PÓ DE GIZ - CLTS 11
Primeiro foram os materiais.
Sempre deixávamos um ou outro lápis cair no chão. Uma borracha. Eu mesmo já perdi várias. Canetas então… nem se fala. O problema era onde caíam. Procurávamos embaixo das mesas, das cadeiras, pedíamos para alguns colegas levantarem as mochilas. Nessa de procurar e nunca achar, suspeitávamos dos "folgados da sala". Toda sala tem. Geralmente chamado Kevin, Maykon ou Caio. Meu Deus, todo o Caio é um demônio.
Só que não eram eles e por mais que fossem mentirosos, covardes e exibidos, dificilmente eram ladrões. Não estávamos num filme de Hollywood onde os adolescentes davam socos na barriga dos mais fracos para que entreguem o dinheiro do lanche. Não perdiam tempo com isso. Só usavam drogas. Mas roubar borrachas, canetas e lápis… não. Isso não.
Então considerávamos o item perdido. O jeito era pedir emprestado ou comprar outro.
As salas e a escola inteira tinha pó por todo o lado. A gente passava a mão num canto perto da janela e ela voltava toda suja. Na porta, em algumas mesas. Uma poeira infinita que não importava o quanto varressem, nunca acabava. Aliás, a escola não tinha vassouras.
Com o tempo se tornou frequente perder algum material. Quase toda a semana eu perdia alguma coisa. Toda a hora tinha que ficar conferindo o estojo para ver se nada caiu no chão e após emprestar um item, contava um minuto certinho depois do final da aula, ia até a pessoa e pedia de volta. Só não com o Diego, meu melhor amigo. A gente só se via na escola, mas ele nunca deu mancada comigo. Nunca mesmo. Tínhamos um trato: JUNTOS COMO IRMÃOS!
Eu morava com minha avó. Não conheci meu pai. Já minha mãe soube que era professora e um dia me deixou na casa da mãe dela e desapareceu. Minha avó diz que ela simplesmente sumiu sem deixar rastros. Eu era pequeno demais para lembrar de tudo.
Depois, foram os cadernos e livros.
Alguns alunos foram reclamar para a diretora, a italiana Manoleta. Suponho que você imagina os apelidos que dávamos para ela e sua cara enjoada. A única coisa que a megera fazia era dizer que ia tomar providência. Só que não foi somente na minha sala. Foram em todas. As coisas desapareciam. E a alegação, pelo que diziam, era a mesma: "Caiu e sumiu, mas ninguém viu".
Claro. Tinha um ou outro que fazia por picaretagem, só que quem hoje em dia rouba um caderno ou um livro didático só por prazer à zoeira? Se fosse eu roubaria outra coisa, porém minha habilidade com roubos era algo que guardava para as brincadeiras de polícia e ladrão, onde eu era o policial. Não me pergunte, mas nunca perdia.
Em resumo, muito aluno precisou passar toda a lição do semestre a limpo em folhas soltas, fichários, naqueles cadernos já com cara de reciclagem que o governo distribui nas escolas. O bom é que algumas aulas eram somente para reposição de matéria e não passavam nada na lousa.
A coisa ficou feia quando sumiu o celular de uma professora, a Betty.
Ela ficou louca de raiva e ameaçou chamar a diretora para dar suspensão para todos os alunos. O problema é que realmente ninguém sabia. Só vimos quando o aparelho caiu no chão no momento em que ela tirou da bolsa. Depois disso mais nada.
Em seguida, mochilas.
Se não me falha a memória, a primeira mochila que sumiu foi da Aninha, uma CDF da segunda fileira. Ela deixava a bolsa no chão com um plástico embaixo para não sujar. Alguns colegas a chamavam de frescurenta, porque diziam que ela tinha preguiça de limpar a mochila. E tinha. É que a poeira era muita.
A mochila sumiu de repente. A única coisa que ficou foi um rastro de pó branco. Ela foi bufando na diretoria. Chegou à sala, vermelha de raiva:
- Aqui, diretora. Estava bem ali. - apontava - Minhas coisas estavam lá. Foi alguém aqui dessa sala e ninguém sai daqui enquanto minha mochila não aparecer. Quero só ver.
E batia com o pé repetidamente e cruzava os braços.
Sem solução.
Depois outra mochila. E mais outra. Noutra sala e com outra turma. Em outro horário. Manhã, tarde… surgiram até boatos de que o pessoal da noite perdeu tênis, blusas de frio e um violão. Eu estudava de manhã e não duvidava que o período noturno tivesse uns trombadinhas por lá.
Eu e Diego conversávamos sobre o assunto de vez em quando:
- Você viu? Disseram que sumiu um Nike novinho numa sala do período noturno.
- Quem te disse isso?
- Sei lá. Me falaram aí.
Diego tinha suas fontes: a própria cabeça. Aquele nerd de óculos viciado em livros e filmes de ficção científica conseguia criar teorias das mais impossíveis e óbvias ao mesmo tempo. Quando tentava explicar a conversa passava do misterioso para o cômico em questão de segundos.
- Eu acho que são alienígenas.
- Quê? Como assim alienígenas, cara? O que tem a ver alienígenas com caneta, caderno e outras merdas de escola?
- Não sei, não. Você não vê como fica o local quando o bagulho some?
- Claro que vejo. Fica um pozinho branco.
- E você já sabe qual o cheiro desse pozinho? É de giz.
- Mano, você é maluco? Anda cheirando pó de giz agora? Compra um pino de pó de gelatina, seu doente.
- Não é isso. Eu coloquei a mão. Senti a textura. Aquilo era giz, mano. E eu tenho outras teorias que se baterem… podem revelar algo pior.
O tempo passou e os perdidos não eram achados. As aulas corriam normalmente. Até o dia em que sumiu uma aluna.
Foi a Kelly. Gostava dela. Escrevi uma carta de amor que nunca tive coragem de entregar. Era uma aluna aplicada, inteligente, sentava no meio da sala, umas fileiras depois da minha. Muito bonita, cabelos pretos, caídos e com aquela franja que a deixava parecendo atriz de novela. Porém ela gostava de outro rapaz, Gustavo. Embora os boatos diziam que a mesma já beijou mais bocas do que eu imaginara.
Tudo foi muito rápido. Aula vaga. Não tinha professor, então a classe tocava o terror. Kelly mexia nas pontas do lindo cabelo preto enquanto conversava com três amigas. Estavam na porta da sala. Diego me cutucava querendo que prestasse atenção em vídeos bestas do seu celular. Porém, eu só tinha olhos para Kelly naquele dia.
De repente, uma enorme poeira se levantou, como se batessem um apagador sujo, a envolveu sem que ela notasse, seu corpo começou a esfarelar e se transformou em pó de giz.
As amigas berraram. Teve gente que paralisou quando viu aquilo. Alguns, dispersos, se assustaram mais com os gritos do que com o sumiço. Pensavam que ela tinha ido ao banheiro ou perambular pelos corredores. Mas não. Kelly foi engolida por uma poeira estranha deixando um montinho de pó branco no chão.
- Diego, tu viu aquilo, mano?
- Vi o quê? - ele falava levantando o olhar que estava vidrado no celular - A tua lindinha apareceu com outro, é isso?
- Não viaja! Estou falando sério. A Kelly foi engolida por uma poeira.
- Não, velho! Jura?
Diego colocou as duas mãos na cabeça.
- Vem aqui comigo.
- Está maluco? Ir para onde?
- Não é fora da sala. É aqui mesmo. Perto da lousa.
Enquanto a sala se alvoroçava, Diego foi até a lousa e passou o dedo no chão:
- Cara, presta bem atenção. Essa sala é puro pó, certo?
- É. Tem muito mesmo.
- Já percebeu que esse pó é branco?
- Sei. Pode ser gesso.
- Olha na parede da janela, cara. Onde é que tem gesso ali? Aliás, me mostra um pedaço de gesso nessa sala.
Não tinha.
- Ok. E o que foi então? - perguntei.
Ele pegou um pedaço de giz da lousa e levantou diante dos meus olhos:
- Giz, cara. Tem uma coisa de pó de giz aqui nessa escola.
- Engraçado. Há poucos dias você falava de alienígena.
- Pois é. Mas eu tinha mais duas teorias. A primeira, seria baseado no arrebentamento da bíblia, onde fala que os que são de Deus vão sumir pra irem pro céu e tals.
- Primeiro se diz ARREBATAMENTO. E, segundo, desde quando Kelly ia para a igreja? E, mesmo assim, não faz sentido. Tinha que ser mais gente, não uma pessoa só. Ela virou Enoque agora, é?
- Olha só. - Diego debochava - Está manjando de bíblia, hein pastor.
- Cala boca. É minha avó que vai à igreja, e de vez em quando me leva. Mas esquece. A primeira teoria não bate porque só sumiu uma pessoa.
- Perfeito. A segunda, é que existe uma coisa no chão ou no ar que leva as coisas e as pessoas para outra dimensão. Pode ver. Como você explica o sumiço dos lápis, das canetas, das borrachas e das demais coisas sem ninguém saber? Simplesmente ficou no chão por muito tempo e vupt! Sumiu! E o que é que tem por toda a escola? Pó de giz, cara! A gente pode estar respirando o monstro se tu quer saber.
Fiquei com isso na cabeça. Mas logo esqueci quando me dei conta que nunca mais veria Kelly. Pensei em rasgar a cartinha, mas deixei guardada.
Os pais dela apareceram na escola e fizeram um escândalo. As aulas foram suspensas e a polícia investigou o local. Levaram para a delegacia o caseiro que morava nos fundos. Ele já tinha passagem por dirigir embriagado anos atrás. Interrogaram e liberaram o coitado minutos depois.
Quando as aulas voltaram, todas as vassouras sumiram. O pó não.
Em poucos dias, vários postes próximos à escola possuíam papéis com a foto de Kelly no centro e um enorme DESAPARECIDA em cima.
O tempo passou e os materiais não sumiam mais. Porém os alunos temiam, como se pressentissem que poderia acontecer de novo. Ou pior.
Duas semanas depois do ocorrido, outro aluno desapareceu de uma sala ao lado. Douglas. Era deficiente, super esperto. Tirava as melhores notas da escola inteira.
Os alunos disseram que estavam na sala, com o professor, e Douglas em sua mesa perto do quadro negro, quando uma poeira branca se levantou do suporte da lousa, o envolveu e deixou apenas um montinho de pó de giz em sua cadeira de rodas.
- Olha aí, cara. Não falei! São monstros de giz que engolem as pessoas. - Diego socava meu ombro.
- Misericórdia. Tem é que exorcizar essa escola. Isso sim.
No intervalo, sentei no fundo de uma mesa no refeitório. Diego sentou ao meu lado. Era dia de macarrão com salsicha, e a fila estava enorme. Porém, ensinei a ele um segredo. Ficar fora da fila para quando a escola pegasse logo a comida dos primeiros caldeirões, nós íamos e pegávamos o almoço quentinho. Não sei porque era assim, mas funcionava.
Dona Gertrudes era a merendeira. Um amor de pessoa. Não tinha quem não gostasse dela. Chamávamos de tia Gê. Quando não tinha mais fila, fui até o local onde se tira o almoço:
- Oi, tia Gê! Tem da quentinha já?
- Oh, é você né, safado. Tem sim, espera que já vou fazer seu pratinho, está bem?
Porém, na mesma hora, pude ver uma poeira branca envolvendo ela no momento em que preparava meu prato. Tia Gê não percebia o pó que estava a sua volta. Continuava a sorrir e colocar comida.
- Tia Gê, tem uma coisa na senhora.
- Tem o quê, filho?
Ela se virou, trouxe meu prato sorrindo. As últimas palavras que ouvi foram:
- Prontinho, meu amor. Do jeitinho que você gost…
E desapareceu deixando um montinho de pó no balcão.
Soltei um grito, atraindo a atenção de todos ali, derrubei meu prato no chão, sujando minhas calças e saí correndo. Diego, vendo isso, foi atrás de mim.
A escola foi fechada em respeito ao desaparecimento da dona Gertrudes. Era uma excelente funcionária. Nunca faltou um dia sequer. Mais fotos nos postes.
Não sabia se o que estava acontecendo era real ou um pesadelo. Se fosse, devia ser um pesadelo coletivo, porque todos falavam do mesmo assunto: "Tem alguma coisa de giz engolindo as pessoas".
As aulas voltaram. O professor Gilberto, de artes, apareceu na sala e propôs que fizéssemos um desenho e entregássemos para ele. Disse para a turma que iria avaliar a nossa força de expressão artística. O quanto do nosso "potencial interno" poderíamos expressar no externo, blá blá blá.
Ele era o professor mais legal. Sabia dar uma bronca como ninguém. Suas aulas eram as que mais prendiam a atenção. E, de vez em quando, ele mesmo dizia:
- Gente, hoje eu estou só o pó. Se vocês ficarem sem bagunçar eu não passo lição, beleza?
Ano passado, o professor Gil me ajudou no final do semestre, me dando um ponto a mais depois que pedi, o que impediu minha reprovação na matéria dele.
Alguns alunos perguntaram para o professor se poderia fazer em dupla ou trio. Ele sabia que era só para conversar, porém deixou mesmo assim, contanto que entregassem o desenho até o final da aula.
Sentei com Diego. Era possível ver alguns alunos olhando com receio para o chão, as paredes e a lousa, procurando algum montinho ou nuvem de pó se formando. Qualquer poeirinha subindo já causava frio na barriga.
Em meio a todo aquela estranheza, Diego era meu alívio. Como era bom saber que tinha um amigo para contar. Do nada ele começou a desenhar um monstro todo mal rabiscado:
- Que porcaria é essa? - perguntei.
- Eu chamo de A Coisa De Giz. Lembra daquele filme Bird Box?
- Lembro.
- Então, tinha aquele louco que desenhava os monstros, né? Só os loucos podiam ficar de olhos abertos do lado de fora.
- E você é louco mesmo. E eu mais ainda por andar com você.
- Não, cara. Na vida real não é diferente. Mas quem os vê são os únicos que não podem ser chamados de loucos. Nunca se sabe quando…
- Ou, ou... Espera aí. Esse papo está estranho. Pode parar. Eu ainda estou com medo disso.
- Eu também, ué. Mas temos que usar a cabeça. Sejamos sinceros, cara. O bagulho está louco.
- Vou nem discutir. Continua desenhando aí, vai.
Os gritos das meninas da sala fizeram com que Diego parasse de desenhar. O professor levitava sentado em sua mesa na frente dos alunos, envolto pela poeira branca de giz. Mas ele não percebia.
- Que zona é essa, gente? Poxa. Já vai acabar a aula e teve aluno que não me entregou…
A poeira branca foi entrando pela boca, nariz, ouvido, encheu os olhos, tudo quanto era buraco. Em seguida o corpo começou a dissolver. Primeiro a pele foi sumindo, os órgãos todos foram expostos e se desfizeram num monte de pó.
Porém, para piorar, aquela poeira fez um redemoinho de vento. Lápis, cadernos, cadeiras, mochilas, até o cesto de lixo rodopiavam no ar. Algumas coisas foram engolidas. Os alunos iam saindo da sala correndo e gritando:
- O professor Gil morreu! O pó levou o professor Gil!
De repente aquele redemoinho fez flutuar um giz e começou a escrever na lousa com letras tremidas:
D I E G O
- É... é o seu nome, mano.
Saímos correndo. Já fora da sala o abracei:
- Não mano! Parece que a coisa quer te levar agora! Eu não quero te perder, cara! Você não! Por favor!
Ele não sabia o que dizer. Só chorava em meu ombro.
Naquele instante todo o pó da escola se ergueu no meio do refeitório e do pátio como uma cortina de fumaça engolindo alguns alunos, funcionários e coisas por perto. A escola inteira estava infestada de partículas de giz pelo ar.
- Vamos sair pela entrada da secretaria! - Diego gritou.
De repente o pequeno redemoinho de vento e poeira branca o arrastou de volta para dentro da sala.
- DIEGO!
Voltei correndo. Já havia perdido muitas pessoas. Não poderia perder meu melhor amigo. Ele não.
Na sala seu corpo girava dentro do redemoinho de pó de giz. As paredes e janelas foram se enchendo de poeira. Mesas e cadeiras voavam e se esfarelavam.
Estendi a mão e consegui segurar a dele. Tentei puxa-lo para fora do redemoinho que começava a desintegrar seu rosto.
- NÃO, DIEGO! - gritei em lágrimas - NÃO ME DEIXA!
Ele sabia que eu não conseguiria puxa-lo de volta. Não havia mais tempo. Seu corpo já estava quase todo branco e esfarelado. Ele olhou para mim, sorriu e disse:
- Juntos, mano... como irmãos!
E pude ver quando Diego sumiu e eu fui engolido pelo redemoinho.
* * * * * * * * * *
Hoje entendo o que aconteceu. Agora sei onde estão os materiais. Estão aqui. Nesse lugar que não sei explicar, mas que parece uma enorme escola toda feita de giz, porque tudo é branco e tudo brilha.
Precisávamos de uma merendeira. Tia Gê está aqui. Douglas também, mas sem cadeira de rodas. Aqui ele anda. Aqui usamos seus materiais, mesas e cadeiras. Temos dois professores: um, é o professor Gil, a outra, para minha surpresa, é minha mãe. Agora descobri porque ela sumiu.
Por isso, classe, não se assustem quando chegarem na sala e encontrarem essas coisas escritas na lousa. E não varram o pó. Somos nós que o jogamos toda a noite para ter acesso ao mundo de vocês. A bem da verdade... isso não é pó. Não posso explicar ainda.
Agora Kelly senta do meu lado e me olha diferente. Acho que dessa vez posso entregar a cartinha. Então, se de repente perceberem que sumiu algum lápis e uma folha de papel, fui eu que precisei.
Estamos bem. Diga a minha avó que sentirei saudades.
Em breve buscaremos novos alunos...
Mas uma coisa ainda me perturba, a qual ninguém conseguiu explicar:
Por que Diego não está aqui?
FIM
TEMAS: ESCOLA/DESAPARECIMENTOS