Vai ficar tudo bem - CLTS 11

— Lembro direitinho, matei aula pra olhar desenho aquele dia, cara como eu adorava aquele desenho, interromperam a transmissão, e apareceu o avião batendo nos prédios. Que louco! Aquela altura da conversa ninguém estava prestando tanta atenção assim no assunto. Uns concordaram, outros não. Um deles foi enfático:

— Não passou desenho aquele dia Caio, tá ligado né? Todos caíram na gargalhada. Caio corou, respondeu com sarcasmo:

— Inventei isso então? Me lembro como se fosse hoje. Rubem que não colocava o orgulho de parte, disse:

— Sei lá irmão, memórias falsas a gente tem de monte, pode ser várias coisas.

— Tá falando do que? Tá bebaço né? Vai começar com as idiotices conspiratórias, vá se ferrar.

— Vai se ferrar você, ignorante. Procura no Google que tu vai ver. Antes que a conversa começasse a ficar mais desagradável um dos amigos sugeriu um brinde:

—Viva a conspiração!

— Viva! — Foi o eco geral do grupo de amigos. Todos riram largamente. Rubem pensou ter sido rude, a situação na qual Caio se encontrava era delicada, ser contrariado assim na frente de todos talvez tenha ferido seu ego, e sua estrutura emocional não ia bem. Pedir desculpas era necessário.

— Não hoje, não agora. — Finalizou seu pensamento secando mais um copo de cerveja.

No dia seguinte, Caio acordou com o celular a tocar, o som estridente, era insuportável.

— Onde tá essa porcaria. — Esbravejou.

A sede que sentiu da ressaca do dia anterior era como se tivesse tido febre a noite toda, e talvez tivesse engolido um guarda-chuva aberto. Haviam duas garrafas de vodca na geladeira uma delas tinha água a outra não. Sem pestanejar deu de mão em uma das garrafas, e deu largos goles. Era justamente a de vodca. Cuspiu tudo no chão da cozinha e saiu vomitando toda a casa, que já estava imunda. Desde que Elis, sua ex companheira, foi embora a casa estava de pernas pro ar. Tomou banho e se recompôs, teve dificuldade em encontrar alguma roupa limpa pra vestir.

— Ter que trabalhar assim é complicado, parece que tem um bumbo na minha cabeça. — Pensou. Pensar fez a cabeça doer e pensar no trabalho foi pior ainda. Fez lembrar que Elis tinha sido promovida recentemente, era a nova chefe do seu setor.

— O que mais pode dar errado? — Resmungou.

Percorreu o pequeno trajeto até trabalho, às vezes realizar o percurso levava mais de hora por causa do congestionamento. Estava bastante inclinado a ter uma conversa séria com sua ex. Ao vê-la descer do carro, sentiu o coração querendo sair pela boca. Suas pernas afrouxaram e seu estômago embrulhado e vazio dava piruetas.

— Isso é só fome. — Pensou, tentando enganar a si mesmo. Passou na padaria da esquina e comprou os pastéis fritos de sempre, que vinham com muito ar e pouco recheio. Sentou na sua mesa, ligou o computador e devorou aqueles pastéis. Há dias não fazia uma refeição decente. O jeito monstruoso de comer chamou a atenção de uma colega:

— Bom dia Caio, tá tudo bem? — Perguntou um pouco desconcertada.

Ele apenas respondeu com a cabeça que sim.

De novo sentiu o estômago dar cambalhotas. Dessa vez não precisou vê-la, seu perfume denunciava sua aproximação. Ela estava saindo do elevador. As roupas simples e discretas não eram capazes de disfarçar tamanha beleza.

— Elis — disse Caio limpando a boca lambuzada de óleo.

— Bom dia Caio, precisa de alguma coisa? — Respondeu de forma educada. —

Será que a gente pode conversar? — Indagou Caio.

— Tem que ser agora? — Questionou Elis. —

Prometo que não vai ser mais que cinco minutos. — Insistiu Caio.

— Está bem, vamos na minha sala. — disse Elis, seu desconforto com a insistência era nítido. Deslocaram-se em silêncio até a sala dela, o silêncio constrangedor foi quebrado pelo ranger da porta abrindo. — Sei que a gente não tá mais junto… — foi interrompido abruptamente. — Não aguento mais Caio, todo dia é isso, até quando? Eu já troquei de número pra ti não me ligar, tu sempre consegue o novo, a gente não tem mais nada, não vou voltar. Não sei mais o que fazer pra tu entender. — Sei disso, já me conformei, mas tu não pode me impedir de ver nosso filho. — Retrucou Caio.

— Filho? Que papo é esse... — Agora foi Caio que a interrompeu: — É, nosso filho, tu não pode fazer isso comigo, vou fazer de tudo pra ver ele. Elis demorou pra responder, o tom alterado de Caio colocava tudo numa posição difícil, dependendo de sua resposta tudo podia sair do controle.

— Caio, tá me assustando, do que tu tá falando? — Vai negar isso também, vai dizer que o Julinho não existe? Vai dizer o que mais? Que não lembra da dor do parto, no dia da final da Copa do Qatar? Vai dizer que o Brasil perdeu? Fala o que mais tô mentindo. — Seus gritos ecoavam pelos corredores.

— Caio, tu tá precisando de ajuda, a gente pode chamar alguém aqui pra te ver, conversar, ajudar. — Elis tremia e começou a temer a reação que Caio pudesse ter.

— Não preciso de ajuda, e quer saber vou procurar meus direitos, sua sonsa. Onde já se viu mentir sobre esse assunto. — Deu de costas bateu a porta, atravessou o longo corredor e entrou no elevador.

Pegou o celular. As lágrimas inundavam seus olhos e atrapalhavam a visão, bem como tremelique que a crise de ansiedade estava causando. Abriu o frasco do anceolítico, tomou logo três. Com dificuldade realizou uma chamada.

— Alô, Rubem? — disse Caio.

— Fala meu amigo, tudo tranquilo? Aconteceu alguma coisa? tá com a voz estranha.

— Cara, tô na pior, tô indo lá na casa do pai, ele tem um amigo advogado. Vou entrar na justiça contra a Elis. — disse lamurioso. — Advogado mano? Contra a Elis? A ligação tá cortando. — Perguntou Rubem confuso.

— É meu, ela não quer deixar eu ver o Julinho. Acredita? — Caio proferiu as palavras rangendo os dentes.

— Ela o que? Camarada tu tá onde? — Falou Rubem preocupado.

— Na frente da firma. — Respondeu Caio.

— Não sai daí, já tô chegando, mas em hipótese nenhuma vai à casa do teu pai, entendeu? — Orientou Rubem.

— Porquê? — Perguntou Caio desconfiado.

— Quando eu chegar te conto tudo. Logo tô aí. — disse Rubem encerrando a ligação.

Rubem dirigiu feito um louco, vasculhou toda a rua, não encontrou Caio. Entrou em pânico, ligou para Elis:

— Elis! Elis liga pro SAMU e manda pra casa do pai do Caio, entendeu? Eu já tô indo pra lá. Rubem falava e executava ultrapassagens arriscadas.

— O que? Tem certeza? — Falou Elis incrédula.

— Sim, eu não ia brincar com uma coisa dessas, liga de uma vez. — Disse Rubem desligando.

Caio tentava sem sucesso abrir o cadeado da porteira do pequeno sítio, distante alguns quilômetros da cidade. Caminhava em sua direção um homem, que a primeira vista, pensou ser seu pai. O senhor de idade tinha cara de poucos amigos, de longe, de forma enérgica disse:

— Não está tentando invadir minha propriedade, não é rapaz?

— Meu senhor, há um engano. — Respondeu Caio com firmeza. O homem se aproximou um pouco mais, dizendo:

— O único engano que vejo aqui é um rapaz mal-educado, tentando invadir minha casa. — Exijo falar com seu Osvaldo, chame ele aqui. —disse Caio alterando o tom da voz.

— Tu não exige nada aqui, quer falar com o velho Osvaldo? Pois procure uma pá ou um centro espírita, e vá se embora daqui antes que eu perca a paciência.

Caio foi a chão, de joelhos chorava baixinho. O velho homem chegou perto e viu o estado deplorável em que Caio se encontrava.

— Osvaldo era alguém especial pra você? — Perguntou o senhor. Caio apenas acenou com a cabeça não tinha condição de dizer palavra. Pensou estar vendo coisas quando viu uma ambulância e atrás dela o carro de Rubem. Rubem olhou fixamente nos olhos de Caio, sentiu um calafrio percorrer a espinha quando não viu nada dentro deles, era se como ele não estivesse ali. Rubem o abraçou fortemente e disse: — Desculpa meu amigo, por tudo. Caio estava atônito, seu olhar vazio permaneceu inalterado enquanto a ambulância sumia no horizonte.

As paredes, cor de palha, o gramado verde-esmaltado do jardim, o frescor do ar da manhã, tudo emanava paz.

— Bom dia Caio, como se sente? Disse a jovem entrando em seu quarto.

— Estou bem. — falou enquanto observava o jardim.

— Se lembra da nossa última conversa? — perguntou a mulher.

— Sim sobre a minha adolescência. — Respondeu Caio sem tirar os olhos do gramado.

— Exato, qual fato a nível mundial marcou o ano de 1997?

—Ah sim! Lembro com muita clareza do Mike Tyson arrancar a orelha do Holyfield e depois cuspir o pedaço no chão.

— A mulher começou a recolher rapidamente o pouco que havia trazido.

— Será que posso lhe perguntar uma coisa?

— Pois diga. — respondeu a mulher, que mostrava uma pressa fora do normal.

— Quem ganhou a copa do Qatar?

— O Brasil. — Respondeu a moça.

— Eu sabia. — Disse Caio contente.

Um sorriso esquisito apareceu nos lábios da jovem. Caio apresentava reações inconstantes, muitas vezes infantis. Suas melhoras não eram significativas. A mudança no semblante da mulher trouxe-lhe um lampejo de lucidez. Desconfiado perguntou:

— Doutora, está tudo bem?

— Não, não está, mas vai ficar.

Tema: Teoria da conspiração

CosmoKAoS
Enviado por CosmoKAoS em 17/05/2020
Reeditado em 28/05/2020
Código do texto: T6950414
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