CIPRIANO - O CAJADO

Cipriano estava com um olhar perdido no horizonte. Precisava de mais abrigos para os dezessete e também de comida para alimentar aquelas bocas. As cabras, única fonte de alimento que trouxeram, haviam sumido. Ele já tinha enviado duas duplas: uma para ficar de vigia avançado e outra para capturar mantimentos. O prazo para retorno passara em quase três dias. Já era o momento de mover todo aquele acampamento temporário.

Enquanto caminhava pelas margens do rio, Cipriano ouviu as mucamas que haviam fugido com Justine. Ele parou para descansar um pouco distante e aproveitou para ouvir a conversa:

— Nossa, eu fugi das mãos do senhorzinho para ficar dormindo no chão de pedra e pau não! Aqui só tem mosquito para todo o lado - e começou a se estapear, enquanto as muriçocas zuniam ao redor do seu corpo.

— Nem me fale, nunca mais tomei um copo de leite sequer, nem de cabra, meio azedinho… Chica, tu que era ama de leite, não quer me dar um pouquinho não?

Elas riam e se banhavam:

— Era melhor Justine ter fugido com o macho dela e nos ter deixado em paz! Estou toda inchada! Nós sofríamos nas mãos do sinhozinho, mas ao menos tínhamos direto a alguns óleos perfumados.

— Será que eles vão mandar alguém salvar a gente? Porque eu não tenho noção de onde estamos. Até voltaria, mas estou perdidona aqui nesse mato sem cachorro!

Um misto de ira e tristeza tomava o coração de Cipriano. Queria se levantar, atravessar o caniço e dizer-lhes a verdade sobre quem volta depois que foge: morrer levando chibatadas em praça pública! Não importava se fossem mucamas ou não… pois era esse o costume no Arraial de São Tadeu da Serra.

Aquele que enviara em sacrifício com certeza seria mais útil e agradecido que qualquer uma daquelas mucamas. Um arrependimento forte apertou o seu peito, enquanto se lembrava do pacto que teria feito.

Ele olhava para o seu cajado e imaginava o que ele poderia fazer com aquilo, e o preço que pagou para poderem estar ali

Elas terminaram o seu banho e saíram sem ver Cipriano. Pouco depois, Zulu surgiu logo depois da curva do rio correndo, trôpego, sem ar a gritar:

— Eles estão vindo! Cipriano, eles estão vindo!

Mal Cipriano pode pegá-lo nos braços, Zulu, um homem grande, musculoso, com as costas cobertas de cicatrizes tombou ao chão, desfalecendo.

— Calma, respira homem! Quem está vindo?

Zulu estava cansado como se estivesse um ataque de asma. Buscava o ar, mas não conseguia respirar. Olhando desesperadamente nos olhos de Cipriano, esboçou falar algo, mas desmaiou enquanto balbuciava algo incompreensível.

Um turbilhão de preocupações tomou a mente de Cipriano. Seriam as tropas do Capitão do Mato? Seriam os Deuses Antigos do Submundo, que vieram cobrar o “atraso” do sacrifício? Haveria ainda alguma outra entidade sobrenatural mais maligna ainda rondando aquela região?

Cipriano, com dificuldade, pegou Zulu nos braços e o levou para o acampamento, chamando por ajuda.

Euzébio e Justine foram ao seu socorro. Euzébio fez um exame rápido no corpo de Zulu e não encontrou nenhuma ferida grave, apenas os arranhões devido aos galhos e algumas folhas cortantes. Justine foi preparar algo para acordar e socorrer Zulu.

Cipriano estava atônito. Pelo jeito que Zulu falava, algo estaria se aproximando do acampamento e rápido! Pensou em Sebastião e Francisco, que ele enviara para pegar mantimentos para o acampamento e ainda não voltaram - será que eles foram capturados?

E Eloi? Ele deveria estar acompanhando Zulu, era o seu par como sentinela avançado. O que aconteceu com ele?

Cipriano queria ir ver o que era. Tinha que garantir a segurança do seu grupo inclusive das crianças que estavam com ele. Não queria sequer imaginar o que os capatazes e capitães do mato fariam caso as pegassem.

Tudo o que havia no acampamento eram algumas barracas simples de galhos e folhas entrelaçadas que serviam de abrigo e cama para os fugitivos. Três pequenas fogueiras esparsas, feitas sob a copa das árvores mais frondosas, que dispersavam a fumaça e evitavam que ela evidenciasse a sua origem. Um pequeno saco de algodão rústico tinha as poucas ferramentas que tinham para construir e caçar. Havia um pequeno varal onde secavam a carne da caça, que era escassa e algumas ervas para amenizar os males do corpo e da mente. Não havia nenhuma estrutura que pudesse ser usada de forte ou construção para garantir a segurança do seu grupo.

— Saiam daqui, entre mato a dentro! Ordenou Cipriano.

Euzébio e Justine se apressaram em tentar esconder o corpulento Zulu. As mucamas e a família se apressaram em correr mato adentro.

Em pouco tempo, Cipriano se viu sozinho naquele acampamento abandonado. Apenas ele e o seu maldito cajado.

Ele respirou fundo e foi se esgueirando pelo caniço rio acima. Ao longe ele pode ouvir os cachorros latirem, o som do trotar dos cavalos na água era inconfundível. A voz que comandava o grupo a seguirem em frente lhe era bem familiar, era Pedro Caprico. Seu corpo estremeceu. Conhecia muito bem a sua índole impiedosa. Ele iria enviar os cães lhe caçarem como animais de abate. Os sobreviventes seriam mortos em combate feroz com os seus capatazes. Se eles levassem consigo algum prisioneiro, seria para enforcá-lo em praça pública para servir de exemplo. Pedro iria decapitar a todos e levar suas cabeças de volta como um troféu.

Seus olhos ficaram marejados imaginando o que aconteceria com as crianças fugitivas. Uma tristeza que rapidamente se transformou em ódio. Se aquele maldito cajado tivesse realmente aquele poder todo que diziam ter e salvá-los daquela tropa que os sobrepunha várias vezes em número, ele mesmo entregaria a sua alma para os Deuses Antigos do Submundo!

A matilha de cães já se aproximava de Cipriano, os cavaleiros, do todo de seus cavalos, observavam aquele senhor idoso se levantar do mato e riram. Aquele pobre coitado seria estraçalhado pelos cães em segundos! Desembainharam as suas espadas apenas para finalizarem o abate.

Mais atrás, alguns escravos acorrentados levavam os suprimentos em mulas, tendo uma pequena tropa de infantaria na retaguarda.

Pedro Caprico era um dos cavaleiros, reconheceu Cipriano e gritou:

— Você vai pagar pela sua ousadia seu velho idiota!

Cipriano guardava um ódio em seu olhar tão grande que as suas mãos tremiam. Ele apenas ergueu o seu cajado e gritou:

— Posso ir para o inferno, mas levo vocês primeiro! - e apontou o seu cajado de serpente cravada de pedras preciosas para a tropa.

Uma enorme bola de fogo brotou do rubi que ficava na boca da serpente. Como os cavaleiros eram rápidos, eles se desviaram da bola flamejante. Contudo, quem estava mais atrás não teve a mesma sorte. A bola de fogo explodiu, consumindo alguns infelizes pelas chamas. A explosão foi poderosa o suficiente para derrubar os cavaleiros e espantar os cães, que fugiram em debandada.

Cipriano sentiu uma fraqueza enorme tomar o seu corpo. Parecia que aquele cajado, para fazer seus truques, sugava sua força vital.

Com o estrondo, ele pode ver os Deuses Antigos do Submundo emergirem das cavernas. Ao vê-los, Cipriano gritou:

— Vejam, esse é o sacrifício que eu os ofereço! Apontando para a tropa inimiga.

Os homens-lagartos avançaram sobre aquele pequeno exército impiedosamente, espetando-os com armas semelhantes a tridentes.

Cipriano, ao ver aquela cena, percebeu que aquelas armas sugavam o sangue de suas vítimas e deixam o guerreiro que a manuseava ainda mais forte. Alguns infelizes foram simplesmente amarrados e levados para dentro das cavernas, suplicando por ajuda.

Um dos guerreiros, inebriado pela batalha, focou em Cipriano e dirigiu toda sua força para golpeá-lo, pois acreditava que, se ele eliminasse aquele velho feiticeiro, eles ainda poderiam reverter a guerra.

Porém, assim que o guerreiro se aproximou para golpear Cipriano, ele espetou o seu cajado o ventre do inimigo, vendo-o definhar imediatamente, até virar um corpo seco no chão em posição fetal.

Sentindo-se revigorado e rejuvenescido, Cipriano se juntou a carnificina com os Antigos Deuses. No final, quando eles partiram para atacar os escravos e as montarias, Cipriano os parou.

— Cipriano, foi um prazer lutar ao seu lado. Nós não esqueceremos desse banquete!

— Então é assim que funciona? - e levantou o seu cajado.

— Simples assim. Enquanto houver sangue, haverá poder, mas você decidirá o que fazer com ele.

— O que houve com Eloi?

— Seu sacrifício salvou a sua vida, todo o sangue dele e parte do seu foram usados para conjurar enorme a bola de fogo.

Cipriano se sentia estranhamente conectado àqueles seres. Aquela batalha fora o seu pacto de sangue.

— Meu nome é Sslash. Basta pensar em mim ou no som do meu nome e poderemos conversar. Afinal, você mostrou o seu valor em combate, e, definitivamente, não é só mais uma ovelha.

Enquanto eles conversavam, Pedro Caprico, com grande parte do seu corpo queimado e gravemente ferido, conseguiu subir num cavalo e fugiu.

Cipriano percebeu o movimento, mas pensou que era um escravo que tinha fugido dali e falou para Sslash:

— Deixe-nos, por favor, peço que se retirem para eu poder conversar com calma com esses pobres coitados.

Num gesto rápido com braço de Sslash, ele e seus guerreiros sumiram caverna adentro.

Aquela batalha, que seria o fim de tudo, apenas deu a Cipriano e a seus fugitivos os meios para sobreviverem. Cavalos, mulas e mantimentos foram capturados. Os escravos forçados a irem à guerra foram libertos, sendo que muitos deles decidiram seguir Cipriano.

Enquanto Cipriano voltava com aquele pequeno séquito para o acampamento ele foi interceptado por Akin e Euzébio, armados de lanças improvisadas e estavam visivelmente confusos com aquela cena.

— Cipriano, o que houve? Quando terminamos de esconder as pessoas, viemos para lhe ajudar com o pouco que tínhamos. Mas parece que tudo já acabou? - falou Akin, o pai de família.

— Os Antigos Deuses do Submundo me ajudaram - eles enviaram os seus anjos guerreiros para vencer a batalha!

Akin e Euzébio se olharam, Cipriano estava remoçado, mais forte que o normal e rodeado de seguidores tementes. Eles agora tinham cavalos, armas e mantimentos para se estabelecerem em um lugar para chamar de seu.

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Manassés Abreu
Enviado por Manassés Abreu em 18/05/2020
Reeditado em 19/05/2020
Código do texto: T6951115
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