravessando-a.

— Come. Come tudo — ela não sabia mais o que estava fazendo. Segurou o coração chamuscado com dedos trêmulos e o levou à boca. Mastigou-o!!! A boca abrindo e fechando, em movimentos maquinais. Sabor de cascalho.
A vista da mulher escurecia, tudo ficando cinza e depois negro. As falas se transformavam em eco distante. As cores empalideciam. Elza e Pai suspensos em branco e preto, como uma foto antiga.
 
Quando Elza, finalmente, abriu os olhos se aterrorizou: o choro anterior da menina se amplificava em sua mente para uma sirene perfurante. Tinha a lasca de um dente da garota nas mãos.  Olhou para elas e esfregou-as. O sangue carmim tinha ficado preto nos dedos. O cômodo cinza desabrochou de volta em vermelho vívido, furioso e ofuscante.

Morta. A filha do seu amado estava morta. O que ela fez?  Aquela ideia tinha aberto o peito, o pescoço e o rosto da menina. Um vômito disparou até sua boca. Foi cegada pelas lágrimas. O pesar vibrava como a corda de uma harpa dentro do corpo dela.

Em um piscar de olhos, o mundo tinha virado de ponta cabeça.

— Meu Deus! — ela se estapeou com fúria no peito, tentando tirar pedaços de ossos e tecidos da menina que pareciam colados em seu próprio corpo. — Meu Deus, Pai!
— Hora de limpá! Vem ajudá — Pai queimou os restos do pequenino corpo. Numa porra de uma fogueira. Ele trazia o rosto congestionado, vermelho com o reflexo da luz. Chamas em miniatura dançavam nos seus olhos, mãos cheirando a gasolina, o diabo de mocassins e terno de poliéster branco encharcados de carmim.

Elza disparou palavrões contra o Pai, o que fez com que ele parasse com suas ações por tempo suficiente para lhe esbofetear o rosto; um golpe bem preciso que fez os ouvidos dela zunirem. Depois, ele voltou para a fogueira, e ela cuspiu, gritou e se sufocou com o cheiro, que subia com a fumaça. Pedaços de carne humana consumidos nas chamas, deformando-se com o calor... o fogo comia os restos que se desintegravam, enquanto mais gasolina era espalhada. Pele esfolada, músculo a descoberto e osso perolado, carne fundida com plástico e panos. Elza se sentia também na fogueira, em cinzas.

— Você está possuída pelo demônio — o Pai disse quando a empurrou e a fez olhar a forma como as provas do crime eram destruídas.

A moça queimava-se por dentro, como se a noite fosse um incêndio, sabendo que não tinha volta. Ficou com repulsa daquilo, pela maneira como foi traída pelo seu desejo.
Tentava se lembrar do que havia feito, do que deixara que o Pai fizesse, em quem ela tinha se transformado.
 
 
Espalhados pela cidade os cartazes e nas redes sociais o apelo, os pedidos de ajuda. Sem evidências, a polícia estava limitada no que poderia fazer legalmente para investigar. Por causa disso, o caso daquela menina se perdia nas engrenagens do sistema.
 
A sala toda escura, e Elza, sozinha em casa. O seu homem não podia abandonar a esposa com a filha desaparecida. A dor reuniu o casal. E ela ficou a com o que havia feito. Engolida pelo buraco negro da memória. A pior coisa que poderia acontecer, pensou.

Procurou o Pai para consolo e por arrependimento:
— Nun fiz nada, fia! Umbaô  e ocê trabaiaram juntos. Num sei nada... — Se tivesse havido coisa pior, meu corpo se lembraria, sentiria dor ou sangraria.
 
Tudo aquilo era uma grande loucura, loucura que estava disposta a bem enterrar, em um canto escuro de sua mente. Nunca confessaria.
 
 
 
TEMAS: DESAPARECIMENTOS, FANATISMO RELIGIOSO.