Se tudo fosse feito através de um inquérito oficial, sério, conduzido por autoridades competentes, onde fossem arrolados documentos e depoimentos de testemunhas oculares imparciais, Dona Benedita jamais seria condenada, pois ninguém poderia, de boa mente, jurar que ela realmente fazia as coisas de que era acusada.
Claro que era tudo fantasia das pessoas. Mas diziam que à noite, ela se transformava numa aranha negra, daquelas que devoram o macho depois que por ele é fecundada. Tinha gente que até jurava ter visto uma enorme aranha caranguejeira, do tamanho de um jabuti, peluda como um gorila, sair da casa da Dona Benedita de noite. Era noite de lua cheia e nessas ocasiões é que ela saia para caçar macho. Aí ela se transformava numa linda garota para atrair os incautos. Todo homem sumido na cidade era computado na lista dela. Foi devorado pela aranha negra, diziam.
Macumbeira de certo que ela era. Afinal, ser macumbeiro, fazer mandingas para o bem ou para o mal não é um ato que tenha sido recepcionado no Código Penal como crime passível de pena. Assim, não havia nada estranho no fato de ela degolar galinhas pretas nas sextas-feiras e servi-las, na encruzilhada ou na beira do riacho que passava no fundo do seu quintal, aos seus orixás, junto com farofa, cachaça, charutos para sobremesa, tudo á luz de muitas velas, como num jantar de muito requinte.
Quem ficava puto da vida com isso era a molecada que costumava jogar bola no campinho que havia no fundo da casa da Dona Benedita. Pois as encomendas geralmente acabavam sendo colocadas na beira do campo, onde terminava o gramado e começava o leito do riacho. Não era difícil a bola bater nas macumbas, derrubar a garrafa de “marafo”, espalhar a farofa, apagar as velas.
Pior era quando ficava suja com o sangue da galinha. Ai o jogo acabava mesmo. Quem ia querer chutar uma bola “batizada” e correr o risco de quebrar a perna?
Pois era isso que se dizia que ia acontecer. E não faltava quem dissesse que fora isso que acontecera com o Jaiminho, que havia quebrado a perna e com o Neco que destroncara o braço depois de pisar numa daquelas tranqueiras.
E também não faltava quem dissesse que o timinho do bairro nunca conseguia ganhar de ninguém naquele campo por causa das mandingas da Dona Dita. Diga-se, a bem da verdade, que os garotos do bairro não eram ruins de bola, pois quando jogavam em outros campos, até que eles faziam bonito, mas quando jogavam na Varginha era só vexame.
Daí aquela fama que a Dona Dita adquirira, de feiticeira das brabas. Mas isso ninguém podia provar. Ser macumbeira é uma coisa, ser feiticeira é outra. O macumbeiro é, quando muito, um aprendiz de feiticeiro. Já o feiticeiro é outra coisa. É um mestre que já subiu os degraus de uma iniciação mais profunda e sinistra nos mistérios da natureza física e principalmente espiritual das coisas.
Diga-se, a bem da verdade, que os mestres da feitiçaria, homens e mulheres, desapareceram no século XVII, queimados que foram pela Santa Inquisição. Já os macumbeiros, herdeiros bastardos dessa arte tão sutil que tirava o sono dos bons padres da Idade Média, só tiveram mesmo o seu status reconhecidos depois que os descendentes afros começaram a mostrar aos seus senhores brancos que a sua medicina era tão boa quanto as panacéias receitadas pelos seus doutores, pois baseavam-se todas no mesmo princípio, que é a fé, pura e simples.
Dona Benedita talvez não fosse feiticeira de verdade. Mas que era uma nega velha muito mal humorada e ranzinza, isso era. Perdera o marido muito cedo e nunca casara de novo. Não tivera filhos, por isso vivia sozinha numa velha casa, toda caindo aos pedaços, que parecia ser mesmo mal assombrada. Tudo isso excitava a imaginação das pessoas. Toda feiticeira adora morar em casas velhas. Pode criar ratos e teias de aranha. Pode hospedar fantasmas e outras entidades nas madeiras podres que estalam e nas portas que rangem. Tudo concorre para a criação de uma fauna fantasmagórica que impressiona os supersticiosos e excita a imaginação dos mais sensíveis aos apelos do sobrenatural.
Ela era feirante. Tinha uma barraquinha na feira, que vendia frutas, verduras, ervas e raízes medicinais. As ervas, as frutas e as verduras vinham do seu próprio pomar e horta. No grande quintal da Dona Dita, de mais de dois mil metros quadrados, havia diversas laranjeiras, limoeiros, goiabeiras, uns pés de nêspera, algumas bananeiras e pelos menos dois abacateiros que produziam frutos o ano inteiro. E também canteiros com hortelã, alfazema, louro, arruda, alecrim, boldo e outras plantas, que ela cultivava e vendia na sua barraca.
Naturalmente, o quintal da Dona Dita era o principal objetivo da molecada depois que o jogo acabava. Sempre havia um ou outro moleque mais ousado tentando entrar no pomar dela. Só não acontecia uma verdadeira invasão porque Dona Dita havia erguido uma cerca quase indevassável, feita de coroas-de-cristo, uma planta espinhosa e tóxica. Estas, misturadas com uma fileira de caraguatá, outro tipo de planta espinhosa, que dava volta no quintal inteiro, formavam uma verdadeira muralha de espinhos venenosos que afastavam os “sócios” indesejáveis do pomar da Dona Dita.
Além disso, ela tinha dois cachorrões da raça doberman que não eram de brincadeira. Quem conseguisse atravessar a muralha de espinhos, que era a cerca da Dona Dita, poderia terminar sua vida nas mandíbulas dos diabólicos cachorros.
Com um histórico desse, Dona Dita não podia mesmo ser muito simpática à vizinhança. Além das suas práticas religiosas e da natural desconfiança que uma pessoa assim tão arredia ao convívio social provoca, ela tinha o péssimo costume de brigar com os vizinhos por causa da molecada que tentava invadir seu pomar. Não havia família na rua, pelo menos entre aquelas que tinham moleques na idade complicada, que não tivesse sido interpelada pela nega velha, que diga-se, não poupava as mães e pais dos moleques de xingamentos e ameaças.
Dona Dita não teve filhos. As mães do bairro diziam que ela odiava os moleques por causa disso. Quem não tem filhos próprios costuma odiar os filhos dos outros. Uma lógica fácil e bastante provável no caso da Dona Dita, pois ela era realmente agressiva com a criançada. Se uma bola caísse no quintal dela, não voltava mais. Se o diabólico casal de dobermans não a estraçalhasse com suas terríveis presas, ela mesma o fazia, por sua conta, com sua afiada faca de degolar galinhas pretas.
De todos os moleques da rua, o que ela mais odiava era o vizinho Joanico. Esse era um moleque danado, que vivia fazendo todo tipo de arte. Por duas ou três vezes tentou tacar fogo na cerca da Dona Dita. Por maldade ou por que queria roubar algumas frutas, não se sabe, mas essa era uma das coisas que a velha nega não lhe perdoava. Nunca conseguiu porque as danadas das plantas nunca secavam. Estavam sempre verdes e não pegava fogo.
Todavia, a inimizade da nega velha com seus vizinhos, pais do Joanico, era uma coisa já de longa data. Começara no dia em que o moleque deixara enroscar uma pipa no abacateiro dela e à força de tanto puxar a danadinha, derrubara também um monte de abacates maduros que se espatifaram no chão. Dona Dita foi reclamar com a mãe do Joanico. Queria receber uns trocos pelo prejuízo, mas a mãe do moleque também não era uma criatura fácil de lidar. Ao invés de ralhar com o filho e pagar o prejuízo, passou uma descompostura na Dona Dita, chamando-a de velha mesquinha e ranzinza.
Dona Dita disse que eles iriam se arrepender amargamente por aquilo. "Tratem de dar um jeito nesse capetinha", disse ela, "se não vocês ainda vão chorar lágrimas de sangue".
Até hoje ninguém sabe como aconteceu. Aliás, todo mundo pensa que sabe, mas na verdade nem a polícia chegou à conclusão nenhuma sobre aquele crime horrendo que chocou toda a cidade. Tanto que o delegado que presidiu o inquérito não conseguiu indiciar ninguém e o Ministério Público não teve a quem denunciar.
E foi exatamente essa ausência de culpados que exasperou a opinião publica e esta, como se sabe, não perdoa. O crime que chocou a população foi o sumiço do Joanico durante três dias, nos quais ninguém conseguiu encontrar nenhuma pista dele. E depois o fato de o corpo dele ter sido encontrado jogado no leito do córrego que passava nos fundos do quintal da Dona Benedita, perto do campinho de futebol onde os meninos jogavam sua bola todas as tardes.
O menino foi encontrado com a garganta dilacerada. Seu pescoço era uma massa informe de carne rasgada, de tal modo que foi difícil ao legista que examinou o corpo determinar que tipo de arma teria produzido um resultado tão feio como aquele. O laudo saiu como “ferimentos produzidos por objeto perfurante não identificado”, que tanto poderia sem uma faca, uma chave de fenda ou até dentes de animal.
Na época não faltaram as especulações. Provavelmente um tarado, foi a primeira desconfiança. Mas não havia sinais de violência sexual. A coisa parecia mais um assassinato ritual, pois o corpo do garoto, completamente sem sangue, tinha algumas marcas esquisitas, que uns identificaram como letras de um alfabeto desconhecido, outros como figuras geométricas dispostas em forma de mandalas. O legista disse que eram escoriações naturais produzidas em um corpo que foi arrastado por um solo irregular cheio de tocos.
Então alguém se lembrou dos cachorros da Dona Dita. Aqueles ferimentos, disse um dos habitantes do bairro, eram sem dúvida, mordidas de cachorro. Outro, que parecia entender bastante desses animais, disse que dobermans, especialmente, adoram morder no pescoço. Outro lembrou que vira a casa da Dona Dita, durante três noites, permanecer iluminada madrugada adentro, com uma luz bruxuleante, meio azulada, como se diversas velas tivessem sido mantidas queimando a noite inteira. E dentro dela uns estranhos sons, como se ali estivesse sendo rezado um tipo qualquer de missa.
Os pais do Joanico logo se lembraram da ameaça que a Dona Dita havia feito: “Vocês vão chorar lágrimas de sangue”, ela havia dito.
Assim, não demorou muito para que umas cinqüenta pessoas se juntassem em frente à velha casa da Dona Dita, gritando impropérios, chamando-a de feiticeira, bruxa, assassina e coisas mais. Alguns deles começaram a chutar a porta. Dona Dita não era mulher de se intimidar. Saiu à janela e desancou a multidão. Chamou de putas às mulheres, cornos aos homens e ignorantes a todos. Com isso acirrou ainda mais os ânimos.
Cercaram a casa toda. Os cachorros começaram a latir e Dona Dita os botou para dentro. Não demorou muito para alguém aparecer com uma garrafa de gasolina e atirá-la para dentro da casa dela. E não faltou quem riscasse um fósforo. Casa velha, madeira podre, não demorou muito para tudo virar uma pira enorme, que soltava paletas carburetadas e rolos de fumaça preta que enegreceu as roupas nos varais no bairro inteiro.
Para muitos, isso acabava sendo uma diversão. As pessoas riam e cantavam. Parecia fogueira de São João. A feiticeira estava sendo queimada junto com seus diabólicos cachorros. Parecia uma daquelas cenas medievais que a gente via no cinema. A bruxa sendo queimada.
Dona Dita não se intimidou nem se deu por rogada. Ninguém a ouviu gritar nem pedir socorro. Ao contrário, fechou depressa a janela e sumiu em meio às chamas e a fumaceira em que se transformou sua velha casa. Nunca mais foi vista depois disso. Mas não faltou quem dissesse que vira uma enorme aranha preta fugindo pela porta da cozinha. Tinha quase o tamanho de um jabuti.
Não é preciso dizer que quando a polícia chegou, da veljá casa só restava um monte de cinzas. Nada de Dona Maria ou dos cachorros, nem restos mortais que normalmente se encontra em um incêndio desses. Ossos, restos de unha, cinzas orgânicas, ouro dos dentes, anéis, etc. Também não é preciso dizer também que ninguém foi responsabilizado pelo incêndio. Todas as testemunhas ouvidas foram unânimes em dizer que o fogo começou naturalmente e que a turba que se ajuntou em frente da casa era de gente que viera socorrer ou então simples curiosos que viram a fumaça e vieram ver o que estava acontecendo.
A conclusão final foi que o incêndio ocorrera por causa da mania da Dona Dita de ficar com velas acesas na casa durante a noite inteira.
A única coisa que ainda intriga o povo daquela comarca até hoje é o destino dos pais do Joanico. Pois no espaço de uma semana, de um para o outro, ambos foram encontrados mortos em sua casa. Segundo o legista, foram picados, em sua cama, por uma aranha extremamente venenosa. E até hoje tem gente que jura ouvir o latido de dobermans à noite, embora nas redondezas ninguém mais tivesse essa raça de cachorro.
Claro que era tudo fantasia das pessoas. Mas diziam que à noite, ela se transformava numa aranha negra, daquelas que devoram o macho depois que por ele é fecundada. Tinha gente que até jurava ter visto uma enorme aranha caranguejeira, do tamanho de um jabuti, peluda como um gorila, sair da casa da Dona Benedita de noite. Era noite de lua cheia e nessas ocasiões é que ela saia para caçar macho. Aí ela se transformava numa linda garota para atrair os incautos. Todo homem sumido na cidade era computado na lista dela. Foi devorado pela aranha negra, diziam.
Macumbeira de certo que ela era. Afinal, ser macumbeiro, fazer mandingas para o bem ou para o mal não é um ato que tenha sido recepcionado no Código Penal como crime passível de pena. Assim, não havia nada estranho no fato de ela degolar galinhas pretas nas sextas-feiras e servi-las, na encruzilhada ou na beira do riacho que passava no fundo do seu quintal, aos seus orixás, junto com farofa, cachaça, charutos para sobremesa, tudo á luz de muitas velas, como num jantar de muito requinte.
Quem ficava puto da vida com isso era a molecada que costumava jogar bola no campinho que havia no fundo da casa da Dona Benedita. Pois as encomendas geralmente acabavam sendo colocadas na beira do campo, onde terminava o gramado e começava o leito do riacho. Não era difícil a bola bater nas macumbas, derrubar a garrafa de “marafo”, espalhar a farofa, apagar as velas.
Pior era quando ficava suja com o sangue da galinha. Ai o jogo acabava mesmo. Quem ia querer chutar uma bola “batizada” e correr o risco de quebrar a perna?
Pois era isso que se dizia que ia acontecer. E não faltava quem dissesse que fora isso que acontecera com o Jaiminho, que havia quebrado a perna e com o Neco que destroncara o braço depois de pisar numa daquelas tranqueiras.
E também não faltava quem dissesse que o timinho do bairro nunca conseguia ganhar de ninguém naquele campo por causa das mandingas da Dona Dita. Diga-se, a bem da verdade, que os garotos do bairro não eram ruins de bola, pois quando jogavam em outros campos, até que eles faziam bonito, mas quando jogavam na Varginha era só vexame.
Daí aquela fama que a Dona Dita adquirira, de feiticeira das brabas. Mas isso ninguém podia provar. Ser macumbeira é uma coisa, ser feiticeira é outra. O macumbeiro é, quando muito, um aprendiz de feiticeiro. Já o feiticeiro é outra coisa. É um mestre que já subiu os degraus de uma iniciação mais profunda e sinistra nos mistérios da natureza física e principalmente espiritual das coisas.
Diga-se, a bem da verdade, que os mestres da feitiçaria, homens e mulheres, desapareceram no século XVII, queimados que foram pela Santa Inquisição. Já os macumbeiros, herdeiros bastardos dessa arte tão sutil que tirava o sono dos bons padres da Idade Média, só tiveram mesmo o seu status reconhecidos depois que os descendentes afros começaram a mostrar aos seus senhores brancos que a sua medicina era tão boa quanto as panacéias receitadas pelos seus doutores, pois baseavam-se todas no mesmo princípio, que é a fé, pura e simples.
Dona Benedita talvez não fosse feiticeira de verdade. Mas que era uma nega velha muito mal humorada e ranzinza, isso era. Perdera o marido muito cedo e nunca casara de novo. Não tivera filhos, por isso vivia sozinha numa velha casa, toda caindo aos pedaços, que parecia ser mesmo mal assombrada. Tudo isso excitava a imaginação das pessoas. Toda feiticeira adora morar em casas velhas. Pode criar ratos e teias de aranha. Pode hospedar fantasmas e outras entidades nas madeiras podres que estalam e nas portas que rangem. Tudo concorre para a criação de uma fauna fantasmagórica que impressiona os supersticiosos e excita a imaginação dos mais sensíveis aos apelos do sobrenatural.
Ela era feirante. Tinha uma barraquinha na feira, que vendia frutas, verduras, ervas e raízes medicinais. As ervas, as frutas e as verduras vinham do seu próprio pomar e horta. No grande quintal da Dona Dita, de mais de dois mil metros quadrados, havia diversas laranjeiras, limoeiros, goiabeiras, uns pés de nêspera, algumas bananeiras e pelos menos dois abacateiros que produziam frutos o ano inteiro. E também canteiros com hortelã, alfazema, louro, arruda, alecrim, boldo e outras plantas, que ela cultivava e vendia na sua barraca.
Naturalmente, o quintal da Dona Dita era o principal objetivo da molecada depois que o jogo acabava. Sempre havia um ou outro moleque mais ousado tentando entrar no pomar dela. Só não acontecia uma verdadeira invasão porque Dona Dita havia erguido uma cerca quase indevassável, feita de coroas-de-cristo, uma planta espinhosa e tóxica. Estas, misturadas com uma fileira de caraguatá, outro tipo de planta espinhosa, que dava volta no quintal inteiro, formavam uma verdadeira muralha de espinhos venenosos que afastavam os “sócios” indesejáveis do pomar da Dona Dita.
Além disso, ela tinha dois cachorrões da raça doberman que não eram de brincadeira. Quem conseguisse atravessar a muralha de espinhos, que era a cerca da Dona Dita, poderia terminar sua vida nas mandíbulas dos diabólicos cachorros.
Com um histórico desse, Dona Dita não podia mesmo ser muito simpática à vizinhança. Além das suas práticas religiosas e da natural desconfiança que uma pessoa assim tão arredia ao convívio social provoca, ela tinha o péssimo costume de brigar com os vizinhos por causa da molecada que tentava invadir seu pomar. Não havia família na rua, pelo menos entre aquelas que tinham moleques na idade complicada, que não tivesse sido interpelada pela nega velha, que diga-se, não poupava as mães e pais dos moleques de xingamentos e ameaças.
Dona Dita não teve filhos. As mães do bairro diziam que ela odiava os moleques por causa disso. Quem não tem filhos próprios costuma odiar os filhos dos outros. Uma lógica fácil e bastante provável no caso da Dona Dita, pois ela era realmente agressiva com a criançada. Se uma bola caísse no quintal dela, não voltava mais. Se o diabólico casal de dobermans não a estraçalhasse com suas terríveis presas, ela mesma o fazia, por sua conta, com sua afiada faca de degolar galinhas pretas.
De todos os moleques da rua, o que ela mais odiava era o vizinho Joanico. Esse era um moleque danado, que vivia fazendo todo tipo de arte. Por duas ou três vezes tentou tacar fogo na cerca da Dona Dita. Por maldade ou por que queria roubar algumas frutas, não se sabe, mas essa era uma das coisas que a velha nega não lhe perdoava. Nunca conseguiu porque as danadas das plantas nunca secavam. Estavam sempre verdes e não pegava fogo.
Todavia, a inimizade da nega velha com seus vizinhos, pais do Joanico, era uma coisa já de longa data. Começara no dia em que o moleque deixara enroscar uma pipa no abacateiro dela e à força de tanto puxar a danadinha, derrubara também um monte de abacates maduros que se espatifaram no chão. Dona Dita foi reclamar com a mãe do Joanico. Queria receber uns trocos pelo prejuízo, mas a mãe do moleque também não era uma criatura fácil de lidar. Ao invés de ralhar com o filho e pagar o prejuízo, passou uma descompostura na Dona Dita, chamando-a de velha mesquinha e ranzinza.
Dona Dita disse que eles iriam se arrepender amargamente por aquilo. "Tratem de dar um jeito nesse capetinha", disse ela, "se não vocês ainda vão chorar lágrimas de sangue".
Até hoje ninguém sabe como aconteceu. Aliás, todo mundo pensa que sabe, mas na verdade nem a polícia chegou à conclusão nenhuma sobre aquele crime horrendo que chocou toda a cidade. Tanto que o delegado que presidiu o inquérito não conseguiu indiciar ninguém e o Ministério Público não teve a quem denunciar.
E foi exatamente essa ausência de culpados que exasperou a opinião publica e esta, como se sabe, não perdoa. O crime que chocou a população foi o sumiço do Joanico durante três dias, nos quais ninguém conseguiu encontrar nenhuma pista dele. E depois o fato de o corpo dele ter sido encontrado jogado no leito do córrego que passava nos fundos do quintal da Dona Benedita, perto do campinho de futebol onde os meninos jogavam sua bola todas as tardes.
O menino foi encontrado com a garganta dilacerada. Seu pescoço era uma massa informe de carne rasgada, de tal modo que foi difícil ao legista que examinou o corpo determinar que tipo de arma teria produzido um resultado tão feio como aquele. O laudo saiu como “ferimentos produzidos por objeto perfurante não identificado”, que tanto poderia sem uma faca, uma chave de fenda ou até dentes de animal.
Na época não faltaram as especulações. Provavelmente um tarado, foi a primeira desconfiança. Mas não havia sinais de violência sexual. A coisa parecia mais um assassinato ritual, pois o corpo do garoto, completamente sem sangue, tinha algumas marcas esquisitas, que uns identificaram como letras de um alfabeto desconhecido, outros como figuras geométricas dispostas em forma de mandalas. O legista disse que eram escoriações naturais produzidas em um corpo que foi arrastado por um solo irregular cheio de tocos.
Então alguém se lembrou dos cachorros da Dona Dita. Aqueles ferimentos, disse um dos habitantes do bairro, eram sem dúvida, mordidas de cachorro. Outro, que parecia entender bastante desses animais, disse que dobermans, especialmente, adoram morder no pescoço. Outro lembrou que vira a casa da Dona Dita, durante três noites, permanecer iluminada madrugada adentro, com uma luz bruxuleante, meio azulada, como se diversas velas tivessem sido mantidas queimando a noite inteira. E dentro dela uns estranhos sons, como se ali estivesse sendo rezado um tipo qualquer de missa.
Os pais do Joanico logo se lembraram da ameaça que a Dona Dita havia feito: “Vocês vão chorar lágrimas de sangue”, ela havia dito.
Assim, não demorou muito para que umas cinqüenta pessoas se juntassem em frente à velha casa da Dona Dita, gritando impropérios, chamando-a de feiticeira, bruxa, assassina e coisas mais. Alguns deles começaram a chutar a porta. Dona Dita não era mulher de se intimidar. Saiu à janela e desancou a multidão. Chamou de putas às mulheres, cornos aos homens e ignorantes a todos. Com isso acirrou ainda mais os ânimos.
Cercaram a casa toda. Os cachorros começaram a latir e Dona Dita os botou para dentro. Não demorou muito para alguém aparecer com uma garrafa de gasolina e atirá-la para dentro da casa dela. E não faltou quem riscasse um fósforo. Casa velha, madeira podre, não demorou muito para tudo virar uma pira enorme, que soltava paletas carburetadas e rolos de fumaça preta que enegreceu as roupas nos varais no bairro inteiro.
Para muitos, isso acabava sendo uma diversão. As pessoas riam e cantavam. Parecia fogueira de São João. A feiticeira estava sendo queimada junto com seus diabólicos cachorros. Parecia uma daquelas cenas medievais que a gente via no cinema. A bruxa sendo queimada.
Dona Dita não se intimidou nem se deu por rogada. Ninguém a ouviu gritar nem pedir socorro. Ao contrário, fechou depressa a janela e sumiu em meio às chamas e a fumaceira em que se transformou sua velha casa. Nunca mais foi vista depois disso. Mas não faltou quem dissesse que vira uma enorme aranha preta fugindo pela porta da cozinha. Tinha quase o tamanho de um jabuti.
Não é preciso dizer que quando a polícia chegou, da veljá casa só restava um monte de cinzas. Nada de Dona Maria ou dos cachorros, nem restos mortais que normalmente se encontra em um incêndio desses. Ossos, restos de unha, cinzas orgânicas, ouro dos dentes, anéis, etc. Também não é preciso dizer também que ninguém foi responsabilizado pelo incêndio. Todas as testemunhas ouvidas foram unânimes em dizer que o fogo começou naturalmente e que a turba que se ajuntou em frente da casa era de gente que viera socorrer ou então simples curiosos que viram a fumaça e vieram ver o que estava acontecendo.
A conclusão final foi que o incêndio ocorrera por causa da mania da Dona Dita de ficar com velas acesas na casa durante a noite inteira.
A única coisa que ainda intriga o povo daquela comarca até hoje é o destino dos pais do Joanico. Pois no espaço de uma semana, de um para o outro, ambos foram encontrados mortos em sua casa. Segundo o legista, foram picados, em sua cama, por uma aranha extremamente venenosa. E até hoje tem gente que jura ouvir o latido de dobermans à noite, embora nas redondezas ninguém mais tivesse essa raça de cachorro.