As treliças da janela  deixavam passar feixes de luz, projetando na parede imagens invertidas de transeuntes que passavam na calçada. Em sua imaginação, Ravenala dava destino às pessoas vistas nas imagens: as velhas de filó iam  à Basílica Santa Teresinha; as pessoas mais jovens, Quinta da Boa Vista ou Praça da Bandeira. Todas seguiam de cabeça para baixo até desaparecerem de seu alcance visual.

Acomodou-se em sua cama e usou dois travesseiros, de modo que, com a cabeça mais alta, pudesse continuar vendo as imagens invertidas que passavam.

Depois de algumas horas assistindo a seu cinema em casa, cansou-se de ver imagens desfilarem na calçada e de dar destino a elas. Fechou os olhos, e de repente, teve a  sensação de estar caminhando em um túnel. A cada passo, tudo ia ficando mais claro, até que saiu do túnel e viu-se diante de paisagens paradisíacas.

Devo estar na Ilha dos Sonhos — disse para si mesma, enquanto caminhava na areia da praia.
Próximo do golfo que punha ponto final em sua caminhada, viu um vulto de  aspecto humano, parado no limite das águas.
Deduziu que fosse um náufrago e se lhe passou na mente episódios de náufragos acometidos por alucinações, que veem na presença de um estranho algum tipo de  ameaça.

Teve medo.

— Pare! Disse Ravenala ao perceber que a pessoa se aproximava dela.
Parou.
Naquele ponto, as linhas do rosto do vulto, até então desconhecido, encontraram registro na memória dela.
— Bob, é você?
— Ravenala! Como  chegaste aqui?
— Não sei. Só sei que estou aqui.
E beliscou o braço para ter certeza se estava em carne e osso.
— Acho que estamos perdidos numa ilha.
— Perdidos? Isso aqui, isso aqui é um paraíso!
— Paraíso perdido.
— Não mais perdido. Nós o encontramos.
Os dois caminharam na orla, deixando uma única  pegada na areia.
— Olha como é bonito aquele  paredão, com nuances roxeadas.  
— Crepuscular. Parece neve tocada por raios solares.
— Nebulosa. Estamos no princípio da criação do universo.
— Não sinto o calor da explosão. Sinto frio.
— Somos náufragos. A algidez vem das vestes molhadas. Precisamos aquecê-las. 
— Não temos como fazer fogo.
— Façamos  um ninho com  fibras de coco, folhas secas,  e gravetos.

A sugestão agradou.

Robert provocou atrito do seu canivete, esfregando-o contra uma pedra.

E...
Depois de muitas tentativas, surgiu uma fumaça acanhada.

Ele soprou.

Lentamente, uma língua de fogo subiu entre a fileira de pedras, previamente preparadas.
Esticou a camisa espetando-a nas extremidades de duas varas finas e em pouco tempo, a veste estava enxuta.

 Vestiu.
— Agora faça o mesmo com sua blusa — disse ele.
— Então, feche os olhos.

Ela repediu o procedimento com as peças de baixo.
E quando Robert foi executar a mesma manobra para secar seu short, não precisou pedir. A moça afastou-se e ficou de costas para ele.

Na companhia de Robert, Ravenala fez o caminho de volta, deixando o golfo  a suas costas.
 Estava cinco passos à frente dele, quando, de súbito, ela correu em disparada.
— Dou um doce se me pegares.

Suas pernas ligeiras tinham a velocidade de uma avestruz.

— Cuidado, — gritou Robert.  — Olhe o trem!...
Ela parou.
Pôs as mãos na cintura.
— Que trem?
— Repare bem na linha  da orla.  Não estamos só. Há um homem de terno azul com uma pasta de executivo na mão.
— Não o vejo.
— Tomou o trem.
— Cadê o  trem! 
— Já foi.
— E os trilhos?
— Não há trilho, nem estação.
—  Se estou sonhando, tu entraste em meu sonho.
— Talvez não!
— Como assim?
— Viagem astral.
— Não lido com essas coisas.
— Se não estamos sonhando, nem em projeção astral. Fomos engolidos no Triângulo das Bermudas, quando fazíamos Cruzeiro pelo Atlântico.
— Esta viagem ainda não aconteceu, Bobinho. É apenas um sonho alimentado   há anos!  Além disso,  seria possível desviar tanto assim a rota?
— Qual o itinerário do Cruzeiro que desejas fazer?
— Sair do Brasil, conhecer o Panamá, as Ilhas do Caribe...
— Então não está tão fora de rota assim.
— Sugeres que fomos abduzidos?
— Abduzidos ou apanhados por uma força sobrenatural.
— Como? Se estávamos cada um de nós em sua própria casa, e viemos parar no mesmo lugar ao mesmo tempo?
— Para ser abduzido, não precisa sair de casa. Por outro lado, o tempo em outra dimensão não é igual ao nosso. Pode ser que tenhamos entrado em um buraco de minhoca. E daqui a trinta e cinco anos pousaremos em algum aeroporto do Brasil.
— Sugeres que tomamos um atalho no espaço aéreo, sem termos pegado avião?
— Não sei. Já levantei todas as hipóteses possíveis e imagináveis. Só resta acreditar, agora noutra possibilidade.
— Qual?
— A de  estarmos em um mundo abaixo da crosta terrestre.
— Acreditas que existe um mundo habitado por humanos abaixo da crosta?
— Pode ser. Mas, não tão humanos assim.
— Diabólicos?
— Talvez sim. Talvez não. Inferno ou purgatório. Céu é que não é.  Almas que no primeiro julgamento, não mereceram o céu devem ficar lá.
— Morando no submundo?  Céu, Inferno e Purgatório não é um lugar. É estado de espírito. 
— Há relatos que em êxtase, quando adorava a Jesus Eucarístico, Santa Francisca Romana, obteve de Deus a graça de visitar o Céu, o Inferno e o Purgatório.
— A final, Céu, Inferno e Purgatório é lugar ou  estado de espírito? Só consigo imaginar Céu, Inferno e Purgatório, se puder conceber o conceito de espaço geográfico.
— Mistério divino. E o que é mistério, não pode ser compreendido pela natureza  humana. Sendo estado de espírito, quem está próximo de Deus, está no céu. Quem não está totalmente afastado, mais ainda não goza plenamente da presença de Deus,  está no purgatório. E quem não tem Deus. Não tem paz. Vive no inferno.
— Prefiro acreditar  que existe um mundo habitado abaixo da crosta. E que não seja nem purgatório nem inferno. Gostaria de conhecer um lugar assim, contanto que pudesse sair dele, a hora que me conviesse.
— A crosta terrestre mais externa  é  a parte superior da litosfera, com uma espessura variável de 5 a 70 km, e é constituída por basalto e granito. Quem sabe, vivem lá as almas penadas?
— Com esta descrição, viveu lá o Capitão Nemo.
— Falo sério. Se houver fressuras entre as pedras, já que estamos falando em uma profundidade de setenta quilômetros abaixo da superfície, e espalhada por toda a extensão da Terra,  pode  existir alguma forma de vida.
— Até certo ponto, faz sentido. Somos uma bactéria gigante, e, como tal, vivendo em constante processo de mutação, modificando forma e hábitos, de acordo com o ambiente em que vive. Quem sabe, tenhamos similares que, ao longo de milhões de anos, conformaram-se com o submundo abaixo da superfície da Terra!
— Se estamos no submundo abaixo da crosta terrestre, como justificar este mundo desconhecido, que aliás, parece fazer parte de outra dimensão?
— Pode ser que estejamos vivendo uma Experiência de Quase Morte.
—  Cruz credo! Com certeza, se houver vivente da espécie humana, não chegou aqui por vontade própria. Se isso não for o inferno, tem tudo para ser o purgatório.
— Por acaso é possível imaginar que tem animais no inferno? Ou mesmo no purgatório? Pagando por qual culpa, se a ele não foi dado o direito de escolher entre o Bem e o Mal? Olhe aquela gaivota que acaba de passar em voo rasante. Parece regozijar-se com o vento que toca suavemente suas asas.
— Linda! A distribuição das cores de sua plumagem, lembra as vestes de freira.
— Ela está vindo em nossa direção, com ares de quem não gostou de nossa presença.
— Há quanto tempo estamos aqui?
— Não sei. Tudo é tão claro, como se não houvesse noite. O Sol se move. Balança como o pêndulo do relógio de parede.
— Dourado. Esférico, mas não o vejo balançar.

Os viajantes do espaço compreenderam, que não viam a mesma coisa. Nem sempre viam aquilo que ao outro era revelado. Em milionésimo de segundo, tudo mudava. Assim, quando Robert viu o trem e disse olha o trem, aquele amontoado de ferro em movimento, já não pôde mais ser capturado pela retina de Ravenala. O mesmo porém, não aconteceu com a gaivota. Ambos viram a ave. Ela  retrocedeu sem atacar, rumo ao  mar aberto, tomando-se cada vez menor, à medida que se afastava da costa, até desparecer na imensidão azulada entre o céu e o mar.
Longe dali, um pico montanhoso  destacava-se da cordilheira, fazendo lembrar o dedo de Deus apontando para o céu.
Adiante, um vulcão adormecido, desperta. Lança lavas que descem  em direção ao mar, arrastando vultos, semelhantes à espécie humana.

Ouvem-se gritos.

Cenas dantescas desfilaram na mente de Ravenala, como se ela  estivesse diante de  condenados ao fogo que nunca se extingue.

 Os atormentados, tinham o rosto desfigurado e todo o corpo se contorcia de dor. Parecia que  corpo, mente e alma, sofriam simultaneamente duras penas por suas transgressões.

Os que  pecaram pela língua, sua língua ardia  nas chamas, se pecaram  pelas mãos,  olhos, ou ouvidos, sofriam nos respectivos membros dores indescritíveis. E assim, todos os sentidos padeciam por causa de seu mau uso.
Absorta em seus pensamentos, ela divagava: “Aonde teus  olhos te levaram? Em que canal sintonizaste teu ouvido? As pernas, aonde te levaram tuas pernas? Em que tuas mãos tocaram?”

Depois de chamar o nome dela, repetidas vezes, Robert tocou levemente no ombro da moça.

— Em que mundo estás, Ravenala?
— Não sei. Há pouco, falávamos disso e não chegamos a conclusão alguma.
— Perguntei em que mundo viaja teu pensamento.
— Estive no purgatório e no inferno, lá todos os sentidos sofrem, se eles em vida, se conformaram com  as obras do mal. Imagine quem pecou pelo tato, sentir-se  cercado por milhões de baratas caminhando em seu corpo?
— Eca,para com isso, menina!

Robert tinha nojo de baratas, um nojo de dar medo.
— Algumas pessoas que voltaram de um coma profundo, dizem que visitaram o purgatório.  Não sei até que ponto, relatos de Experiência de Quase Morte é fantasioso ou verdadeiro.

— Nem me fale em EQM. Dá medo só de pensar.

As visões e experiências de túnel que eles tiveram eram consistentes demais para ser apenas projeção astral.
Robert e Ravenala estavam em algum lugar diferente do planeta Terra. Teria Deus, permitido que eles visitassem o purgatório?  Vissem cenários  tenebrosos? Eles viram pessoas derretendo como cera, e voltando outra vez a ter a forma corpórea. E novamente, derretiam em  processo de desfazimento e reconstrução da matéria. Choravam e suplicavam: “Pai Abraão, permita que Lázaro toque pelo menos com seu dedo em minha língua!...”
Como se estivessem no palco, apresentando uma peça teatral, Robert e Ravenala caminhavam passo a passo, marcando o passo, preguiçosamente.

 Até que.

Ele parou.

—  É hora de colocar as sandálias nos pés e encerrarmos a caminhada.

Mal acabou de pronunciar  estas palavras, desapareceu.

— Quero sair daqui — disse Ravenala, aos gritos — Chanana, Chanana, tire-me daqui!...
O trinco deu um estalo.
Girou, e a porta se abriu.
—  Ravenala, se não levantares logo, vais perder a primeira aula.
— Cadê Bob?
— Que Bob? Ele esteve aqui ontem...

Sentada na cama, Ravenala deixa transparecer que ainda não conseguiu realinhar seu pensamento.

— Deve ser triste a vida numa ilha deserta, não é mesmo, Chanana?
— De onde você tirou isso, menina?
— Nada não, tia.

Depois deste episódio, Ravenala apagou a fantasia de encontrar náufrago em uma ilha deserta e passou a alimentar o desejo de  descobrir uma ilha em que ninguém jamais houvesse habitado, nem mesmo os fenícios.  

Ela vivenciara cenas terríveis do despertar de um vulcão. Teria visitado a Ilha do Fogo?

Ainda divagava, como se pairasse entre o Céu e a Terra,  quando Jeremias apareceu na porta.

— Vamos, minha filha. Estamos atrasados.
Foram.

Venceram o primeiro sinal de trânsito, o segundo, o terceiro, e Jeremias não ouviu uma vez, sequer, a voz da filha. Ravenala queria chegar logo no Colégio Marista.  Estava ansiosa para saber se Robert também tinha estado em carne e osso na Ilha do Fogo.

A presença deles na ilha era muito real.

Dois horários contínuos de língua portuguesa pareciam durar uma eternidade. Finalmente, o bedel tocou a sineta do colégio, indicando que era hora do  lanche.

De longe,  Robert avistou Ravenala no pátio da escola.

 Aproximando-se dela e perguntou:

— Já pensaste em ser freira?
— Por que esta pergunta, Bob?
— Ora, as freiras são consagradas a Deus. Eu não arriscaria concorrer com o Criador.
—  Bob, de Deus não se zomba!...

Robert   reconheceu que seu discurso  não fazia dele um conquistar de mulheres. Sabia que a fêmea escolhe o parceiro pela capacidade de lhe dar uma cria geneticamente saudável. Mas, que atrativo tinha  ele? Beleza física, cultura, recursos financeiros? Nada! Nada disso ele tinha.


Adalberto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou."
Créditos da imagem: 
Michele Celeghin