CIPRIANO - O PACTO

    — Então, Cipriano, precisamos que você escolha alguém. Uma vida para salvar todos os demais!

    Após manear a cabeça, olhando para a saída da caverna apreensivo, com as mãos suadas e a boca seca, ele pensava em todas aquelas pessoas que dependiam dele. Eram dezessete fugitivos contando com ele e Justine. Todas elas eram pessoas que depositaram sua confiança e suas vidas nas mãos dele. Afinal, ser escravizado, tentar a fuga e ser recapturado, naquele local, era certeza de ser chitabetado até a morte em praça pública.

    Aquele ser de aspecto horrendo, uma mistura de homem com serpente, aqueles olhos frios, eternamente abertos, aquelas palavras que ressabiavam na mente dele com aquele sotaque carregado do no “s”. Não conseguia simplesmente entregar alguém em holocausto. Engoliu a seco e falou:

    — Eu me ofereço.

     Um sorriso maquiavélico brotava daquela máscara escamosa:

   — Você? Tem certeza? E quem vai lidar conosco, os Deuses Antigos do Submundo? Acha que alguma daquelas ovelhas desgarradas terá coragem de lidar conosco sem sair correndo de medo só para ser devorada e sairmos caçando os demais imediatamente depois?

    Aquilo serpenteava cercando Cipriano com a língua bífida a tocar em seu rosto:

    — Só deixamos você passar porque te conhecemos. Você era quem fornecia os sacrifícios quando era pajé dos Tupis.

    Cipriano encarou aqueles olhos amarelos de pupilas verticais e disse:

    — Aquilo foi em outra vida e eles não eram sacrifícios! Eram criminosos que eram banidos para as terras amaldiçoadas!

    Para nós, tanto faz. Você cumpria os rituais de entrada e os repetiu ao cruzar a Serra Grande. Lembre-se de que vocês estão sendo caçados também. Nós sabemos de tudo!

   Cipriano se lembrou dos capitães do mato e sabia que, assim que amanhecesse e os senhores de engenho sentissem falta dos seus escravos, sairiam à caça dos fugitivos. Era só uma questão de tempo.

    — Podemos ir lá fora e lhe ajudar a escolher, se quiser!

    Ele tremeu. Quando cruzou a Serra, sabia que os Deuses Antigos do Submundo viriam ao seu encalço. Tinha pedido para todos os demais ficarem esperando enquanto ele faria os rituais e pediria permissão para passar. Sabia que, caso os Deuses Antigos se mostrassem, os demais fugiriam desesperados e cheios de meio, do jeito que os homens serpentes gostavam de devorar suas presas.

    — Não precisa! Podemos resolver isso aqui mesmo.

    Mais uma vez a serpente sorriu.

    — Que bom… veja pelo seguinte ângulo: vamos fazer uma troca. Você nos entrega alguém e, além de deixarmos você passar com seu grupo, faremos um pacto com você - protegeremos o seu grupo e te daremos um cajado poderoso para repelir as ondas de invasores que virão ao seu encalço.

    — Isso está bom demais para ser verdade!

  — Por acaso nós já descumprimos algum acordo? Nós estamos demonstrando extrema benevolência e você responde dessa forma! Por acaso voltamos atrás em nossas palavras?! Você que ver a ira dos Deuses caírem sobre você e seu grupinho ridículo?!

    O homem serpente estava ficando visivelmente irritado, mudando o seu corpo de forma que ficou ainda maior, aparentando ter quase uns três metros de altura e com a sua íris mudando do amarelo para o vermelho alaranjado. Não bastasse isso, ele começou a ver vários outros pares de olhos semelhantes brotarem da escuridão da caverna. Com vários sibilares ecoando ao fundo.

    — Feito! Aceito o trato! - Cipriano respondeu logo, vendo que qualquer ponderação extra significaria o fim de todos ali em questão de segundos.

    Aquele ser mudou rapidamente de feição, com as suas placas dorsais vibrando perante o banquete que teria.

    — Escolha quem - determinou a serpente.

    Cipriano se ajoelhou, chorando, de cabeça baixa e usando seus braços para se apoiar no chão, como seu espírito tivesse sido quebrado ao meio, enquanto pensava sobre as pessoas que faziam parte do seu grupo.

    Justine era o seu maior amor. Depois que perdera todos os seus familiares na guerra, ele mesmo só sobreviveu por ser considerado velho e pela misericórdia de um jesuíta, que pediu por sua vida. Desde então servia como guia da região e cuidava dos outros escravos feridos. Foi ao cuidar dela que ele se apaixonou. Sua gentileza, agradecimento e firmeza das convicções o enfeitiçaram. Nunca que ele poderia entrega-la!

   Sebastião era um ex-capitão do mato. Forte, impiedoso, ele mesmo já executara vários escravos e indígenas fugitivos por fustigá-los em praça pública até a morte. Contudo, nos últimos dias fora tomado por um arroubo de piedade e ajudara uma família de escravos (pai, mãe e três filhos entre seis a dez anos) a fugir. Sem a sua ajuda, não teriam ganhado tempo para a fuga. Tampouco poderia entregar alguém da família, coisa rara para pessoas submetidas à escravidão.

    Sua ética não o permitiria entregar Euzébio, como ele, indígena sobrevivente graças à catequese dos jesuítas. Fora Euzébio quem falara para o padre para poupar a vida de Cipriano. Sua gratidão para com ele era eterna.

    Jonas era um pobre coitado. Um branco pobre que era escorraçado por todos, era tratado tão mal quanto um escravo negro. Ao presenciar a fuga do grupo, implorou para juntar-se a eles. Vivia bêbado pelas ruas a dormir pelas coxias.

    Outras quatro escravas caseiras teriam fugido com Justine. Ainda não as conhecia muito bem, mas sabia dos horrores que sofreram nas mãos do seu senhor. Outros três escravos que estavam trabalhando até tarde da noite nas fazendas pelo caminho se juntaram ao grupo assim que puderam. Cipriano também não os conhecia, nem a sua índole. Sabia apenas que eram pobres almas que mereciam ter uma segunda chance, ao menos tiveram coragem de tentar a liberdade, mesmo sabendo das implicações que teriam caso falhassem. Eram completamente alheio a essas sete pessoas. Seria justo escolher aleatoriamente uma delas e entregá-la em holocausto por simplesmente não conhecê-la? Seria esse o seu crime?

    Eles tinham conseguido levar algumas poucas cabras na fuga, mas os Deuses Antigos do Submundo tinham sido claros que queriam alguém, não um animal qualquer.

 
***

   O sol já estava nascendo quando Cipriano finalmente saiu das cavernas segurando um cetro, um bastão de madeira, com uma cobra de ouro a rodeá-lo com um rubi na ponta, que ficava encaixado na boca da serpente de ouro. Os olhos dela eram como esmeraldas brilhantes.

    Seu semblante era atribulado, a testa franzida e olhos vermelhos, de olhar vazio, contrastava com a alegria de Justine ao vê-lo.

    — Graças à Deus você voltou!

    — Deus não tem nada a ver com isso - resmungou baixo e rispidamente.

    Justine o abraçou mesmo assim, aliviada. Cipriano já tinha a avisado de que, se ele não voltasse, seria ela quem lideraria o bando, e que, nesse caso, ficassem o mais distante possível da Serra.

    — E agora? O que fazemos?
    — Que bastão é esse?
    — Para onde vamos? ...

    As perguntas brotavam profusamente, até que Cipriano gritou:

   — Calem-se! As tropas do Capitão do Mato estão à caminho! Apenas me sigam em silêncio! Em algumas horas encontraremos um bom lugar para acampar.

    O grupo, assustado com que acabara de ouvir e de quem eles acabaram de ouvir, se calou, mas em suas mentes borbulhavam dúvidas sobre se poderiam realmente confiar as suas vidas e seu destino nas mãos naquele novo líder.

 
Manassés Abreu
Enviado por Manassés Abreu em 11/05/2020
Reeditado em 18/05/2020
Código do texto: T6944252
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