Alguém Fala Números na Minha Cabeça

Eu ouço isso desde que me entendo por gente. Na época eu não conseguia entender direito, seja porque os números eram desconhecidos para mim, seja porque a voz falava rápido demais, seja porque não dava espaço entre um número enorme e o seguinte. Começou com algo na casa das centenas de milhões, e eu demorei a me dar conta que era uma contagem regressiva. Mais tarde, pude perceber que a voz que falava comigo era a minha própria na minha cabeça.

Com o tempo eu aprendi a ignorá-la, de modo que ela era a maior parte do tempo um mero som ambiente. Eu cheguei a contar aos meus pais sobre isso, quando estava por volta dos quatrocentos e poucos milhões. Mas como eu era apenas uma criança, eles não deram atenção. Na adolescência, pesquisei na internet algumas vezes sobre o assunto, e cheguei à conclusão que eu tinha esquizofrenia ou coisa assim. Eu não percebia qualquer outra distorção da minha percepção da realidade, então acabei diluindo a preocupação que tive ao me auto-diagnosticar, mas desde então passei a ter medo de que tudo ao meu redor fosse um mero sonho e que um dia eu fosse acordar como uma pessoa completamente diferente de quem eu achava que era. Falei sobre isso com algumas pessoas ao longo da vida, e elas sempre me tratavam como se eu fosse meio doido, então eu fingia estar brincando.

Acostumei-me tanto com aquela voz falando números enormes na minha cabeça que só no mês passado fui começar a me perguntar o que aconteceria quando aquela contagem chegasse a zero. Foi justamente quando a voz disse devagar "dois milhões", depois "um milhão novecentos e noventa e nove mil novecentos e noventa e nove" bem rápido, cerca de 1 segundo. Ao pensar sobre isso, fui tomado instantaneamente pela forte sensação de que estava em grave perigo. Eu cheguei a congelar por alguns segundos. Eu já havia pensado sobre a morte antes, e tenho medo como todo mundo, mas como sou jovem e saudável, ela sempre me pareceu algo muito distante. Dois milhões ainda parecia um número muito grande, mas finito. Podia ser dez bilhões, pensar que essa era a contagem regressiva da minha vida era assustador.

No dia seguinte, eu estava ajudando minha esposa a preparar o jantar para nós quatro (tínhamos gêmeos de sete anos), quando me cortei com a faca. Isso é super comum, já que eu sou uma pessoa muito desastrada. Prestei atenção na voz naquele momento: um milhão novecentos mil quatrocentos e vinte e dois, um milhão novecentos mil quatrocentos e vinte um. Número muito grande ainda, mas diminuindo. O que aumentou a partir desse momento foi a sensação de que eu estava sendo observado, de que essa voz que eu ouvia na minha cabeça, minha própria voz, era de outra pessoa que estava olhando para mim naquele exato momento. Fazia todo o sentido, já que eu comecei a ouvir aqueles números antes mesmo de conhecer os números. Ou tudo podia ser coisa da minha cabeça, e a memória que eu tinha de ouvir números na minha infância fosse minha mente me pregando uma peça.

Semana passada, acordei com o despertador para ir trabalhar. Quando me concentrei na voz, ela dizia setecentos e vinte e sete mil seiscentos e quarenta, setecentos e vinte e sete mil seiscentos e trinta e nove. Nem tinha me dado conta antes que faltava menos de 1 milhão. Estava 1 dia mais perto de seja lá o que estivesse para acontecer. Eu ouvi aquela voz por todo a minha vida, mas nunca havia sentido exatamente medo dela. Enquanto lavava o rosto, eu me peguei pensando que de olhos fechados era muito mais fácil para alguém me atacar de repente, e me sequei rapidamente. Por alguns segundos contemplei meu reflexo no espelho, esperando que ele se mexesse ou algo assim. Desde pequeno, toda vez que eu imaginava estar ficando louco, eu me olhava no espelho imaginando que algo estranho aconteceria. Até nos sonhos eu fazia isso às vezes, e funcionava para me acordar.

O resto da semana foi bem parecido, o número diminuindo cada vez mais, como em toda a minha vida, mas agora mais perto do 0. Algo estava vindo, era inevitável. Eu dormia com medo de que alguém me atacasse de repente no meio da noite. Pensei em tentar conseguir uma arma, mas não queria ter uma arma na mesma casa que meus dois filhos. Também queria dormir com uma faca debaixo do travesseiro, mas não tinha jeito de fazer isso sem assustar minha esposa. Aliás, eu queria muito contar a ela, mas não queria que ela pensasse que eu sou louco ou coisa assim.

A ansiedade era tanta que em alguns momentos eu pensei em me matar, para que a morte chegasse logo de uma vez, e parasse de me afligir com sua antecipação segundo após segundo. Na sexta-feira, na escola em que trabalho, fui finalmente tomado por um ataque de pânico ao ouvir a voz dizer setenta e seis mil oitocentos e trinta e cinco, setenta e seis mil oitocentos e trinta e quatro. O que antes era milhões havia se tornado milhares, e a tensão estava insuportável. Fui liberado mais cedo para casa, recebi o dia de folga.

Na hora de dormir, ao ouvir o quarenta e seis mil trezentos e onze, disse à minha esposa que queria que todas as luzes estivessem acessas. A última coisa que eu queria era ser atacado por um intruso no meio da noite. Estranhamente ela entendeu, não fez perguntas. Eu esperava que ela questionasse, já que eu sempre fui de economizar luz, e sempre reclamei com ela e as crianças por desperdiçarem. Parecia que ela sabia o que estava acontecendo, mesmo sem eu ter dito. Aquele foi o momento em que eu mais tive vontade de contar-lhe tudo, mas não tive coragem.

Acordei às três da manhã com vontade de urinar. Fiz uma breve retrospectiva da semana para tentar lembrar que dia era hoje enquanto ia ao banheiro. Sábado, estava de folga. Ao acabar de me aliviar, olhei para o espelho por acaso antes de apagar a luz e congelei. No espelho estava tudo normal, mas foi só nesse momento que me dei conta. Forcei a audição, olhei ao redor, nada. A voz havia parado. Eu a ouvia há uns vinte anos, e ela simplesmente havia parado de falar. Será que a contagem havia acabado no meio da noite, e nada aconteceu? Não pode ser, ainda faltava muito. Será que era coisa da minha cabeça mesmo e eu havia sido curado?

Ai eu percebi que a ausência da voz era ainda mais assustadora que sua presença. Isso porque, se ela realmente significava alguma coisa, ela ainda me dizia quanto tempo eu tinha. Daquele momento em diante eu estava perdido, sem saber quanto faltava, mas sabendo que faltava pouco. Nenhuma escolha além de esperar para ver o que iria acontecer. Não consegui dormir, apesar do completo silêncio, coisa que era estranha para mim, pois nunca estive em completo silêncio antes.

Na manhã seguinte, meus pais chegaram para buscar meus filhos. Os meninos iriam passar o fim de semana na casa deles. Quando contei isso aos meninos, eles correram para ir preparar as suas mochilas.

- Boa sorte. - Eu disse. - Eles têm muita energia, vocês vão precisar de férias depois desse fim de semana.

- Err... bem... - Minha mãe parecia incomodada com alguma coisa. - Você também era muito ativo quando era criança.

- Eu pelo menos tinha muitos amigos da rua para brincar, então eu me cansava bastante.

- Bom... - Meu pai se envolveu no assunto. - Filho, você se lembra do nome deles?

- Sim, claro. Mallone, Isabella, Lucas, Ricardo, Priscila, Márcia... Tinha uma menina que a gente chamava de Mami, nunca soube o nome dela. Vitor, Marisa... Tinha duas Karinas... e tinha a irmãzinha do Mallone também, a Raimunda.

Meus pais se olharam preocupados.

- Você tinha muitos amigos então, hein, amor? - Disse minha esposa, fazendo uma cara estranha que eu não consegui decifrar.

- Sim, muitos. Nossa rua era cheia de crianças. Brincávamos o dia inteiro.

- E você ainda tem contato com algum deles?

- Hum... agora que você perguntou... - Enquanto eu refletia, reparei que minha mãe e minha mulher cruzaram olhares ansiosos. - Não, não tenho mais contato com nenhum deles.

- Vocês pintaram a sala? - Minha mãe tentou mudar de assunto.

- Pai, você sabe algo de algum dos meus amigos de infância? Agora eu fiquei com vontade de revê-los, e apresentar os filhos deles ao Diego e ao Mallone. - Esses eram os nomes dos meus filhos. Houve um silêncio constrangedor por alguns momentos. Meu pai respirou fundo e finalmente disse o que estava guardando:

- Filho, você não tinha amigos da rua. Você sempre brincou sozinho.

- Como é possível? Eu me lembro muito bem deles. O que vocês estão dizendo?

- Você sempre brincava sozinho no quintal de casa. Um dia disse que havia feito novos amigos, e ia brincar na rua. Eu sorrateiramente te segui... e vi você brincando sozinho. Mas você voltou para casa contando coisas sobre os novos amigos que havia feito. E era assim todos os dias. Você brincava sozinho, e dizia que estava brincando com seus amigos.

- Mas não pode ser! - Protestei. Nesse exato momentos os meus filhos vieram, com as mochilas nas costas, trazendo as suas coisas. Diego me abraçou, Mallone abraçou minha esposa. - E o meu melhor amigo, Mallone? Ele estudava comigo, morava do lado da nossa casa, e vivia dormindo lá. Você vai me dizer que ele também não existia? Eu até botei em um dos meus filhos o mesmo nome que esse meu amigo!

- Filho, nenhum amigo seu nunca dormiu lá em casa, porque você não tinha amigos. Eu me lembro dessa história de Mallone e ainda perguntei na sua escola... não estudava nenhum Mallone lá.

- Amor... - Minha esposa agora tinha lágrimas nos olhos. - Nós não temos filhos.

***

Estou agora trancado no quarto. Há uns quinze minutos voltei a ouvir a voz. Ela começou a contar desde o mil, e continuou sua contagem regressiva. Eles insistem em tentar falar comigo, mas eu não quero saber. Não pode ser verdade, algo sobrenatural está acontecendo. Eu sei porque ainda não deu meio-dia, e está escuro lá fora. É uma escuridão diferente, porque ela está engolindo tudo. Eu olho pela janela e vejo as coisas desaparecendo. Uma casa, um carro, uma pessoa caminhando, tudo vai desaparecendo a cada segundo e sendo substituído pelas trevas.

Estou andando de um lado para o outro, sem saber o que fazer. O cerco está se fechando. Em um último ímpeto de desespero, vou para o banheiro anexo ao quarto me olhar no espelho. Não consigo ver meu próprio reflexo.

Dez.

Nove.

Oito.

Sete.

Seis.

Cinco.

Quatro.

Três.

Dois.

Um.