Carta de um prisioneiro

O odor nauseante a certa altura torna-se insignificante. Foi-me dito que passados alguns dias é normal se acostumar à miríade putrefata de morte que toma para si cada contorno desse pesadelo. E foi assim comigo. Meu olfato já não é molestado a cada lufada de podridão direcionada a minha face.

Os que tem a vida ceifada na área adjacente, após o horror, tem seus corpos violados lançados em cima de nós. Então já podes imaginar que não foram poucas as vezes que enquanto dormíamos fomos despertos violentamente com carne morta sendo lançada e aterrissando em cima de nós. O pior é ouvir os berros, uivos e súplicas. O perfurar e rasgar da carne. As tentativas patéticas de negociar com a morte engrolarem na garganta nos momentos finais.

Não tomamos banho desde o aprisionamento e a gororoba, sem forma e de gosto estranho, que chamaríamos de comida nos dar o ar da graça apenas em dias alternados. E em quantidade pífia. Nos primeiros dias, confesso que cheguei a me questionar o que seria, de fato, aquela comida. Um caldo grosso e marrom com pedacinhos do que parece ser carne? Mas com um aspecto estranho e irregular. Seriam pedacinhos dos meus compatriotas? Talvez, afinal eles regressam sem vida e irreconhecíveis.

Mas quando você percebe que nem sempre há comida os questionamentos cessam e você só quer comer e comer. Seja qual for a composição do horror que preenche as tigelas. Voce dilacera e absorve aquilo.

Os corpos sem vida ficam desintegrando juntinho de nós por dias. Eles são retirados do calabouço assim que atingem um estágio de decomposição avançado. Quando estão todos furadinhos de larvas e quando elas estão a sair por todas as cavidades. Eu disse: Todas. Já despertei com os vermes a marchar pela superfície do meu corpo fétido diversas vezes.

Acredito que eles usem óxido nitroso, pois em certo momento desabamos em sono e assim que ocorre a retomada dos sentidos os cadáveres já não estão a nos acompanhar. No lugar, apenas as manchas purulentas e de sangue nos deleitam com sua presença.

Laura, a cada dia que passa, sinto a vida esvair-se um pouco mais da carcaça que outrora chamei de corpo. Sinto dores em todas as articulações. Até prostrar-me em pé tornou-se tarefa delicada e desafiante. Apenas arrasto-me até as tigelas e aguardo, esperançoso, ser levado para a sala ao lado para que o pesadelo possa findar.

Amo-te minha querida. Gostaria de ter sido melhor esposo e pai. Me desculpe minha amada. No exato momento em que escrevo estas últimas palavras escuto passos pesados que parecem vir em direção a este mausoléu infernal. Espero que eu seja o sorteado da vez.

Vou adentrar ao vale da sombra e da morte. Ore por mim. Adeus!!

Richard

Leonardo Castro
Enviado por Leonardo Castro em 19/04/2020
Reeditado em 23/03/2023
Código do texto: T6922051
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