O Vírus
Era o fim do mundo. O prenúncio do apocalipse. As pessoas já não viviam como vivem hoje "socializadas". Era o período do Caos. Em um hospital, não muito longe da base do exército, saiu uma ligação:
- Capitão, mande homens urgentemente para cá. Um vírus está prestes a se espalhar e temos que evitar!
O capitão que comia um pão com mortadela não hesitou. Apertou um botão e anunciou:
- Quero cinquenta homens no pátio. Já!
Não muito tempo depois, o pátio da base estava cheio de homens. Alguns ainda apertavam os cintos ou amarravam seus sapatos. O capitão chegou e lhes ordenou que isolassem o hospital e que levassem suas máscaras de proteção e um apetrecho novo que o governo investira para rápida detecção de novos vírus.
Manoel estava irritado por não haver conseguido dormir aquela noite. Pensava em mil coisas. Crise pessoal. Entretanto, tinha ordens a cumprir.
Menos de quinze minutos depois, o exército fechava o prédio. Muito bem armados e protegidos, cerca de trinta homens entraram no hospital e os outros vinte ficaram na guarda, por fora.
Lá dentro, o capitão dera ordens:
- Eu quero que vocês vasculhem todos os andares. Com seus detectores - ele puxou seu detector de dentro do coldre e mostrou aos demais -, basta pressionar este botão e se apitar por três vezes, a pessoa estará com o vírus.
- E o que a gente faz - perguntou um deles, magérrimo e míope - se a pessoa estiver com o vírus?
- Elimine-a - exclamou o capitão.
- Eliminar? - perguntou outro, um rapaz delgado e de nariz chato.
- Sim, este vírus é de alto poder de destruição. Por que vocês acham que o governo nos mandou estes aparelhos?
- Mas nos mandaram - interrompeu o terceiro sargento - antes de sabermos do vírus.
- Isso mostra a ignorância de vocês - disse o capitão, a dar-lhes um sorriso seco. - E façam a porra que estou falando! Se apitar, um tiro na cara resolve.
Manoel não ouviu nada da discussão. Só a parte do "apitar e dar um tiro na cara". Como sempre fizera isso de matar, este fim de semana apenas seria mais um.
Começou a subir as escadas. Manoel tinha o posto mais alto dos quatro que também foram junto a ele. Ficaram responsáveis por perscrutar o último andar. Abriram a primeira porta e lá havia um senhor bem idoso a transar com uma enfermeira.
- Procedimento obrigatório do exército - disse Manoel, naturalmente.
Passou seu detector na mulher. Não apitou. Quando passou no velho, a máquina apitou. O velho arregalou os olhos. O tiro de Manoel fez com que o sangue jorrado da cabeça do senhor sujasse seu uniforme.
- Eu deveria ter atirado dali - disse, a apontar a porta. Enquanto isso, a enfermeira que não estava a entender nada, saiu a soluçar, arrumando seu uniforme.
E assim, foram verificando cada quarto do corredor. No penúltimo, Manoel teve uma grande e inesperada surpresa.
- Eulália? - perguntou, a sorrir.
Eulália olhou com desdém para Manoel e perguntou:
- O que você está fazendo aqui? Não temos mais nada, já disse!
- Eu vou te tirar daqui! - disse Manoel. - Você confia em mim?
- Confiar? - ela disse, então riu. - Depois de te pegar na cama com outra, você me pede confiança?
Manoel aproximou-se do leito e repousou os braços sobre a arma.
- Você não quer discutir relação agora, não é, meu amor?
- Não me chame de amor. E não estou discutindo relação porque, afinal, nem relação nós temos mais.
Os dois começaram a discutir baixinho por algum tempo, quando um dos rapazes que subiram chamou Manoel.
- Chefe, não vai passar o detector nela? - perguntou o rapaz, a ajeitar a máscara no rosto.
- Deixa que eu cuido dela - disse, nervoso e de costas para o rapaz. - Vá no último quarto fazer a averiguação!
- Nós já fomos, senhor, no entanto em que conversavam...
Manoel respirou fundo, impaciente, e virou-se para os rapazes:
- Deixem-nos a sós por dois minutos.
Eles saíram.
- Você já pode ir com eles, Manoel - disse Eulália, a cruzar os braços.
- Meu amor...
Eulália franziu o cenho.
- Minha querida Eulália, o que nós viemos fazer aqui hoje é assunto sério. Eu vou passar esta maquininha - tirou-a novamente de dentro do coldre - em você, porque é procedimento obrigatório do exército, para que eu saiba se você está contaminada.
- E se eu estiver? - ela perguntou.
- O correto seria eu meter uma bala na sua cabeça, mas como eu te amo, nada te acontecerá. Vamos te retirar daqui com os outros e te levo pra casa e te cuido até você melhorar - ele disse, a sorrir.
- E como saberá se estou contaminada?
- Só se o aparelho apitar.
- Então, ande logo com isso - ela disse, com uma das sobrancelhas levantada.
Manoel passou o aparelho ao redor do corpo de Eulália. A última vez que chegara tão perto da ex-esposa que ainda amava foi na sala do juiz, a assinar o papel do divórcio, dois anos antes. A máquina apitou. Os olhos de Manoel arregalaram. Eulália parecia não entender. Os rapazes invadiram o quarto novamente.
- Chefe, já podemos eliminá-la? - disse um deles. - O capitão acabou de mandar uma mensagem no rádio do Pereira para que desçamos logo.
Manoel, de súbito, ficou defronte Eulália.
- Não atirem nela, pelo amor de Deus! Se vocês têm uma esposa, uma namorada, não atirem nesta mulher! - ele disse, a soluçar. Então, virou-se para Eulália. - Eu te amo, meu amor.
Eulália nada disse.
Foi quando ela fez uma careta. Uma expressão de dor. Então, um grito estrondoso. Começou a empalidecer. Manoel desesperara-se e a abraçara. Eulália morrera. Os rapazes nada disseram, apenas observavam o choro de Manoel.
Logo, Eulália abrira os olhos. Transformara-se em uma criatura horrenda e peluda. Cravara os dentes na carótida de Manoel. O sangue esguichava e tingia as paredes. Os trio, horrorizado e gélido de medo, prestava atenção na criatura que comia Manoel. Quem imaginaria que dez minutos antes aquilo era uma mulher fraca e inócua? Levantaram as armas e apontaram na cabeça do monstrengo. Gastaram quase todas as suas balas.
Naquela altura, o capitão havia tirado a máscara e ido ao refeitório e comido alguns biscoitos. Contraíra o vírus sem saber e saiu do recinto com ar de suprema prepotência por ter eliminado o mal pela raiz. Mal sabia que o horror não pararia por ali...