A Guerra do Padre Santos contra o 666 (adaptado)

Dentro da igreja, sons de burburinho. Um sininho toca e os diminuem aos poucos e começa a narrativa.

Padre Santos se aproximou vagarosamente do altar. Ao seu lado, coroinhas e o pessoal da música não pareciam sentir o que haveria de acontecer. Pareciam mártires inocentes e o sacerdote se assemelhava a um condenado carregando sua cruz diante da multidão.

Mas era impossível que o decote no vestido vermelho da primeira-dama não fosse notado a quilômetros de distância. Pressentiu que haveria de ser testado pelo diabo, ele que com tantos anos de ofício havia resistido a tudo, velho ainda seria alvo das dúvidas de Satanás.

O sacerdote tentou em vão manter a discrição enquanto celebrava a Eucaristia. O demônio naquele dia estava inspirado e prepotente! Ria da tentativa vã do servo de Deus de não olhar.

Segurava o braço do prefeito, que escondia através de um sorriso maroto a secreta satisfação de ser visto como o dono, proprietário e marido daquela mulher de desconcertante beleza e sensualidade. Era ele o homem premiado na Terra com a companhia e visão daquela obra de arte natural e tingida de loiro 100 claríssimo.

Imagens de Marilyn Monroe, Xuxa e decotes. Música provocante. Alternada com carros como Ferrari e imagem de tinta para cabelo.

O casal municipal fora o último a adentrar no templo. Todos de pé conforme o comando do sacerdote.Santos estava cansado, mal erguendo-se sobre as próprias pernas e com pouca paciência. Decote reluzia apoteótico e dominador do vestido vermelho!

Homens solteiros se despertaram em cadeia, como uma torcida de olho em um lance de uma esplêndida jogada de futebol. Como um gol prestes a ser marcado!

Os homens casados, surpreendidos, despistavam suas esposas dos olhares obscenos e dos pensamentos escusos e libidinosos. Cabeça para um lado e olhos em outro. O sacerdote olhou preocupado tudo aquilo, mas evitando reações suspeitas.

Ao se sentar, a primeira-dama deixou aos olhos do homem de Deus a visão privilegiada. Os demais lamentavam-se sentando apáticos e queixosos novamente.

Seria uma missa difícil aquela! Tentava a todo custo esconder de si esta verdade. O rosto daquela mulher revelava somente pelo sorriso o gosto pelo tumulto causado em tantos pensamentos.

O sacerdote, vestido com as túnicas de Deus, o homem escolhido para conduzir aquele rebanho perdido na fé, arrastou com todo custo as preces, canções e liturgias. Pedia a Deus para tirar do povo a atenção do pecado. Pedia ao diabo um cessar-fogo, literalmente.

Mas ele não estava disposto a ceder. Os homens eram testemunhas, casados e solteiros, testemunhavam com seus olhares, deslumbres e desejos pecaminosos de fantasias proibidas e nefastas.

As mulheres se irritavam em vão e impotentes diante de tamanha beleza e deslumbre que a beleza feminina ali presente impunha inclemente aos que tinham olhos pra ver. Exercendo a supremacia que lhe era por direito sobre as atenções e preocupações masculinas.

O desejo ria de todas as culpas. Ria do desespero contido. Ria da vergonha quanto maior mais se vangloriava a concupiscência da carne.

Já havia decorrido 25 minutos do primeiro tempo. O diabo goleava o sacerdote. Era um Messi, um Cristiano Ronaldo, um craque das tentações carnais voluptuosas.

A defesa do padre Santos estava desesperada. Olhou para o santo padroeiro com olhar de piedade pedindo misericórdia. O reforço pedido do céus em suplicantes orações parecia não ter efeito.

O diabo estava disposto a humilhar. A primeira-dama levantara-se para atender um criado na porta da igreja. Desfilando pelo tapete vermelho, desconcentrou os poucos homens ainda em oração e trouxe para si todos os olhos a mergulharem na sua exuberância.

Fora da igreja, as atenções para o pecado cessaram. Padre Santos deixou cair algumas lágrimas, o milagre havia acontecido. Os fieis começavam a se concentrar novamente, a missa parecia esta sendo salva. A santidade estava se restaurando naquele ambiente!

O diabo estava inclemente naquele dia. . A primeira-dama voltara educadamente. Desfilava de volta ao seu assento. O salto havia desequilibrado aquela mulher. As pessoas gritavam "oh!". As mulheres riam por dentro.

Os homens nem reparam em salto ou na queda, mas somente naquilo que parecia uma deusa sensual visitando o planeta Terra em plena missa de domingo.

A banda em sua empolgação resolveu homenagear o prefeito. Convidaram para se juntar ao louvor a primeira-dama, notória por sua bela voz e canto.

Ao perceber, a jogada de mestre do diabo, padre Santos viu a vitória final lhe escapar inevitavelmente de suas mãos. Estava paralisado, desnorteado e sem ter o que fazer. Mas enquanto ele se paralisava, a primeira-dama subia esplendorosa ao altar e se juntava a banda.

A sua voz comovia até mesmo os anjos que ali estavam. Se não fosse o decote, diriam os desavisados se tratar da aparição de alguma santa ali a abençoar os presentes com o mais puro canto.

Padre Santos estava resignado. Só restava conduzir a missa aos seus últimos minutos, cumprindo o programado e os abençoando no final. O povo se retirou extasiado, as mulheres haviam-na perdoado e os homens pareciam ter contemplado a aparição de uma santa.

Aquela mulher havia redimido todos os homens e mulheres de seus pecados. Os pensamentos torpes, julgamentos apressados, os estereótipos, preconceitos tudo havia se dissipado diante daquele canto que parecia vir diretamente da alma.

Mas padre Santos não havia se convencido disto. Achava se tratar de mais um encanto maligno lançado por Satanás e seguiu resistente, ainda que derrotado.

Com muito custo, pressa e certa má vontade, deu sua bênção ao casal municipal que se retirou junto com o povo da igreja. Deixando o homem de Deus ali sozinho e derrotado em seus pensamentos!

Santos se sentou nas escadarias externas do templo. Estava cansado, sem ânimo para retornar à sacristia, até que os dobres repentinos dos sinos da torre principal tocaram como no dia de finados. Levantou-se apressado em companhia do único coroinha que ainda não tinha ido embora.

Subiu com dificuldade e ajuda do jovem os estreitos degraus que levavam até os sinos. Ninguém havia lá e nem mesmo um forte vento poderia tocar daquela forma aquelas peças de ferro fundido. Olhou por curiosidade pela janela e viu algo que o deixou aterrado.

Eram figuras humanoides imensas com asas tenebrosas, chifres e uma cauda que se arrastava pelo chão como um rabo imundo. Não era noite ainda, mas o céu parecia mais escuro e com menos luz do que o habitual . Não acreditava no que estava vendo, seu coroinha também via a mesma coisa e estava cheio de pavor.

Padre Santos sentiu medo. Talvez a derrota sofrida hoje pelo pecado fizesse Deus esquecer do seu antigo servo e o diabo aproveitou-se disto para acertar as contas. Eles pareciam famintos e vibrantes, mas sua aproximação era lenta como a de quem tinha todo tempo do mundo.

Padre Santos sentiu resignado que sua hora era próxima. Se sentiu abandonado por Deus, mas como Jó, não amaldiçoou ou renegou Deus, pois sentia ter culpa por ter falhado na defesa da missa e de sua igreja.

Já na sacristia, se despediu de seus livros. Lá havia Tomás de Aquino, Santo Agostinho, livros de Bento XVI, Os Segredos de Fátima e o terço benzido pelo Papa João Paulo II durante o Concílio Vaticano II.

Olhou para o coroinha, apertou forte suas mãos e tentou como em um último olhar lhe transmitir os “códigos de guerra”. Se sentiu como um soldado que falhou, mas depositava no garoto a esperança na continuidade da batalha com Satanás.

Disse ao jovem aprendiz das coisas sagradas: “Defenda a Igreja, defendam a igreja até que Cristo volte”. O jovem espantado e comovido não sabia o que dizer.

Aquele homem caminhava como um mártir. Os santos o olhavam respeitosamente.

Satanás se aproximara. Santos já estava de fora até que a porta batesse com força e o trancasse para fora, como o expulsando e o entregando ás garras de Satanás e seus comandados.

Padre Santos era o último de uma linhagem de guerreiros da fé, mas não era o guerreiro para estes novos tempos. O sacerdote era como um Dom Quixote lutando contra os moinhos de vento. Não era mais um guerreiro para aqueles tempos.

Se colocou em boa postura diante daquele séquito demoníaco sem que se deixasse abater em sua dignidade. Segurou o terço benzido pelo Papa João Paulo II.

Antes que aqueles demônios o fulminassem ele desapareceu diante deles. Atônitos se dispersaram contrariados, reclamando e ofendendo uns aos outros e aos homens.

Encontrou então em outro mundo com o Padre Eterno. Para nós homens como Padre Santos se tornaram história.

Para Deus e os anjos, o que dele se despiu de história se juntou ao Espirito Eterno, cujo mistério jamais se revelará por completo. E os que julgam compreende-lo por completo, jamais foram além dos limites da própria história e de seu próprio tempo.

FIM

A Guerra do Padre Santos contra o 666

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 23/04/2020
Código do texto: T6925887
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.