VIZINHANÇA

Minha mãe não gostava de saber que escrevi outra carta. Ela dizia que eu deveria ser uma moça mais corajosa, falar com as pessoas. Olhar nos olhos. Parar de só deixar "cartinhas adolescentes" para as pessoas. Mas minha coragem sempre se limitou ao o papel e a caneta. Ali posso tudo. De resto sou uma molenga. Eu falava pouco até com eles.

Papai sabia disso, mas focava em nos proteger ali. Ele sabia que eu gostava de um menino. Sabia da opinião dele sobre nossa rua. Todos concordavam que ali não era um bom lugar para se morar. Eu também concordava. No entanto, não tínhamos dinheiro para nos mudarmos. O jeito era dormir com os barulhos. Todo mundo sabia a causa dos barulhos.

A vizinhança era amável, feita por gente como a gente. Cada um sentia a dor do outro. Só tinham um problema: omissão.

É sério que ninguém ali na rua pensava em chamar a polícia ou ligar para um Disque Denúncia? Uma hora ou outra aquela rua iria presenciar algo terrível. Era questão de tempo.

Minha mãe não queria que eu me metesse. Meu pai também não. É sempre complicado esse negócio de obedecer pai e mãe, porque eles te deram a vida, sabe? E você meio que está preso a obedecer qualquer coisa, seja boa ou ruim.

Não aceitava aquilo que acontecia lá fora. Bastava denunciar. Todos os vizinhos eram covardes e não entendia porque meus pais também eram. Coniventes? Talvez.

Os barulhos eram esquisitos. Um grito e outro. Parecendo urro. Voz que parecido ter saído de uma garganta seca dizendo "AAAHH".E depois estalando a língua. Contínuo como uma goteira.

O som de garrafa quebrando. Depois outra. Não pareciam garrafas, mas era vidro. Mamãe pediu para o papai ver da janela. Lá estava. A coisa... diz ele.

Depois foi a vez dos cachorros latirem e ganirem sem parar. Temiam que aquilo entrasse em alguma casa e só Deus sabe o que poderia acontecer. Sempre conferíamos as portas antes de deitar. Mamãe mandava ele conferir de madrugada.

Tinha que ser rápido. Os barulhos aumentavam. Às vezes de velocidade. Depois só de intensidade. Nunca os dois ao mesmo tempo.

"Essa rua tem demônio" diziam uns.

Noutra noite, pisadas nas lajes. Todos os vizinhos sentiam a vibração em seus tetos. Não eram pisadas pesadas. Eram leves.

Tum... tum....tum... tum...

Pela manhã alguns cachorros foram encontrados mortos com as orelhas e os rabos arrancados e os corpos cheios de mordidas e rasgos. Com os gatos assassinados a diferença era pouca; não possuíam dentes nem língua, nem a parte de baixo da boca.

Uma vez iam ligar para a polícia. Parece que desistiram. "Vai passar" diziam. Mas não passava. Todos acostumaram com aquilo. Eu dizia para meus pais:

"DENUNCIEM!"

Não aguentava mais a negligência de todos diante daquilo.

Uma vez eu mesma iria ligar, mas mamãe viu e tomou o telefone da minha mão, com o olhar tenso e balançando o dedo negativamente:

"Fique fora disso, mocinha. Não sabe com o que está lidando. É pior do que você pensa. Se eu fosse você, orava pedindo misericórdia."

Uma amiga de rua me dizia: "Menina, você é doida? Não faz isso não. Pelo amor de Deus. Sabe como são as coisas."

Estaria ficando louca? Não era possível acreditar. Num mundo de ossos secos, só eu que me incomodava com o cheiro de morte?

Noite. Pedras na janela. Os vidros arranhados. Manhã. O cheiro de fezes e vômito nas portas. Sangue nos becos.

Todos criam que tudo iria melhorar um dia. Que uma hora ou outra o incômodo sairia antes dos incomodados. Houve quem pedisse oração. Houve quem orasse. Teve até quem consagrou a rua para livrar de todo o mal. Nada. Os barulhos continuavam.

"Essa casta não sai senão com jejum e oração" diziam. Mas que casta?

Noite. Ferro riscando o chão. Grunhidos. Mais ferro. Ferro pesado.

Eu... escrevia cartas. Pra mim, sejam elas endereçadas a outras pessoas ou a ninguém. Nelas desabafava. Já que os moradores não saíam mais de casa com medo, não vi mais minha amiga. Fiquei sozinha em casa com meus pais.

Certa vez avisaram uns bandidos do morro. Eles desceram. Alguns armados. Nenhum tiro foi disparado. Eles não viram ninguém. Não tiveram tempo de ver. No outro dia os corpos estavam lá. Um por um.

Mesmo assim, ninguém chamava a polícia. Levavam como podiam. Todos ali se gostavam muito, mas todos agora tinham medo.

"Filha, o mundo é mal", dizia meu pai. "Tem coisa que nem o pai, que já viu muita estranheza nessa vida, sabe explicar".

Lembrava da frase "Coisas entre o céu e terra que nossa vã filosofia não entende".

As portas começaram a ser tocadas. Não haviam empurrões. Os vizinhos diziam que dava para ouvir que alguma coisa apalpava a porta. Tocava, arranhava e só. Nenhuma porta era forçada. Mas todos ouviam os toques.

Tap... toc... toc... tap... tap.

Raac... reec... raaac...

Ninguém tinha coragem de abrir ou ver o que era que estava atrás da porta.

A fofoca do dia era semelhante ao texto de Isaías 21;11, que eu ouvia na igreja quando criança: "O que houve de noite? O que houve de noite?"

Com o passar do tempo as crianças não brincavam mais na rua. Ninguém queria adotar nenhum animal de estimação. As pessoas já cogitavam em comprar câmeras de segurança. Papai comprou a dele. Instalou... e viu.

Rua muito barulhenta. Como dizia o conto de Ray BradBury: "A cidade inteira dorme. Vá pra casa".

Dormiam por resignação, não por descanso.

Uma noite fizeram um baile funk perto de casa. Adolescentes embriagados pelo álcool e pela sexualidade precoce, os hormônios à flor da pele. Já me senti assim e sei bem como é. Meus pais sempre cuidaram bem de mim. Deram educação. Pobreza não é sinal de relaxo moral.

Se pelo menos eles soubessem o que acontecia ali na nossa rua...

Tudo isso está registrado. Quem, além dos moradores da vizinhança, acreditaria se dissesse?

Não teve jeito. O fluxo foi cancelado quando encontraram um pedaço de orelha com brinco num beco. Depois, um braço. Ficou pior quando viram uma cabeça de garoto. Não acharam nenhum corpo. Os vizinhos que olhavam da janela disseram que enquanto a multidão se dispersava, uns vinte meninos se juntaram com pedaços de paus nas mãos. Rodaram o quarteirão inteiro.

E como eles não sabiam do ocorrido com os bandidos do morro, alguns estavam dispostos a procurar até encontrar e matar quem ou o que fez aquilo. Ninguém encontrou. Até hoje.

Porém, alguns dizem que, na verdade, eles pararam de procurar quando ouviram algo como um ganido e um ranger de dentes. Daí os perseguidores largaram os paus e correram de medo. Dizem que um não teve chance. Dizem.

Para minha surpresa, pela manhã, nas portas de todas as casas, havia vários nomes rabiscados nas paredes. Rebeca. Raquel. Rodrigo. Ruan. Robson. Ramsés. Romário. Ricardo. Todos com R.

Até o nome do menino que gosto, Renan. Gostava melhor dizendo. Ele nunca vai gostar de mim. Nunca falei com Renan. Escrevi uma carta para ele também. Meus pais não gostam quando escrevo cartas. Dizem que me empolgo.

Numa noite ouviu-se um grito e som de móveis caindo. Era uma família gritando: "SAI DAQUI! SAI DAQUI! SOCORRO!!!"

Os sons acordaram alguns Colocaram a cabeça para fora de suas janelas para ver. A família no dia seguinte decidiu não comentar sobre o assunto, porém era nítido o medo no rosto de cada morador daquela casa. Só dias depois contaram que ouviram os toques e os arranhões na porta, mas ela não fora arrombada. Suspeitam que aquilo entrou pela janela que estava aberta.

Liguei para a polícia escondido dos meus pais. "Dane-se! Alguém tem que dar um jeito nisso!"

A polícia veio. Uns quatro carros com homens armados. Dava para ver a expressão de alívio das pessoas. Graças a Deus não há mais barulho, sangue, vômito, fezes, pedaços de corpos de gatos, cachorros ou humanos. Os nomes nas portas também foram apagados.

A vizinhança agora segue tranquila, embora triste. Já podem voltar a dormir. Não há mais barulho no teto de ninguém, não há mais portas apalpadas ou arranhadas, janelas invadidas, nem mortes, nem cartas, apenas saudade dos meus pais e amor pelo tempo que me protegeram e medicaram, já que aquilo... era eu.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 24/04/2020
Reeditado em 22/05/2020
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