A morte me acompanha

“A morte é apenas um caminho para outro caminho.”

Nicodemus Asis era um empresário. Um empresário da morte. Era dono da funerária “Morte Feliz”, localizada em Botafogo, um bairro elegante da Zona Sul carioca. Nicodemus não reclamava de falta de trabalho, muito pelo contrário: clientes nunca lhe faltavam. Nicodemus Asis tinha a morte presente em seu dia a dia, desde que herdou a funerária de seu pai há 20 anos. No início, sofria de tanatofobia, uma fobia que se caracteriza por um medo exagerado da morte, porém, com o tempo, Nicodemus foi se acostumando com a ideia da morte e do que ela representa (o fim da vida) e passou a aceitá-la como algo natural, algo inevitável na vida: a ideia de que não somos eternos e que neste mundo só temos uma certeza: a de que um dia todos nós morreremos. Porém, a relação “amigável” com a morte mudou no dia 6 de junho de 2006. Neste dia, quando Nicodemus saía da funerária para almoçar, uma velha cigana olhou para ele, bastante assustada, e gritou erguendo as mãos para o céu: “A morte te acompanha! A morte te acompanha! Você vai morrer e em breve!”. E após dizer estas trágicas palavras, a velha senhora saiu correndo pela rua para lugar ignorado. Depois deste fato estranho e sinistro, a noite deste dia reservaria, ainda, mais más notícias para Nicodemus Asis. Exatamente às nove horas da noite, o dono da funerária recebe um telefonema com uma triste notícia: a morte de João, seu único filho, num trágico acidente automobilístico. Na hora, Nicodemus ficou paralisado e só vinha a sua mente o momento em que entregou a chave do carro mais badalado do ano a João como prêmio por ele ter passado no concorrido vestibular de medicina da UFRJ. Nicodemus ainda se lembra das últimas palavras que disse a seu filho: “Divirta-se!”. João sorriu e deu um abraço apertado e afetuoso em Nicodemus, um abraço de adeus. João seria um ótimo médico, se os dados do destino não estivessem contra ele. Mas eles estavam. Pedro e Henrique, amigos de infância de João, que estavam no carro com ele, tiveram a mesma sorte (melhor dizendo, o mesmo azar!): morreram esmagados quando o carro que João Asis dirigia se chocou de frente, após uma ultrapassagem infeliz, com um caminhão carregado de cerveja, às oito e quarenta da noite.

No dia do enterro, no Cemitério São João Batista, Nicodemus e Ruth, mãe de João, estavam inconsoláveis. A chuva que caía neste dia só não era maior que as lágrimas que caíam dos olhos deles. O cemitério estava lotado de amigos e de parentes de João, todos querendo dar o último adeus ao jovem de apenas 19 anos. O caixão de João Asis desceu lentamente à sepultura, ao som do hino do Flamengo, seu time de coração, e quando, enfim, chegou a seu destino final, Ruth jogou rosas vermelhas nele. Nicodemus, visivelmente fora de si, gritou: “eu faria qualquer coisa para ter meu filho de volta. Qualquer coisa mesmo!”. Após dizer estas tristes e desesperadas palavras, olhou instintivamente para o fundo de onde a multidão de presentes no cemitério se aglomerava e viu um vulto preto. Esfregou os olhos e olhou novamente para o lugar onde tinha visto o sinistro vulto. Desta vez não viu nada. Nicodemus Asis saiu do enterro com uma sensação estranha. “Será que o vulto que vi era meu filho?”, pensou enquanto dirigia o carro que levaria sua esposa e ele de volta ao lar, na Tijuca.

Nicodemus Asis caminhava na noite chuvosa, por uma Conde de Bonfim deserta e mal iluminada, quando, de repente, ouve um barulho atrás dele. Instintivamente, olha para trás e nada vê. Continua a caminhar normalmente como se nada tivesse acontecido. Subitamente, ouve novamente um barulho… de passos! Olha para trás e vê João, seu filho. Ele olha para Nicodemus e sorri. Um sorriso demoníaco e sarcástico. Nicodemus esfrega bem os olhos e olha novamente na direção de João. A imagem do jovem some e vira um vulto, um vulto das trevas, que se transforma numa revoada de morcegos e deixa no ar uma gargalhada que não era deste mundo…

“Não! Não! Socorro! Socor…”

“Calma, Nicodemus! O que aconteceu, homem de Deus?”, pergunta Ruth preocupada.

“Eu sonhei com nosso filho, mas não era ele no sonho… era um ser diabólico e cruel…”.

“Volte a dormir, Nico. Ainda são duas da manhã. Foi só um pesadelo”.

Nicodemus tenta dormir novamente, mas não consegue. O rosto do ser maligno que usou a imagem de seu filho não lhe sai da mente, sequer por um segundo.

Uma semana após o enterro de João, Nicodemus volta a trabalhar. Uma senhora baixa de semblante triste foi comprar um caixão para enterrar o filho. Não regateou. Escolheu o caixão mais caro e bonito. Afinal de contas, era seu único filho. Na hora, Nicodemus pensou em João. Quando olhou para a senhorinha viu um vulto preto do lado dela. Esfregou os olhos e olhou novamente. Nada viu. Acordou do transe com a velhinha o sacudindo. Naquele dia, teve a certeza de que o mundo dos mortos estava mais próximo dele do que jamais estivera. Assim que chegou em casa, Nicodemus decidiu se abrir com sua mulher e contar para ela sobre os vultos que começou a ver após a morte de João. Ruth, que também sofria com a perda recente e repentina do filho, o orientou a procurar um médico, um psiquiatra, assegurando que os vultos que ele via não eram reais, mas frutos de sua imaginação. Nicodemus recusou. Não era maluco. Por que, então, procuraria um médico que cuida de doidos? Não. Descartou veementemente esta hipótese e voltou a sua vida normal. Entretanto, duas semanas depois, encontrou uma sinistra carta debaixo da porta de sua funerária. Eis o que ela dizia:

Às vezes, as pessoas se acham invencíveis, imortais e acham que a morte nunca chegará para elas ou para seus entes queridos. Mas elas estão enganadas. Redondamente enganadas. A morte é implacável e chega para todos: do rei ao plebeu, do rico ao pobre, do feio ao bonito, da mulher ao homem, do jovem ao velho quando menos se espera. Encontre-se comigo, Nicodemus Asis, amanhã, às três horas da manhã, no cemitério onde foi sepultado seu filho, se tiver amor à vida. Venha só e em paz. Somente eu poderei ajudá-lo a livrar-se do mal que você próprio atraiu.

Um amigo

Nicodemus assustou-se com o teor da carta. Quem seria o autor dela? Ele saberia que ele, Nicodemus, estava tendo alucinações? Como sabia de sua vida? Seria algum conhecido? Perguntas que só seriam respondidas se Nicodemus aceita-se o sinistro convite. O dia passou como uma tortura chinesa para Nicodemus: doído e bem devagar. Quando chegou em casa, por volta das sete e quinze da noite, não contou sobre a maldita carta para esposa. Passou a noite em claro pesando os prós e os contras de ir se encontrar com “o amigo”. Às duas da manhã, movido mais pela curiosidade do que pelo medo, decidiu aceitar o estranho convite.

Chovia torrencialmente na cidade do Rio de Janeiro, especialmente na Zona Sul. O carro de Nicodemus patinava na pista escorregadia como pau-de-sebo. Com menos de quinze minutos para o prazo dado pelo “amigo” se esgotar, o dono da funerária chega, enfim, ao Cemitério São João Batista. Não havia ninguém. Nenhuma vivalma na rua. Dentro do carro parado Nicodemus olhava para o relógio a cada minuto enquanto a chuva desabava do lado de fora. Exatamente às três horas da manhã, um carro preto e de vidros escuros para ao lado do seu. Dele sai um homem negro, alto e forte como uma montanha, vestido todo de preto e com uma barba tão cerrada que acentuava sua calvície.

“Você é… o… o amigo?”, perguntou Nicodemus assustado com a visão do sinistro homem.

“Sim. Sou eu. Venha comigo, Nicodemus. Não temos um minuto sequer a perder…”, diz o misterioso homem abrindo a porta do cemitério com uma chave.

Já dentro do cemitério, Nicodemus segue o soturno homem como uma sombra, guiado pela luz tênue da lanterna que o enigmático homem segurava em sua mão esquerda. Quando chegam ao túmulo onde está enterrado o filho do dono da funerária, o descomunal homem e Nicodemus param.

“Qual é o seu nome?”, pergunta o dono de funerária num misto de curiosidade e arrependimento.

“Chamo-me Lázaro. Mas, agora, não é hora para apresentações. Tome esta pá. Cave! Anda!”

“Como assim? Cavar?”

“Sim. Temos que tirar o corpo de seu filho daí”.

“Mas, por quê?”

“Não temos muito tempo, homem. O dia já vai amanhecer. Ande! Cave!”.

Nicodemus cavou. Cavou e cavou. Quando o caixão do filho apareceu tudo ficou claro para ele.

O homem que estava com ele, Lázaro, “o amigo” da sinistra carta, ou seja lá o diabo do nome que ele tinha, mandou o dono da funerária abrir o caixão do filho. Quando Nicodemus abriu o caixão de João, o homem bateu-lhe com a pá na cabeça. Nicodemus caiu dentro do caixão como um copo de cristal que se quebra ao cair no chão. Atordoado, como uma barata que recebe uma chinelada certeira, mas não mortal, ouve a história do misterioso homem. Ele não se chamava Lázaro coisa nenhuma. Seu nome era Alvaro Santius, um advogado de quinta categoria, amante de Ruth, mulher de Nicodemus, há anos. Após a morte de João, Alvaro Santius viu uma oportunidade de unir o útil ao agradável: se livrar de Nicodemus, ficar com Ruth, o amor de sua vida, e com todos os bens do empresário após sua morte. Um homem magro e de rosto fino como uma folha de papel que a tudo observava de longe vai até eles. ”Que bom que você chegou, Jorge! Termina o serviço!”, disse o amante da mulher de Nicodemus, fechando literalmente a tampa do caixão, enquanto estendia um maço de notas de cem reais ao sujeito. “Pode deixar, doutor!”, disse o coveiro guardando o dinheiro equivalente a um ano de trabalho, no bolso da calça surrada, enquanto pegava a pá coberta do sangue de Nicodemus. Enquanto Alvaro Santius se retirava do cemitério, a passos largos, o coveiro cobria de terra o caixão onde estavam pai e filho, até enterrá-los de vez. Nicodemus Asis foi enterrado ainda vivo, mas bastante zonzo. Com o escasso tempo que lhe restava de ar e de vida, pensou que logo estaria no mundo dos mortos, o mundo dos vultos que passou a enxergar, após a morte de seu amado filho, e do qual, em pouco tempo, passaria a fazer parte.

FIM

Luciano RF
Enviado por Luciano RF em 05/05/2020
Código do texto: T6937816
Classificação de conteúdo: seguro