O CASARÃO E O RAPAZ TÍMIDO

I

O Rapaz Tímido chegava todos os dias às 7:30 no trabalho e saía às 17:00. Mas sua patroa não era normal. Ela era uma sádica, uma pessoa infeliz e monstruosamente feia por dentro e por fora. Jamais lhe faltava disposição para humilhá-lo em frente aos outros funcionários… e quase todos os dias, faltando apenas dez ou cinco minutos pro fim do expediente, ela aparecia com “trabalhos urgentes”… “inadiáveis”… Que acabavam fazendo com que o Rapaz Tímido ficasse até as 20:00 ou 21:00… chegando todos os dias em casa, morto de cansaço do trabalho… deprimido, exausto. Mal conseguindo perceber o resto de vida que lhe sobrava. Os problemas eram despercebidos e as alegrias também. Ele só pensava nela… o tempo inteiro. Sonhava com ela. Esperava por ela… Como uma penitência…

O lugar onde ele trabalhava era um casarão muito antigo… com portas grandes, esculturas cristãs e quadros que valiam muito mais que a vida de um homem. Principalmente um rapazinho como ele. Havia um velho que trabalhava no casarão há anos… E que na verdade, quase nada fazia a não ser imprimir papéis, tomar café e importunar as pessoas, com conversas e causos. Ele sempre lhe contava a história do primeiro (e único) morador daquela casa… Um famoso médico que viveu ali por muitos anos e que se suicidara num hospício, depois de reduzir a sua esposa e seus três filhos em picadinhos com um serrote. Descobriu que ela queria fugir com outro homem… “Os velhos finais… das velhas histórias… dos velhos amores de sempre”. O velho senhor concluía sorrindo… O lugar ficou muitos anos abandonado e agora era um órgão público cheio de escritórios e de gente simples e trabalhadora (a maioria). “Só que a energia daqui, fica muito ruim durante a noite…”, dizia o velhinho antes de dar as costas e ir embora assoprando o seu café. Talvez aqueles momentos diários com aquele funcionário antigo, fossem os únicos minutos agradáveis para o Rapaz Tímido. A história fazia o rapaz estremecer… e pensar que o verdadeiro mal jazia confortavelmente dentro daquela mulher… Aquela supervisora… aquele olho vigilante… seguido daqueles gritos histéricos e ameaças eternas. Aquela mulher parecia enorme quando se sentava na poltrona… A sala era enorme antes dela chegar. Um palácio dentro dum palácio ainda maior… Porém, se tornava muito menor quando ela chegava, acreditando ter mais poder sobre todas as pessoas da casa. Sentindo-se a verdadeira “Rainha de Copas” diante de mais de cinquenta “Alice’s”. Num pequeno país que não tinha nada de maravilhoso.

Por meses a fio, ele vinha passando por humilhações terríveis, que iam piorando… ela o tratava como um cachorro, aos berros… e mesmo podendo ver a tristeza em seus olhos, continuava a pressioná-lo, usá-lo pra descontar todas as suas ânsias, raivas e mágoas, inseguranças particulares. Com certeza ela tinha… Com certeza ela também fora humilhada por alguém. É como o mundo gira… É como tudo funciona.

II

Chegando num dia frio de garoa, o Rapaz Tímido desceu do ônibus passando muito mal de sono e dores de cabeça… Andava tomando pílulas, antidepressivos, ansiolíticos, remédios pra dormir, que ele misturava com tudo que o ajudasse a esquecer… O que não adiantava muita coisa. Andou até chegar ao portão enorme do casarão… e ao parar de frente àquela imensidão de concreto (palco de um ano sofrido, quase chegando ao final), disse em voz baixa: “Acabou. Isso precisa acabar” – E quase conseguiu sorrir. Teve a impressão de sentir dois tapinhas leves no ombro e se virou para trás assustado, mas não havia ninguém. “eu vou enlouquecer…”.

Sentou em sua escrivaninha e logo seus colegas de trabalho perceberam que havia algo diferente em seu rosto. Ele estava quase… “belo”? “radiante”? Distribuía um sorriso sincero mostrando dentes brancos e lindos que ninguém nunca tinha visto, ou notado. Seu “BOM DIA!” estava alto, estava confiante. Sua dinâmica no serviço estava impecável. De onde vinha essa nova energia que brotava daquele rapaz tão inseguro…? As horas iam passando… ele ouvindo as broncas de sempre… os berros… ela atirava com fúria os papéis e projetos em sua mesa. De forma agressiva, violenta, desnecessária (pois naquele dia ele estava indo MUITO BEM). Mas o rapaz não ligava… seus pensamentos voavam. Ele trabalhava e parecia… Um homem, um homem muito mais velho.

III

Enfim… ia anoitecendo. O dia acabava, assim como o fim do expediente. Tudo ia se fechando e as pessoas saíam apressadas. A vida lá fora, com carros, poluições, engarrafamentos, famílias e namorados saindo juntos… Era sexta-feira! Obviamente ele já tinha entendido, que ela queria deixá-lo por mais tempo no serviço...

Estava em seu riso, em seus olhos. Em seu triunfo. Ninguém mais ficaria na casa, apenas o rapaz e a supervisora. Os seguranças ficavam no portão que era bem distante.

As luzes foram se apagando e apenas a sala onde estavam ficaram acesas. Um portão grande ao lado dava num salão enorme repleto de outros quadros ainda mais antigos… retratos dos antigos moradores do casarão.

– Dona “M.” por favor… - Ele entrou interrompendo e fazendo uma forçosa cara de pena – É que não posso demorar. Pois vou perder o último ônibus que vai direto para minha casa. Meus filhos estão me esperando, minha espos… E ela latiu, nervosa, sua voz ia subindo com uma sirene.

– Você precisa mesmo é FAZER SEU TRABALHO DIREITO, RAPAZINHO!! Se você não errasse TANTO, não estaríamos aqui. Agradeça eu não ter te mandado embora de uma vez. - O rapaz retrocedeu sem nada dizer.

Mas podia sentir como se o sorriso daquela mulher elastecesse sua face a ponto de até escutar um barulho, como uma borracha velha. Ele sorriu, mas seus olhos estavam cheios de lágrimas. “Isso precisa acabar… Ela precisa parar de fazer isso.”, pensou. Ela então foi ao banheiro e antes parou em frente ao rapaz e esbravejou com chuvas de saliva atingindo seu rosto:

- NÃO VÁ EMBORA, AINDA NÃO ACABAMOS. - Ele sorriu consentindo.

- Tudo bem, Dona “M.”, sem problemas…

- Eeeiii!! NÃO DÊ UMA DE ESPERTINHO COMIGO!

Quando a supervisora retornou… Não encontrou O Rapaz Tímido trabalhando em sua cadeira… E então, bufando de impaciência, suando como uma porca, a face vermelha (que na verdade ocultava o prazer de realmente “TER UM MOTIVO” pra continuar gritando), procurou ao redor até encontrá-lo no escuro do salão ao lado, num canto… de costas e olhando fixamente o retrato do antigo morador do casarão.

- SANTO DEUS!! O que você está fazendo parado feito maluco?! Quer perder seu emprego? Você sabe o esforço que faço pra TE MANTER AQUI SÓ PORQUE VOCÊ TEM MULHER E FILHOS??? - Bradou enlouquecida.

Chacoalhava sua enorme barriga e seios e gritava ainda mais alto… cobertos de joias por todo corpo, vestindo o seu terninho apertado, junto com aqueles óculos rosa ridículos que deviam ter custado muito mais que o salário de muitos outros funcionários dali. Sem se virar… O Rapaz respondeu:

- Oww que coisa… mas queeee coooisaaa… TODOS se foram… - e então deu uma leve virada e a encarou de forma sinistra. - O seu “Santo Deus” tambééémm se foooi… oww má sortee... Ahh, se foi. Há muitos anos que ele se foiii… - E então voltou a continuar de costas encarando fixamente o rosto do homem no quadro, que agora parecia sorrir.

A mulher tirou os sapatos e partiu violentamente em direção ao rapaz. Foi então que um vento terrivelmente forte veio por todos os lados fazendo com que todas as portas e janelas se fechassem com força. O resto de luz que existia se apagou e a supervisora foi agarrada por trás por uma força invisível. Tentou gritar por socorro, mas fora arrastada violentamente pra dentro da sala, como se houvesse uma pessoa muito forte lhe puxando pelos ombros. Ela berrava palavrões e tentava se segurar em alguma coisa. O rapaz se virou pra olhar… Ela estava ridícula, muito mais ridícula do que já era (o que ele pensava não ser possível)… e então começou a gargalhar enquanto andava devagar pelo breu do salão, contemplando os quadros. Caída no chão, ao lado de sua preciosa poltrona de couro - tão cara, tão desejada, tão importante… - tentou mais uma vez gritar em vão:

- ME AJUDE AQUI… SEU… SEU IDIOTA!! Vai levar demissão por justa causa rapazinho!! É JUSTA CAUSA! É JUSTA CAUSAAA!!

E como se falasse em seu ouvido e estivesse realmente bem deitado ao lado dela (mas ela não o via), o rapaz respondeu sussurrando: “Você ainda não está com medo suficiente..”.

Um vento quente seguido de uma névoa preta, entrou no salão e a névoa envolveu todo o enorme corpo da mulher, que não parava de gritar. “você não precisava gritar… Nunca precisou gritar, sua vadia… agora… agora você vai gritar!”. A pele dos dois braços e das cochas da supervisora começaram a se rasgar lentamente, como se estivessem sendo cortados com um bisturi. A Rainha de Copas, agora urrava... e chorava de desespero e dor. A Dor era tão forte que a fazia desmaiar e acordar várias vezes seguidas… e se desmaiasse por tempo demais a névoa em sua volta se encarregava de empurrar com força total o seu rosto contra o piso de madeira antiga no chão. Tentava se mexer, tentava fugir, mas não podia… parecia um besouro gordo caído no chão, clamando por ninguém… Pois parecia que nem o Rapaz Tímido se encontrava mais na casa. Alguém estava com ela. Alguém estava machucando ela de forma monstruosa e mortal. Mas não era o Rapaz…

Agora ela estava chorando… Ela podia dissimular… É o que sempre fazia quando via a oportunidade de conseguir algo de alguém. Ela se tornava doce… doce como um pudim com cobertura de veneno de cobra.

- …estou sentindo mu…muu… muita door… Me ajuda, por favor… chamem alguém!

- “Você ESTÁ com alguém, querida…” - Disse uma voz gutural, que parecia sair da névoa que assolava a sala.

Uma gargalhada ecoou por todos os cantos do casarão, fazendo com que ela mais uma vez, se calasse de horror… sentindo um terrível arrepio na espinha.

Vários outros cortes se fizeram em diversos pontos diferentes de seu corpo e ela chorava em desespero. Seu corpo foi mais uma vez arrastado, sendo arremessado várias vezes nas paredes da grande sala. Ouviu-se um estrondo como se algo muito grande e pesado tivesse caído na sala ao lado.

Um silêncio se fez por alguns minutos e aos poucos ela foi sentindo que podia movimentar seu corpo novamente (o que fazia a dor ficar ainda mais forte). As portas e janelas se abriram, mas ela não conseguia correr, foi se arrastando… estava exausta e ofegante. Seu corpo retalhado estava banhado em sangue… Se arrastou em direção a saída, tremendo de dor, deixando um rastro vermelho por onde passava. Ao se aproximar da escadaria que a levaria ao portão da rua, ainda conseguiu sussurrar mais uma vez com uma cara de nojo: “aquele garoto imbecil será preso. Vou acabar com a vida dele… Bastam SÓ alguns telefonemas. Isso não vai ficar impune… não, nããão… Deus sabe o que faz… nãão… não vai ficar assim...”.

Novamente um pé de vento forte bateu a porta da saída a poucos degraus a frente. E novamente a risada ecoou pela casa. A mulher se ajoelhou como fazem os mais crentes dos cristãos. E então, mais uma vez ouviu um sussurro, como se estivesse colado atrás dela, bufando em seu pescoço.

“Já lhe dissemos… Deus: Teve que dar um passeio.”. E então Dona “M.” foi empurrada por mãos invisíveis escada abaixo deixando seu rastro de sangue azul arrogante por todos os degraus, esparramando-se na porta de madeira, com o pescoço quebrado totalmente virado pra trás, no fim da escada. O resto da noite passou calma e em silêncio.

IV

Todas as portas se abriram quando o sol nasceu…

Os funcionários iam chegando e se chocando com a visão. “A Rainha esta morta”. Disse alguém. Com o corpo estatelado no chão… Eram 7:00 e todos os trabalhadores estavam reunidos ali, aguardando a polícia… parados, abismados. Encarando o corpo da famosa Dona “M.” que jazia morta com uma cara de grito e pavor. Sua boca estava escancarada com as mandíbulas deslocadas, aparentemente de tanto gritar. E seus olhos quase pulavam da face, estavam completamente vermelhos. Algumas pessoas choraram com a cena, mas apenas devido ao choque daquela visão e a brutalidade do assassinato… Mas ninguém estava mesmo, triste. E nem sentiam pena… Tampouco sentiriam saudades dela. Poucos iriam ao enterro também. Apenas observavam… emudecidos. O velho dos cafezinhos, passou pedindo licença e fazendo o sinal da cruz. Deu uma olhada rápida no corpo da mulher.

- Vou ligar as impressoras… Já passam das 7:30. - Ele disse. - E então subiu até o andar dos velhos quadros. Encontrando o retrato do homem posto dentro da sala da Dona “M.”, na parede atrás de sua escrivaninha. Ele tinha um riso largo no rosto.

O velho deu de ombros, como se dissesse ao próprio homem pintado na tela: “eu não tenho nada a ver com isso…”. E calmamente foi ligando a cafeteira e as impressoras.

O Rapaz Tímido nunca foi encontrado… Pois também, nunca foi procurado.