O quadro

Sempre fui fã de arte. Desde a clássica à contemporânea. Da esteticamente suave à bizarra. Tudo que fosse relacionado ao tema eu amava e adquiria.

Meu talento para pintura se deu muito cedo e então, após anos de estudo e dedicação, tornei-me um pintor de renome em minha cidade. Casei-me com uma escultora que esculpia como ninguém. Eleonora.

Depois de anos de casamento decidimos ter um filho. Viera um menino. Coloquei-lhe o nome de Lúcio Flávio.

Ensinei o pequeno Lúcio a desenhar e desde criança quis ingressá-lo no mundo artístico. Porém mesmo com sete anos ele só sabia desenhar rabiscos e rasgar papéis. Contudo, estava disposto a ensina-lo, embora ele só ficasse naquilo. Rabisca, rasga. Rabisca, rasga.

Minha esposa, possuidora de grande sabedoria, desejava uma pintura da família em nossa sala de visitas. Fiz com toda a dedicação e fervor de alma, mas ainda sentia uma angústia que não sabia explicar. Faltava algo mais... vivo e diferente!

Certa vez comprei um quadro de beleza peculiar e excêntrica. O vendedor ficou muito alegre ao me ver em sua loja. Apontei o tal quadro e perguntei sua história. Ele disse que era de um autor expressionista com pseudônimo totalmente desconhecido para mim. Todavia sua bizarrice se encontrava no fato de que a tela era composta apenas por vários traços e riscos tortos de cores diferentes, que indicavam verdadeiros golpes com o pincel e uma pequena mancha preta no meio.

Entretanto o vendedor afirmou que o quadro possuía má fama, ou que trazia maldição, uma vez que, segundo relatos, seu autor foi encontrado em sua casa morto com vários cortes por todo o corpo. No entanto ele mesmo disse que isso não passava de lenda e que na verdade os acadêmicos mencionavam que provavelmente o artista apenas quis inventar alguma história para que assim pudesse ganhar fama em cima do boato.

Pedi para colocarem o quadro em meu carro, paguei e agradeci ao bom atendimento do rapaz. Antes de sair da loja ele recitou para mim a frase de Van Gogh:

"Não esqueçamos que as pequenas emoções são os grandes comandantes das nossas vidas e que às obedecemos sem saber".

E desejou-me bom dia.

O quadro fora colocado num corredor qualquer. Trouxe minha mulher e filho para admirá-lo. A estrutura dos traços fortes lembrava um pouco a obra N°5 de Jackson Pollack.

Num momento senti desejo de pintar e fui para meu cômodo de pinturas. Enquanto preparava tudo, quis trazer o pequeno Lúcio para acompanhar meu trabalho. Sentei-o numa pequena poltrona:

- Olha, filho. Fica vendo o pai pintar, ok. Depois quero te ensinar a fazer também.

Dei-lhe papéis e lápis de cor. Comecei a pintar.

Fiz apenas um simples desenho, uma casa. Quando olhei para meu filho, ele estava rabiscando e rasgando papéis. Não parecia se importar. Isso doía em mim. Tirei-o do cômodo e coloquei ele no quarto. Ia voltar para meu local de trabalho. Passei pelo corredor onde estava o quadro que eu adquiri. Olhei, pensei no futuro do meu filho. Não concluí a pintura.

- Ele nunca vai entender. Que decepção! E pensar que todo um legado e uma vida dedicada a arte não terá continuidade nem descendência. Não. Meu filho não pode ser dado a futilidades. Não. Por Deus!

Voltei para meu cômodo de trabalho, passei um bom tempo olhando para o meu quadro inacabado e num acesso de frustração, bati o pincel várias vezes sobre a tela na imagem do meu filho.

Tempos depois comecei a acordar com barulho de garras se arrastando no chão e sentir, de vez em quando, uma forte e gelada respiração perto da minha cama.

Pensei ser minha esposa, mas ela dormia calmamente ao meu lado. Fui até o quarto do meu filho. Passei pelo corredor onde estava a pintura nova. Abri a porta do quarto onde achei o pequeno Lúcio deitado e dormindo, mas no chão do seu quarto haviam vários pedaços de papel rasgados com rabiscos.

- Que bagunceiro. Devia estar acordado até agora e correu pra cama quando me ouviu chegar. Amanhã eu varro isso.

Passando pelo corredor, olhei novamente a pintura. Nada de anormal. Porém só de pensar no boato da morte do autor daquela obra fiquei entre a superstição e o ceticismo.

Ri de mim mesmo. Cedi ao ceticismo. Voltei para meu quarto.

As noites continuavam barulhentas. Mais geladas do que outras. Uma vez eu senti nitidamente que pelos roçavam em minhas pernas quando deitado. Tive pesadelos horríveis e sempre imaginava que alguém ali me observava.

Porém nada havia na casa de diferente. Confesso que por alguns instantes me imaginei numa história clichê de quadros amaldiçoados. Mas acreditar nisso seria tolice da minha parte.

Minha esposa passou a ter febre. Tinha medo de dormir ali naquele quarto e me contou que uma vez pode sentir algo fino e afiado passando por entre seus braços como se fossem facas.

- Isso se deu desde o dia em que você comprou essa porcaria de quadro. Joga isso fora, pelo amor de Deus.

- Mulher, o quadro não tem nada de mais.

- Não quero saber. Quero me ver livre dele até amanhã de manhã.

Mas minha insistência a convenceu e deixou o quadro em casa por mais um dia. Além do mais, a tela fora relativamente cara.

A noite, acordei com olhos disformes mirando nos meus no meio da escuridão. Um som como quem arrasta a ponta de algo afiado levemente no chão.

Ssssss... sssssss...

Algo roçou em minhas pernas. E não era minha esposa.

Pulei da cama rapidamente e removi com ímpeto o lençol de cima de minha esposa que acordou assustada com meu gesto. Não havia nada. Acendi a luz. Nada.

Lembrei dos rumores sobre a maldição que poderia haver no quadro. Levantei-me e de madrugada peguei aquela obra e sem me importar com o quanto paguei, joguei ela no fogo da lareira para nunca mais ter problemas.

Nesse instante ouvi um grito. Não pude identificar de onde vinha.

Corri até o quarto da minha esposa. Ao chegar, ela estava repleta de cortes por todo o corpo, como se tivesse sido pincelada com sangue. Com sua voz fraca, disse que sentiu algumas coisas se roçarem em seu corpo e enxergou uma sombra disforme que se moveu para debaixo da cama.

Quando fui olhar, lá estava meu filho, Lúcio. Perguntei o que ele fazia ali embaixo, mas não me respondeu. Apenas me olhava e tremia.

Estendi o braço para tirá-lo dali, porém quando o segurei pela mão direita e o puxei, seu corpo se desfez em vários pedaços de papel rasgado, todos contendo rabiscos de cor vermelha.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 06/05/2020
Reeditado em 13/05/2020
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