O Triste amor de Alexander Phineas
É a credulidade dos homens, ou sua necessidade de crer em algo melhor, que os leva a tomar atitudes que beiram o ridículo. Meus pais, logo assim que nasci, batizaram-me Alexander Phineas, um nome poderoso, imponente, que deveria fazer com que o mundo se curvasse aos meus pés e que abriria todas as portas em meu caminho pelo futuro em diante... mas o mundo não se curvou e quis, em vez disso, curvar-me a mim, dando-me um fardo imenso que vergasse meu corpo e quebrasse meu espírito como um graveto.
Que outro nome teriam me dado se soubessem o tipo de homem que eu, em verdade, viria a me tornar?
Nem de longe a paz veio brindar comigo em nenhum dia de minha vida e eu não era feliz, mas, como poderia ter sido? Em vez da grandiosidade do nome que eu carregava, mudei-me para um bairro modesto, à rua sessenta e três e tornei-me algo muito diferente, uma antítese... quando minhas primeiras feições de homem começaram a se desenvolver, logo percebi a brincadeira cruel da natureza. Desde criança, uma tendência biológica fez meu corpo acumular enormes reservas de gordura e meus cabelos crespos e marrons juntamente com a face redonda davam-me um ar completamente diferente àquele que devem ter os homens poderosos e dominantes da espécie. Coágulos, que com o tempo se juntaram em torno dos meus olhos formaram enormes e roxeadas olheiras que jamais desapareciam, mesmo nos meus melhores dias e a minha estatura baixa acabava por completar esta obra atarracada de ser humano.
Em vez da grandiosidade que meu nome sugeria, Alexander Phineas era um homem baixo, gordo, de faces rosadas e com um nariz um pouco avermelhado e a grande, a maior de todas as ironias, é que, ao contrário do bonachão que minha figura aparentava, eu era mais infeliz do que poderia colocar em palavras.
Será, meu Deus, que se eu não tivesse o espírito tão combalido, conseguiria mostrar ao mundo o tipo de pessoa que eu realmente era? Um pobre homem que era sozinho e que sofria?
O fato é que todos, levados pelo meu sorrir covarde, criam-me aquela pessoa alegre, de sorriso fácil e que acenava aos passantes, com apertos de mão e abraços pelas ruas, mas, dentro das paredes de minha casa, o homem gordo e sorridente de trinta e quatro anos, logo após trancar as portas, era transportado para um mundo de amargura. A casa modesta parecia imensa e a penumbra parecia crescer assustadoramente. Eu parava em frente ao espelho e me via... trinta e quatro anos... olhava ao redor e estava sozinho como sempre houvera estado e o coração se me apertava dentro do peito... eu mesmo lavara minhas roupas, preparara a comida e passaria o resto das horas vagando de um cômodo ao outro, procurando nada e tendo o desprazer da solidão constante.
Ninguém sabia e creio que ninguém soube, mas o homem gordo e feliz da rua sessenta e três, quando estava recolhido em sua casa, levava os dias com lágrimas, sem receber visitas, abandonado e sem esperanças...
Talvez para fugir a essa triste realidade, passava a maior parte dos dias fora. Não tinha, necessariamente, um trabalho; escrevia coisas e vendia algumas para livretos baratos. Mantinha-me, por meio de uma pequeníssima herança que restara dos bens de um tio-avô que eu jamais vira. Grande parte das horas permanecia num desses bares à antiga, de mesas circulares de quatro cadeiras, sempre próximo à parede e, suponho, visivelmente triste. Ninguém vinha se sentar junto a mim pois o bar não era, em realidade, muito frequentado. Apenas mais uns dois ou três homens esparsos, cada um metido em seus pensamentos, bebiam ou comiam em silêncio. Nem por isso, entretanto, eu deixava de responder entusiasticamente quando um conhecido me dirigia a palavra e seguia seu caminho, deixando-me, novamente, abandonado às constatações solitárias que interrompera para os cumprimentos.
E sobre o amor, que esperanças poderia eu nutrir? Um espírito igual ao meu, cultivado e alimentado por absolutamente nada, cresce e torna-se frágil diante das provações do mundo. As aspirações que movem a todo e qualquer ser humano – amor, felicidade, filhos, amigos, sentir-se querido, ser notado, ser relevante – tudo isso para mim era um objeto inalcançável que eu sequer ousava cogitar; era como saber que entre o amor e eu havia essa impossibilidade hercúlea de juntar novamente o Estreito de Gibraltar[1] ou de esperar que a fumaça da minha vontade resistisse ao monstruoso furacão da minha mediocridade.
Foi pelo conjunto desses fatores que eu, de certa forma, resignei-me em ser quem eu era: admitir que jamais amaria, que jamais outro ser humano que não fosse eu mesmo viria a compor os retalhos do que chamamos vida e que, talvez, morreria sozinho, sem o conforto de mãos segurando as minhas ou me apoiando a nuca no suspiro derradeiro.
A vida, de fato, me parecia uma estrada reta e uniforme, onde, aos lados, apenas uma paisagem desértica e lúgubre se repetia, enquanto, à frente, um bilhão de passos cansados levavam ao nada.
Apesar disso, com essa mesma resignação, eu seguia; era uma personagem que a vizinhança tinha em conta, mas, não mais que uma personagem, servia apenas para os sorrisos fáceis, os apertos de mão, os cumprimentos de chapéu e “olás” de passagem, uma vez que ninguém sabia que, em minha mente, como um mantra incansável, se repetia a casa solitária, a vida sozinha e, certamente, a morte sozinha.
Fica, então, fácil entender o impacto que teve sobre mim quando algo mudou em minha rotina. Era como se um conceito relativo fosse cravado a fogo no absolutismo das minhas convicções e como se esses opostos se aniquilassem; uma vez que já não me restavam felicidades, este acontecimento roubara-me, também, as tristezas.
Havia meses que um movimento incomum começara na casa ao começo da rua. Já se passavam quase seis anos desde que a velha senhora Ernestine, em seus 90 anos, morrera, deixando órfãos todas as dezenas de gatos que lhe serviam de companhia. Depois que sua cuidadora encontrou-lhe o corpo, sentado e de cabeça baixa como se cochilasse, as dezenas de gatos foram desaparecendo aos poucos, encontrando outros lares, morrendo ou simplesmente indo embora. Apesar da perda da velha, não fará mal dizer que muitos vizinhos sentiram-se aliviados pelo fim da praga felina, que a maioria tolerava para não contrariar a pobre senhora.
A movimentação na casa recomeçara de súbito. Ninguém sabia, realmente, a quem pertencia o terreno ou o que aconteceria à propriedade e, conforme o tempo passou, acostumaram-se todos a ver a degradação da casa sem sequer pensar no que aconteceria. A casa, agora sem nenhum habitante há anos, era apenas chamada de ”Casa da Senhora Ernestine”, mesmo que, muito poucos, de fato, se lembrassem da pobre velha.
Primeiro mudaram a porta da frente, antiga porta feita de madeira maciça e pesada que acabara se despregando e permanecendo segura por apenas duas de suas seis dobradiças de metal. Ameaçava cair e pendia para a direita, como um quadro mal pendurado, revelando que, dentro da casa, haviam trevas, mesmo durante o dia. Essa porta foi trocada por uma nova, de madeira marrom, com um desenho que parecia dividi-la em duas partes, a de baixo, mais grossa, tinha uns entalhes simples, formando um prisma de madeira e a parte de cima, com uma abertura, tinha tampo de vidro, fechado por dentro com algo semelhante a uma tela de vime. A pequena escada que levava à porta, de dois degraus, estava limpa.
Depois, embora essa primeira mudança tivesse ocorrido sem que ninguém visse, já era possível observar alguns trabalhadores. Uns pregavam o telhado de madeira, outros, usando alavancas de ferro, puxavam tábuas das paredes e as jogavam sobre uma pilha, com estrondo; mais alguns cortavam plantas, decepavam galhos, abriam janelas e serravam madeiras novas. Ouvia-se desde muito cedo os sons do trabalho que ia até o pôr-do-sol. Não era segredo, enfim, que alguém se mudaria para a Casa da Senhora Ernestine.
Creio que se passaram duas semanas assim e a casa, muito rápido, transformava-se de um mausoléu repleto de ervas daninhas em uma casa branca, com plantas novas e que parecia ansiosa para receber os novos habitantes. Não cheguei a obter maiores informações sobre os moradores, pois, como cheguei a relatar, o relacionamento que eu cultivava com as pessoas dessa rua – e desse mundo – não dava margem para conversas de verdade, nada que ultrapassasse mais que duas ou três palavras; por isso, comecei a apurar os ouvidos. O que ouvi foi o seguinte:
Uma família viria dos arredores de ***. O patriarca, um tal senhor Maurice, era soldado e vinha com a esposa, que se chamava Anna, um filho, chamado Jean e uma filha que se chamava Fantine.
É claro, não me passou pela cabeça que essa família mudaria algo na minha própria vida. Pelo contrário, cri que aconteceria o que já acontecera antes: esses quatro seriam apenas mais alguns rostos a acenar e alguma cortesia de praxe.
Apenas o destino poderia explicar que eu passaria em frente à casa no exato instante em que um carro parava e saltavam dele quatro pessoas: um casal de velhos, um jovem e uma mulher.
Mesmo o mais simplório dos cérebros poderia inferir quem eram eles. O velho magro, como que vergado pelo peso da bagagem, que tinha os cabelos muito brancos e um grande e espesso bigode, igualmente branco, era o senhor Maurice, a velha grisalha e gorda que se agarrava ao seu braço enquanto o velho tentava caminhar com a bagagem era a senhora Anna; o rapaz que ainda parecia muito jovem e que olhava desconfiado à vizinhança era Jean e a mulher, obviamente, era Fantine.
Juro que teria seguido meu caminho se o velho não tivesse me chamado:
– Meu jovem, com licença!
Isso foi dito no momento em que eu enterrava os olhos na calçada e me apressava em caminhar como se não visse, mas, parei e me virei ao velho, como que incerto de ter sido chamado.
– Importa-se de me ajudar com esta bagagem? - continuou ele.
– Pois não! - retruquei com meu melhor sorriso, dirigindo-me ao velho.
Ele sorriu:
– Não, não! O velho general aqui ainda pode dar conta de sua bagagem! - respondeu, erguendo os braços como se as malas fossem halteres.
– Fantine, querida, por que não dá ao moço a sua bagagem?
A jovem mulher vinha a custo, com uma imensa mala e sorriu-me:
– Por gentileza?
E foi assim, com um sorriso e duas palavras que acabou-se tudo. O mundo havia sumido, o tempo havia parado e eu via nitidamente os dentes marmóreos, perfeitamente alinhados e claros me sorrindo. As palavras devem ter soado por meio segundo, mas seus ecos me atordoaram e eu juro que senti, espalhando-se do meu coração para o meu sangue uma sensação cítrica e inigualável, um calor que escalava a minha jugular como se tivesse garras e quisesse alcançar-me o cérebro.
Provavelmente permaneci parado... como poderia explicar? O que diria um cego que enxerga pela primeira vez e descobre um sentido completamente novo? É como se o mundo se desdobrasse, revelando um mundo totalmente novo, além da nossa capacidade de compreensão, além do que somos, num primeiro instante, capazes de suportar.
Que sentimento era esse? Que sensação era essa?
Nada na vida me havia preparado e creio que divaguei, na tentativa de compreender o que acontecia. Fantine aproximou-se e tocou minha mão, que tremia, para transferir-me a mala.
Por um breve instante, esse toque iniciou em mim o que reluto chamar de sentido... era algo mais poderoso, quase como se o milímetro das peles que se tocaram significasse toda uma vida de experiências que eu jamais houvera vivido.
Sua pele era quente e macia como haviam de ser as peles dos anjos, os dedos delicados que depositavam nas minhas mãos aquela carga brutal que ousava feri-los... Oh! Se eu pudesse tê-la poupado dessa tarefa todas as vezes!
Ela seguiu à minha frente, com os longos cabelos negros e lisos como um véu presos à altura da cabeça. O vestido escuro realçava-lhe as formas, mostrava os braços e o colo profundamente branco que respirava docemente. Os olhos negros refletiam tudo tal qual um espelho e, posso jurar, fitaram-me a alma de tal modo que enrubesci.
Enquanto o velho abria a porta da casa e Fantine seguia à frente, eu lhe acompanhava a trilha de perfume.
– Pronto! - disse o velho em tom de triunfo quando a porta se abriu.
– Entre, filho, entre! - disse ele entrando primeiro e mostrando-me o caminho.
Lá dentro, ele me levou a uma sala onde mandou que o jovem tomasse as bagagens e levasse para os quartos.
– Sente-se! Sente-se! - disse rindo.
Eu apenas obedeci e me sentei.
Não tinha planos de dizer nada. Certamente meu cérebro encontrava-se incapaz de tecer alguma linha de comunicação por si só, entretanto, o velho falou primeiro, estendendo a mão:
– Deixe-me agradecê-lo! Como se chama?
– Alexander Phineas! - respondi.
Lembro-me que o velho falava algo, mas, por mais que eu me esforçasse, a mente ia à deriva, fixa na escada que Fantine acabara de subir para longe dos meus olhos.
Como eu não respondia, o velho calou-se cheio de embaraço. Um lampejo de sanidade me acordou e estas palavras saíram rápido, quase bruscamente:
– Então, o senhor é soldado, senhor Maurice?
Ele riu ruidosamente, com uma voz gasta:
– Pois não lhe disse que sou General e que meu nome é Marcel?
– General... - balbuciei coçando o queixo e olhando para cima.
A conversa com o General durou alguns minutos, mas não teria feito diferença se tivesse durado horas. Embora o velho homem falasse muito, a maioria das minhas respostas saíam como que de um autômato. Do pouco que me lembro, o velho disse o seguinte:
Vinha da cidade de *** para gozar a velhice, fora general, fora valente e fazia questão de ser chamado de General: General Marcel D'Anton, era, portanto, errado o boato que dizia ser ele um soldado chamado Maurice. Casara-se com a senhora Anna aos vinte anos, tivera uma filha, Fantine, já aos 40 anos e adotara Jean aos 44. Hoje, era um velho de 62 anos e mostrava com orgulho uma mancha escura que tinha na mão esquerda, trespassada por um projétil.
A casa não era muito grande, mas era bonita; nenhuma casa nessa rua ou nessa cidade era muito grande. Havia umas pinturas, provavelmente baratas, mas bonitas, uma mesa de centro com plantas e flores uma bandeja com a garrafa de conhaque e dois copos; o copo do General vazio e o meu, sequer notado e ainda cheio.
Finalmente o General não conteve a impaciência e levantou-se:
– Bem, senhor Phineas, foi um prazer conhecê-lo! - estendeu-me a mão.
– Ah, igualmente General... - respondi, compreendendo.
O General continuou, apontando-me discretamente a porta:
– O senhor há de me desculpar, senhor Phineas, mas ainda temos de nos estabelecer na nova casa e o cansaço da viagem...
Enquanto me deixava guiar até a porta a doce voz de Fantine perguntou:
– Mas já se vai?
Eu me virei e sorri enquanto ela descia vagarosamente a escada, deslizando os dedos pelo corrimão negro.
Vinha, dessa vez, com um vestido branco e leve que, assim como o outro, exibia os braços e o colo. Estendeu-me a mão:
– Muito obrigada, senhor...
– Alexander Phineas! - completou o pai.
Eu enrubesci e segurei seus dedos:
– Não há de que, senhorita!
Quando a porta se fechou, muitos sentimentos diferentes me tomaram: por um lado, o alívio de poder respirar sem medo de ofender o Anjo, o terror de ser indigno de sua presença, de ser esmigalhado pela força de seu “estar”, por outro, a vontade mórbida de nunca perder nada disso jamais.
Pela primeira vez na vida eu queria estar em casa e, lá chegando, deitei-me na cama de lençóis brancos e travesseiro quadrado. Fitei o teto, mas não pensava em nada; não pensava em nada, mas estava absolutamente concentrado. Concentrado em quê? Em não permitir que se apagasse da minha memória nem um mínimo detalhe dela; era como permanecer soprando, continuamente, as brasas vermelhas da memória a medo de que elas se apagassem ou esmaecessem.
Fitando o teto eu podia vê-la claramente... O Anjo havia dito meu nome? Decerto que sim!... Levei a mão aos olhos para colher uma lágrima e ainda pude sentir em minha mão o seu perfume.
Dormi e acordei pensando nela. Sentia fome, mas não uma fome comum; era uma fome do espírito, mesmo que não comesse desde o dia anterior, quando tudo mudara em minha vida.
Quem nunca amou não pode compreender o que digo, mas, eu, que jamais havia sequer ousado imaginar algo semelhante a amor, sentia-o. Todos esses anos de solidão e amor latente irrompiam agora, como uma tempestade em fúria ou algum outro fenômeno titânico da natureza que despedaça tudo em seu caminho, eu, pobre miserável, era atingido em cheio por esse cataclismo.
Se não a visse novamente, morreria, por isso convenci-me de que alguma desculpa banal era o suficiente para, ao menos, vê-la.
Segui em direção à casa do Anjo e permaneci em um canto, cujo ângulo permitia não ser visto enquanto olhava rapidamente por cima do cercado para o interior da propriedade.
Algum tipo de emoção incontrolável me enchia de pavor. Não era o receio de ser pego espionando a casa, nem o constrangimento que poderia transmitir a imagem de um homem gordo transpirando e tremendo copiosamente, era como se um tipo de energia magnética agisse sobre mim, esmagando meu peito na mesma proporção em que me aproximava do Anjo e agora, devo dizer, estava muito perto.
Com os sentidos apurados, como um animal, o som da porta se abrindo parecia uma explosão que me sacudiu da cabeça aos pés: era Fantine que saia carregando uma cesta vazia.
Apressei-me a encontrá-la pela calçada, garantindo fingir que não a visse:
– Senhor Phineas? - disse ela.
– Sim? - perguntei fingindo distração e lutando para controlar espasmos que me distorciam o rosto.
– Boa tarde! Como vai o senhor?
– Estou bem, senhorita! Perdão, mas estava tão distraído que por pouco não a vejo.
– É compreensível...
– Vejo que a senhorita está de saída?
– Na verdade, vou até a venda buscar algumas coisas que precisamos.
É claro, essa era uma oportunidade perfeita:
– E não será demasiado peso para mãos tão delicadas?
Ela recuou:
– Não se incomode, senhor. Não há de ser nada que me quebre as mãos.
Idiota que sou, arrisquei botar tudo a perder! Sorvi cada palavra desse diálogo com o mesmo deleite que haveria de sorver o vinho mais precioso e agora, embriagado, estragava tudo.
– Não me entenda mal, senhorita. Perdão se pareço ir além de nossa intimidade, mas garanto que não será nenhum incômodo. De fato, vou para os arredores da venda!
Ela permaneceu calada por uns instantes e disse, por fim:
– Está bem. Se não lhe causa nenhum incômodo...
Apenas eu sabia – e agora confesso-o – mas, para mim, cada sílaba do que eu disse tinha um significado especial. A forma como construí a frase acrescentando “nossa intimidade” fora um triunfo que comemorei em segredo enquanto caminhava ao seu lado. Isso poderia querer dizer tudo; aquele silêncio significava uma aceitação incondicional de que, sim, tínhamos uma intimidade: ela o admitira! Quantas formas havia para me rechaçar? “Não existe isso de 'nossa intimidade', meu senhor! Passar bem!”, diria ela enquanto voaria para longe como uma borboleta inalcançável. Em vez disso, o silêncio admitiu tudo: “De fato, temos uma intimidade... admito-o.”.
Ao não dizer nada, o Anjo dizia tudo e nesse silêncio, enquanto caminhávamos juntos à venda - oh, Deus! - como eu estava feliz!
Fantine andava rápido, talvez me tenha escapado dizer que o Anjo também tinha proporções de deusa: era alta e bela, altiva e perfeita; não sabia ser de outra forma. Tudo se apagava quando ela iluminava o ambiente com sua presença e ela seguia à frente enquanto eu, um cortejo de um homem só, seguia, cesta na mão, estupefato e orgulhoso. Diante dela não deixava de me sentir misérrimo, mas não é assim que se há de sentir um ser humano diante do divino?
Na curta caminhada, logo chegamos à venda, que era um prédio velho e que ostentava um chamativo toldo vermelho, agora empalidecido pelas intempéries. Paramos à entrada um instante:
– É melhor que o senhor espere aqui por um momento – disse, esticando os braços em sinal de “pare”.
– Senhorita? - perguntei, confuso.
– O senhor há de concordar que não é de bom tom uma moça recém chegada ser vista às compras numa venda ao lado de um homem, o senhor não concorda?
Não concordava, mas, quem sabe? O universo feminino era, para mim, repleto de mistérios que eu não compreendia. Talvez este fosse um desses caprichos de donzela, que são, em sua forma, belos e delicados. Cheguei a sentir um quê de ternura por este capricho... talvez, afinal, ainda fosse realmente muito cedo para eu nutrir pretensões desta estatura, mas o tempo, de certo, chegaria.
O Anjo tomou a cesta e entrou:
– Obrigada!
De fora era possível vê-la e ouvi-la, o que já me bastava como dádiva. Observei-a aproximando-se do balcão e tirar do seio uma lista, que entregou ao vendedor. Fazendo um sinal afirmativo com a cabeça, ele, o vendedor, foi e voltou várias vezes ao interior da venda, trazendo, cada vez, uma certa quantidade de coisas: frutas, verduras, algumas latas, embrulhos de papel cinza que julguei serem carnes, garrafas de conhaque, charutos, alguns panos floridos, velas e diversos pacotes que eu não conseguia distinguir.
No fim das viagens, o vendedor, um homem grisalho de poucas barbas, coçou o queixo:
– Isso fica pesado, senhora!
O Anjo olhou para trás, como se esperasse minha aprovação:
– Não se preocupe, há um cavalheiro que me ajudará aqui. - e fez um sinal de mão que significava “entre”, enquanto o vendedor abarrotava a cesta de vime.
Neste ponto, convém-me dizer, sequer me passara pela mente existirem limitações físicas. Que importava se houvesse uma tonelada de chumbo a carregar? Importava-me apenas que ela, o Anjo, a Deusa, não tivesse o mínimo contato com algo mundano dessa estirpe e que eu, almejando Suas graças, jamais teria alguma fraqueza para me lançar à desgraça.
– Está pronto. Vamos? - Disse ela, seguindo em frente com o véu de cabelos negros esvoaçando.
O vendedor segurou a cesta um instante:
– Amigo, isso pesa como o diabo. Duas viagens não são de todo mal.
Como se não tivesse escutado tomei a cesta e segui Fantine.
Meus músculos se contraíram e uma enorme tensão percorreu meus braços até a carótida, que saltava, protuberante. Quando me dei conta da tarefa que isso significava, um grunhido de esforço escapou-me da garganta. A cesta, carregada à frente, lutava para tocar o chão, mas eu, vergando as costas para trás, opunha-me a essa vontade. Os dedos, inchados e vermelhos, pareciam mangeiras onde se prende o fluxo de água, os passos, custosos e pesados, eram ainda mais atrapalhados pela própria cesta, que me batia nos joelhos.
– Está pesado? - perguntou o Anjo, voltando-se um instante.
Como todo o meu ar estava comprimido nos pulmões, responder era algo assaz complicado. Em vez de palavras, movi a cabeça para a esquerda e para a direita num sinal negativo.
Quando uma tarefa nos causa sofrimento, o fluxo do tempo se altera. Cada passo sofrido era uma vitória e uma conquista de superação: dez passos... onze passos... doze passos...
Andamos relativamente pouco, mas, como disse, o tempo se esticara. A cesta de vime, que também sofria, produzia estalos e gemidos. O fundo, abalroado, estava no limite.
Se minhas atenções não estivessem todas voltadas numa prece que fazia a Deus em busca de forças, talvez tivesse reparado que a própria cesta estava além do seu limite e que os pequenos estalos não eram de fadiga e sim de desistência: a cesta partiu-se.
Vidro e metal atingiram o chão com força, frutas rolaram e fugiram como animais selvagens para todos os lados, o conhaque escorria e borbulhava na calçada pela garrafa partida, que derramava os últimos goles. A cesta regorjitara tudo!
Fantine emitiu um “Oh!” de espanto e voltou-se. Novamente o tempo mudara e tudo aconteceu tão rápido! Todas as vergonhas do mundo se abatiam sobre mim.
Não havia o que reagir: estava feito. Permaneci parado na mesma posição do último passo, a cesta, agora leve, segura com força em minhas mãos e todos os produtos em minha volta enquanto um dos panos voava ao vendo.
Tudo o que Fantine disse foi esse “Oh!” e alguma fúria acendeu-lhe o rosto, os olhos negros entrefecharam-se, as sobrancelhas arqueadas e uma ruga de desgosto nos lábios. A Deusa pareceu-me imensa, sentia-me vigiado do céu, de onde desabariam raios. Em vez disso, depois desse “Oh!”, Fantine se foi sem olhar para trás.
Horas depois chamei na casa do General e lhe entreguei a cesta como se nada tivesse acontecido, mas aqui, apresso-me em confessar que, passado o choque inicial, corri à venda e, de minhas economias, paguei pela cesta nova e idêntica à antiga e, como o vendedor ainda guardava a lista de compras que Fantine lhe entregara, mandei que enchesse a cesta, paguei um carro que me deixou à porta e toquei a sineta. Fantine atendeu:
– As compras, senhorita... - falei com os olhos baixos.
Ela inspecionou rapidamente a cesta e, talvez, tenha compreendido o que acontecera.
– Pode deixar aí que Jean fara o resto.
O Anjo disse isso e fechou a porta suavemente. Levei alguns segundos me amaldiçoando, ainda sobre os degraus, esmigalhado pela vergonha... Por que não chamei um carro logo no início? Mas estas são perguntas sem resposta.
O caminho para casa foi mais silencioso que de costume. Tudo havia se desligado, inclusive o próprio caminho. Quando dei por mim já estava em casa e me sentia triste.
É certo que todos já passaram por dias em que a vida nos esmaga e também é certo que o corpo, muito rapidamente, arremeda as condições do espírito. Fui ao espelho e tive a exata medida daquilo que eu era: parecia velho; este simples dia me acinzentara os cabelos e os olhos marejados afinaram-se enquanto as olheiras roxas enegreceram-se. Minha boca, contorcida num choro reprimido, estava rachada e seca, o nariz, outrora vermelho, agora parecia uma brasa escarlate; do pescoço me subiam grossas veias azuis e pulsantes. Olhei as mãos pequenas e atarracadas: estavam feridas. Um corte marrom escuro, de sangue coagulado cruzava-me as palmas e queimava.
Era difícil crer que essa figura era eu, mas não havia dúvidas. Estava imundo e ferido, por isso o anjo me rechaçara. Trêmulo, tirei do bolso da camisa a lista de compras que o Anjo guardara no seio e beijei devotamente.
Apesar desse fracasso inicial, o incidente da cesta me fez cair nas graças do velho General e, como mantinha-me religiosamente à espreita, não faltaram vezes em que o velho me convidava a entrar. De pouco em pouco, com astúcia e abnegação pude inserir-me no cotidiano da família. O plano era simples: chegar às graças do Anjo mostrando o meu valor, fazendo-me necessário e, um dia, querido.
Logo, chamavam-me de Phineas e davam-me pequenas tarefas, que eu aceitava de bom grado e com um sorriso. Pregar uma tábua, podar uma árvore, buscar mantimentos; nada disso me incomodava porque, afinal, qual é o preço alto demais a pagar quando se deseja ardentemente um objetivo?
Tudo isso era visto como uma oportunidade a mais de estar próximo, de ouvi-la, vê-la, de sentir-lhe o perfume.
Não obstante o plano de aproximação parecer funcionar vagarosamente, minhas pobres habilidades teatrais eram minúsculas para esconder o que eu, de fato, sentia. Quando o Anjo estava presente, tudo para mim, parava; minha respiração transfigurava-se em suspiros, minha feição emoldurava-se em sorriso. Naquela casa, tudo eu fazia de bom grado, mas quando Fantine pedia algo, aquilo era, para mim, uma ordem.
Todos percebiam isso, essa transfiguração no meu comportamento era tão evidente que, se não estivesse cego de amores, teria notado, a cada vez, os sorrisos, os olhares das pessoas em volta; mas, como disse antes, se Fantine estava presente, o mundo desaparecia. Todos, inclusive a própria Fantine, percebiam isso.
Não tardou, pois, para que Fantine monopolizasse todas as minhas atenções. De certa forma, tornei-me dela e ela, como a Deusa que era, aceitara a oferenda.
É provável que tudo seja um tanto cansativo a este ponto, mas antes de continuar, é preciso dar a medida mais exata possível do que se passava em meu ser. Ainda é pouco dizer que não dormia porque, mesmo quando um breve sono chegava ela iluminava meus sonhos; acordado, se fechasse os olhos, se apurasse os ouvidos, distinguiria suas formas e seus sons; os alimentos já não nutriam sem o complemento indispensável daquela que eu adorava.
Abdiquei de mim em favor de Fantine. Não escrevia; apenas voltava à minha casa depois que o Anjo adormecia e chegava antes que ela acordasse. Ela, como foi dito, de certa forma, me aceitava também e levava-me consigo aonde quer que fosse. Descia as escadas arrumada, deslumbrante e, sem sequer mover os olhos exclamava um “Vamos!” que me dizia tudo. Sem perguntas, nem dúvidas, eu largava o que estivesse fazendo e ia, a Deusa sempre à frente, altiva e em marcha; eu, o cortejo de um homem só, poderia segui-la de olhos fechados, guiando-me apenas pelo perfume, ansiando um toque, como naquela vez em que um milímetro de nossas peles se tocaram por um segundo.
O verão vinha chegando.
Como de costume, acordei bem cedo e fui à casa do General. Já vinha reparando que o jardim definhava e que as flores, tristes e quase sem pétalas eram um caso perdido.
Para minha surpresa, quando cheguei, Fantine estava ajoelhada ao jardim e revolvia a terra. Banhada pelos primeiros raios de sol, sua figura era indescritível.
Aproximei-me de modo que ela percebesse e observei enquanto ela continuava mexendo com o solo:
– Essas flores estão tão feias! - dizia, arrancando torrões de terra com a espátula e sem esconder a frustração.
Eu me abaixei e toquei-lhe no ombro:
– É que o solo está pobre! - falei calmamente, enquanto pegava a espátula de sua mão.
Apesar de uma emoção violentíssima que me queria estourar o peito, continuei:
– Quando caem os níveis de nitrogênio, as plantas ficam subnutridas e o solo torna-se assim, arenoso... - continuei falando calmamente, enquanto depositava um pouco do fertilizante e o espalhava com a espátula.
– Bem... então você termina aqui? - Fantine levantou-se, sacudindo do vestido uns grãos de terra e poeira, dando-me as costas.
Toquei-lhe a mão, toquei-lhe o ombro! Como havia sonhado este momento! Para ela eu faria o jardim mais belo e uma vida inteira de servidão ainda era pouco a pagar. Por causa disso meu vocabulário, finalmente, se expandia: felicidade, contentamento, alegria; palavras, outrora sem significado, tomavam forma, condensavam-se e nasciam, como borboletas que, depois de um longo inverno, deixavam o casulo e flanavam junto a mim.
Sequer vi todas as horas que passaram, mas o sol a pino e os joelhos doloridos ordenaram-me que despertasse. Com um grande ar de contentamento e um sorriso, como se este fosse meu próprio jardim, admirei minha obra.
Uma gota de suor salgado ardeu em meus lábios: precisava de água, mas estava imundo. Dei a volta, até a porta dos fundos, que era próxima à cozinha e ouvi vozes, primeiro, vozes indistinguíveis, depois, claras, apesar de serem balbuciadas:
– ... Phineas... - Era a voz do General, que dizia meu nome. Parei.
– Sim. Que tem ele? - perguntou a segunda voz que era de Fantine.
– Você já deve ter reparado que ele lhe gosta, não? - continuou o General.
Estremeci e senti que ia explodir. Ao mesmo tempo, senti que me partia em dois: uma metade que desejava fugir, manter-se alheia, ignorar tudo e a outra, maravilhada, deslumbrada pela possibilidade do reconhecimento; essa segunda metade queria abrir a porta e declarar-se, pedir ao General a mão de Fantine e, sim, ousaria beijá-la, mesmo que o chão se abrisse.
Não fiz nem isto nem aquilo, permaneci escutando.
Risadas vieram, abafadas. Senhora Anna e Jean riam.
– O assunto é sério! - interrompeu o General, que continuou enquanto as risadas cessaram:
– Esse rapaz a ama, filha, você sabia?
Ela permaneceu em silêncio.
– Sabia... - respondeu, por fim.
– E o que pretende fazer quanto a isso? - quis saber o General, com um ar comovido.
– Com o gordo inútil? Por favor, papai, eu espero nunca fazer nada!
Era preciso que me apoiasse na parede, pois o mundo girava a quase me lançar fora dele. Respirar custava-me e a saliva tinha um gosto ácido. Cuspi no solo um líquido que parecia ser sangue e que a terra logo absorveu; em vez de acelerar, meu coração freava, senti o frio que escorria do meu peito tomando braços e pernas, que tremiam quase convulsivamente.
Diante disso, que atitudes um homem deve tomar? Eu estava incapacitado e sentia como se morresse. Já não conhecia mais as palavras ou qualquer outra forma de linguagem; aquele solo arenoso tinha, certamente, muito mais vida do que eu naquele momento... decidi, com as forças que me restavam, correr.
Quando cheguei em casa, o mesmo espelho que sempre me mostrava quão patético eu era, agora, refletia a imagem de um velho de cem anos no qual havia me tornado. Os cabelos acinzentados estavam quase totalmente brancos e a face amarga estava deformada, contorcida por espasmos elétricos. Não tinha coragem de levantar os olhos e sentia sono, mas não um sono comum; era um tipo pesado, irresistível. Arrastei-me à cama e desabei como um tronco, pedindo a Deus que esse sono fosse um tipo de morte, um presente.
Nesse torpor, ainda houve tempo para identificar as únicas duas palavras que minha mente aniquilada conhecia: “gordo inútil”. Tudo se apagou depois.
Talvez tenham se passado horas... quem sabe alguns dias, até que a sineta na casa do General tocou. Eram oito horas da noite, ou pouco mais tarde. O próprio General atendeu:
– Phineas?! O que aconteceu, meu filho?
Mantive o olhar grave, sério e, pela primeira vez, olhei-o nos olhos:
– General... preciso falar com a família. Na sala, por favor...
Ele assustou-se:
– Mas o que há, rapaz? Você sumiu...
– É importante, General, por favor.
O General consentiu e levou-me à sala. Para a gravidade do momento, vesti minha melhor roupa, camisa branca, com um colete azul e casaco marrom. As calças, também marrons, eram novas e contrastavam com os sapatos gastos, porém brilhantes. Sentei-me ao centro enquanto os outros chegavam um a um, agrupados à minha frente. Primeiro o General, a esposa, Jean e, por fim, Fantine.
– Pois diga, filho, o que acontece? - perguntou o General, cruzando as mãos.
Coloquei-me de joelhos:
– Fantine... - tomei-lhe as mãos, os outros se entreolharam – faz quase um ano que um acontecimento mágico transformou a minha vida e faz quase um ano que, pela primeira vez, eu vi o Sol e desejei viver.
Fez-se silêncio absoluto, a voz começava a me fugir, mas continuei:
– Desde que a vi, apenas com sua existência e presença, vi tudo aquilo em que eu acreditava ser transformado em algo melhor, em algo mais bonito, algo mais terno...
Fantine riu.
– Aprendi, depois de uma vida inteira que eu também podia amar...
Os risos, antes baixos, vinham aumentando:
– Sim, é verdade que a amo...
Fantine gargalhava:
– Eu... a amo...
Todos na sala, estupefatos, comovidos e repletos de piedade, pareciam paralisados diante de meus débeis balbucios e às gargalhadas de Fantine:
– Eu amo... eu... eu...
Fantine levantou-se e parecia insana. Arrancou a mão dentre as minhas e subiu as escadas com gargalhadas convulsivas, deixando-me ajoelhado e de olhos baixos. Mesmo do andar de cima ainda era possível ouvir as gargalhadas que, como punhais, cravavam-se na minha carne.
Por piedade ou remorso, o General botou a mão em meu ombro:
– Phineas, filho... eu sinto muito...
Continuei ajoelhado um pouco e, levantando-me, saí em silêncio.
Posso dizer que sumi. Passei vários dias andando a esmo, com horas e horas de caminhada que me passavam em branco na memória.
Algumas vezes chega-se neste ponto onde você compreende tudo, onde você percebe o que perdeu e o que ganhou: eu perdera tudo, inclusive a dignidade e o que me sobrara – esse amor patogênico – era indesejado. Ah, se fosse possível amputar o coração!
Muitos ririam se eu ainda dissesse que por esses longos dias pensava no Anjo, mesmo que não quisesse... tentava odiar, mas o ódio era artificial e não durava mais que um segundo, tentava esquecer, mas isso era como tentar ignorar uma certeza absoluta e suprema; além disso e sobretudo, tentava sofrer, mas já sofrera tudo, por isso estava vazio, ou, antes, não estava vazio, mas ela, a Deusa, ocupara-me todo o espaço.
Entendi que era impossível resistir ao irresistível; por fim, retornei à minha casa, mas me reservei o direito de observá-la das sombras. Então, quando caísse a noite e o Anjo se permitisse ver pelas estrelas eu me resignaria à minha nova condição de criatura rastejante, a adoraria das trevas e humilhado, talvez para sempre.
Foi uma força estranha que me ajudou, o universo que conspirava a meu favor ou seja lá que nome se dá a isso, o fato é que jamais se vira noite tão escura quanto essa. Nenhuma estrela no céu, ninguém pelas ruas, nem um suspiro sequer. Como se tudo fosse planejado, o Anjo surgiu e vestia branco. Como de costume, vinha ao portão, ficava alguns minutos e saia apenas um pouco, como se a rua fosse uma poça d'água onde molhava os pés.
Quando se virou, eu a esperava:
– Olá... - sussurrei.
– Phineas! - assustou-se ela.
Levou apenas um instante de constrangimento. O Anjo sorriu desconcertado, mas eu já não tinha necessidade de palavras porque elas não faziam mais sentido... O que um homem deve fazer quando está diante dos seus sonhos? Simples: ele deve agarrá-los com todas as forças, com estas mãos e foi o que eu fiz!
Como eu era mais baixo, agarrei-lhe o pescoço e apertei com as duas mãos. Apertei com força, o máximo de força que podia pelo mínimo de tempo; seus olhos saltaram, a boca se abriu como se tentasse falar ou gritar, mas foi só por um segundo até que dormisse. Não sei se poderia carregá-la no colo, por isso enrolei seus braços no meu pescoço como um cachecol, segurando-os firmemente e levei-a nas costas, enquanto suas pernas tocavam o chão.
Ao diabo se me vissem! Eu arriscava tudo e pesando o que tinha a perder – uma vida miserável – contra o que eu tinha a ganhar – a Deusa em pessoa – a escolha era bem simples. Diante desse “nada a perder, tudo a ganhar” uma serenidade sem igual tomou conta de mim.
Chegamos em casa, afinal.
Olhei-a por longas horas até que acordasse. Despertou aos poucos, ainda desorientada. Tentou mexer os braços; não podia, pois cordas atadas à cadeira seguravam-lhe firmemente os pulsos. Tentou falar, mas a mordaça cometia o sacrilégio de tapar-lhe os lábios.
Eu também, pecador que sou, admito ter cometido a ousadia de prender o Anjo, mas isso porque era preciso fazê-la entender, já que ao divino, certamente deve faltar o humano.
Ela se debatia e murmurava, para que me escutasse levei o dedo indicador à boca em sinal de silêncio e fiz um “shhhhhh!” que ela entendeu.
Acariciei-lhe os cabelos:
– Veja, meu Anjo, veja. Sei que você não entende, mas vai entender.
Não pude conter um sorriso e continuei:
– Não haverá no mundo um homem sequer que tenha tanto amor por você quanto eu tenho
Abri a camisa e lhe apontei meu coração:
– Vê? Sou humano! Ainda assim, neste peito pulsa algo inexprimível. Você ocupa meus dias, minhas horas, meus minutos e não entende...
Fantine estava lívida.
– Você não sabe o que é sentir essa dor, uma dor pungente e indizível por estar longe da criatura amada... Veja... eu não lhe quero mal, mas você é quem não entende.
Ela tentava se soltar e gritar, mas era inútil.
– Não, não, querida... eu já não posso mais suportar.
A noite inteira passei em contemplação, mas quando o dia chegou era preciso não levantar suspeitas. A melhor forma que concebi era bem simples: mostrar-me.
Isso significaria andar pelas ruas, ir ao bar escrever e caminhar, mas, como poderia deixar o Anjo?
Não era exatamente um medo de que ela escapasse, mas uma necessidade biológica de nunca mais estar longe dela. O simples pensamento de não sentir aquele doce perfume me aterrorizava de tal modo que náuseas me reviravam o estômago.
Aproximei-me dela:
– Querida, eu preciso sair, mas não demoro. - sussurrei, segurando sua mão.
Sem que ela notasse, ainda segurando sua mão, decepei-lhe o dedo mínimo.
Fantine estremeceu de tal modo que a cadeira chegara a balançar e permaneceu grunhindo por minutos seguidos.
– Desculpe, desculpe! - Falei com o coração partido e olhos embaçados de lágrimas.
Suspirei e dei um beijo no dedo recém amputado, meti-o no bolso e saí.
Será que alguém consegue conceber o tamanho desse amor? Não suportar ter a amada distante nem por um minuto? Pois eu não podia suportar... Por mais bizarro que possa parecer aos brutos, o meu coração somente encontrava paz quando sabia que o meu anjo permanecia junto de mim e por isso, como um amuleto ou como uma relíquia, trazia sempre comigo um tufo dos belos cabelos negros, um dedo, um dente ou qualquer pequeno fragmento que fosse possível acariciar no interior dos bolsos.
Quase seis anos depois, nada além de fragmentos restam do anjo, assim como nada além de fragmentos restaram da velha casa da Senhora Ernestine, agora chamada de “a velha casa dos D'Anton”.
[1]Diz-se que Hércules separou, com as próprias mãos, a Europa da África, abrindo uma passagem chamada Estreito de Gibraltar.