Frederico Lupércio

Arfando o peito, o bibliotecário ia até a estante; olhava, pesquisava e só então, trazia com a maior delicadeza o livro pedido pelo estudante. O seu corpo esquálido parecia fazer parte do ambiente. Ele usava uma estratégia sensacional, na loucura de terminar de ler um livro sem ser incomodado, ficava um longo tempo completamente paralisado e ficava paralisado...

Parava, dobrava um pouco a perna direita encostando-a na estante, sua roupa quase sempre cinza, assemelhava-se ao ambiente, em um mimetismo, de fazer inveja a qualquer ser vivo da natureza, em sua arte de se esconder dos predadores.

No entanto, esbanjava gentileza, muito querido por todos demonstrava uma aptidão muito grande para guardar páginas e páginas das obras literárias, apreciava os grandes clássicos da literatura universal.

Mas, eram nos poemas de textos épicos, como os homéricos, Ilíada e Odisséia, e os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, em que este amante dos livros se inspirava, destacava e mostrava a todos que o ouviam recitar, sem dúvida alguma, ser, um dos filhos de Mnemósine, a filha de Urano, deusa da memória.

Ninguém nunca soube se era casado ou solteiro, havia nele uma descrição fora do normal. Dizia não entrar no mérito de querer saber da vida particular de ninguém, e, com isso, também não se expunha. Alguns colegas, mais fofoqueiros, até tentavam descobrir algo ou alguém que pudesse levar a desvendar alguma história sobre ele, mas, depois de algum tempo, relaxavam e a vida do homem seguia o seu curso.

Ângela, era a sua melhor colega de trabalho, uma mulher a quem atribuíam poderes esotéricos, além de bibliotecária praticava a arte da Numerologia, nas horas vagas. Dizia sempre que o número 7 acompanhava Frederico Lupércio.

_ Esse número é mágico e transformador, e além de tudo está relacionado às sete virtudes e os sete mistérios. Esse número, portanto, indica a passagem do que é conhecido para o mundo desconhecido.

O homem olhava para ela soltava uma sonora gargalhada e saia da sala, dessa maneira todos os presentes, confirmavam a hipótese, mesmo que no inconsciente, de que a vida de Frederico Lupércius devia conter muitos mistérios.

Um dia ao passar pela mesa de Ângela, o homem, tropeçou e deixou cair sobre ela um fio vermelho. A numeróloga muito perspicaz reparou na roupa cinza em que ele estava vestido e não pode conter um longo: _ Oh!

Aquele homem parecia estar algumas noites sem dormir, seu rosto pálido, ainda mais retraído, melancólico, se escondendo pelos cantos da biblioteca, nos lugares mais esmos e mais escuros.

Ângela notou que naquele dia, o tal Frederico não tirava aqueles olhos entristecidos da sua cabeça, será que o seu cabelo avermelhado contrastava com algo.

Chegou a pensar de lhe perguntar, mas, uma dezena de pessoas entrou quase ao mesmo tempo na biblioteca, enfim, precisava ajudá-lo a atender.

As horas passam com uma surpreendente rapidez quando você está envolvido nesse mundo instigante e revitalizador dos livros em uma biblioteca. Mas, Ângela pôde perceber Lupércio, indo e vindo, várias vezes do fundo da biblioteca, lá, aonde a luz natural não chegava nunca, e, a pouca luminosidade daquele lugar era dado por uma lâmpada, que de tão velha ficava tremulando o tempo todo.

Naquele dia, a bibliotecária, estava por demais atarefada, pois precisava terminar de catalogar algumas monografias e teses de doutorado doadas por uma importante universidade à biblioteca. Ângela, contudo, resolveu ficar além do seu expediente.

Somente a luz da sala da bibliotecária ainda estava acesa, tudo estava silencioso, mas, um ouvinte mais atento perceberia a orquestração “cricricante” dos grilos, no jardim que circundava o prédio.

De repente, o silêncio, quase sempre, arauto de algo aterrorizante pareceu grudar nas paredes de todo o prédio, o sobrenatural espalhou como um rastilho de pólvora, Ângela sentiu a sua pele enrugar, as mãos e os pés tremiam, um som prolongado e muito assustador afetou o seu senso de equilíbrio.

O que seria aquele som? A bibliotecária saiu da sala, onde se encontrava e caminhou na direção do som, foi andando como autômato, seu cérebro pedia para ela voltar, mas os seus pés não a obedeciam...

E lá se foi Ângela pelos corredores, de estantes com livros. A luz foi dando lugar às sombras, o ambiente pareceu se fundir. Ela não sabia mais onde estava, parecia estar se locomovendo acima do chão. O barulho agora parecia um rosnado, e algo de uma experiência anormal estava ocorrendo.

Entre uma estante e outra, a mulher ficou parada, escondida, e o que os seus olhos viam era indescritível.

Um corpo se debatia e rolava no chão, quase encostado a parede, ainda úmida pelo vazamento da água da chuva, através de uma telha quebrada.

O seu corpo tinha ainda algo de humano, mas metamorfoseava em animal, o seu rosto parecia ainda conter os traços de um homem, mas, os olhos avermelhados pareciam não caber no globo ocular, as orelhas pontiagudas saiam da cabeleira espessa do alto de algo que lembrava uma cabeça.

No lugar da boca, um focinho recheado de dentes grandes e pontiagudos deixava sobressair à goela. Um uivo atormentado saia do interior do ser e expandia pelo ambiente.

A lua cheia agora iluminava todo o lugar e da boca da criatura, palavras desconexas, como uma ladainha, ou uma pretensa oração, parecia selar um pacto com entidades malignas.

E um lobo negro de proporções gigantescas se materializou. A loucura tomou conta do animal. Ele procurava, farejava, ficava paralisado e novamente farejava, até que encontrou Ângela, tremendo, escondida, ainda encostada na estante dos livros, de suspense e terror, e, além dos livros, ela também estava petrificada de tanto medo.

O monstro chegava muito devagar, rosnando e uivando assustadoramente e quando estava pronto para saltar, Ângela olhou e descobriu quem ele era, então, falou:

_ Frederico Lupércio... é você?

E com a voz trêmula, conseguiu balbuciar.

_Venha amanhã buscar um pedaço de carne crua aqui comigo, e também aquele livro de suspense de Edgar Alan Poe.

Ela havia recordado naquele instante de medo intenso, do momento que Frederico havia dito que gostaria de comprar os livros: “The Black Cat and Other Stories”, e também “Seven Stories of Mystery and Horror”, que Frederico havia descoberto em um site de compras na Internet, títulos em inglês que faltavam em sua biblioteca particular.

O cão saiu correndo pelo ambiente, e em uma grande explosão de força derrubou a porta dos fundos da biblioteca com um pulo e saiu assustado, rosnando e uivando. Ângela, ainda pode ver o seu vulto negro disparando em uma corrida frenética pelo meio da avenida, parando e olhando para trás para dar mais um uivo prolongado.

A moça muito assustada não acreditava que tudo aquilo havia acontecido com ela.

Passado o susto e a tremedeira, ela precisou chamar um marceneiro para colocar a porta no lugar àquela hora da noite. Por sorte havia um senhor, “faz tudo”, que sempre trabalhava nos consertos do local, e a atendeu e veio até a biblioteca.

O homem quando viu a porta caída no chão ficou admirado, coçou a cabeça e, com a mão no queixo e pensativo, tentava entender como alguém conseguiu derrubar uma porta tão forte como aquela sem usar ferramenta. Ela é tão antiga, daquele tempo em que as portas eram feitas de madeira de lei.

Ângela não deu explicação alguma ao marceneiro, temendo propagar o terror, e também por saber da temeridade da população parar de freqüentar a biblioteca por receio do lobisomem.

No dia seguinte, Frederico não veio trabalhar, todos os funcionários ficaram admirados, o homem nunca havia faltado ao serviço em todos os anos em que lá trabalhava. A especulação correu de boca em boca.

O final de semana passou e na segunda-feira, logo bem cedo ao andar pelas ruas para chegar ao trabalho, Ângela ainda assustada sentia que alguém a estava perseguindo, mas...

Ao abrir a porta da biblioteca o medo a fez tremer. Assustada seguiu andando sem fazer barulho, até poder chegar a sua sala. Sentou e ficou respirando com certa dificuldade, parecia que o seu pulmão comprimia o seu coração e o ar faltava no seu peito.

Com esse desconforto todo, ela olhava a todo instante pela porta ainda fechada da biblioteca esperando que algum funcionário chegasse para lhe fazer companhia. Mas, isto não aconteceu, e passos começaram a ressoar pelos corredores e uma expectativa a deixou paralisada. Foi quando...

_Ângela, voltei! Vim buscar o prometido! E também a sua ajuda.

_ Ajuda?

_Você viu a transformação, e agora na próxima lua cheia, o seu sangue deverá estar nas veias da fera, quando provar o sangue de quem o viu transformar pela primeira vez, tudo será irreversível.

_ Oh! Não me fale isso, como poderia imaginar que tudo aquilo aconteceria aqui?

_Na próxima lua você deve ferir o lobo, mas não mortalmente, se o sangue dele cair no mesmo local da primeira transformação a maldição não mais vai existir.

_Mas..., Ai! Meu pai, como poderei fazer isso, não sou uma pessoa violenta.

_ Você deve enfiar um florete de prata em uma parte do corpo do lobo, não poderá atingir nenhum dos órgãos vitais da fera. O florete deve estar recoberto com vela benta do altar de Nosso Senhor Cruxificado.

_ Teremos alguns dias para estudar o plano e de como agir no momento exato.

E foi assim que Ângela se comprometeu a fazer Frederico Lupércio ficar livre da maldição. O segredo formou uma cumplicidade entre eles, e em pouco tempo Ângela percebeu que já não podia mais ficar longe de Frederico, mas ele nem pensava em um relacionamento.

Sem dúvida, o seu pensamento era unicamente para se livrar da maldição do lobisomem, assim que ela fosse quebrada ele estaria livre para amar e ser amado.

Ana Marly de Oliveira Jacobino

Coordenadora do Sarau Literário Piracicabano