O ESPELHO
        
     Toda vez que eu me olhava no espelho, achava algo estranho. Sempre tive a impressão de estar sendo observado por alguém. Talvez seja coisa da minha cabeça, afinal, minha vida é tão solitária que talvez minha mente esteja inventando coisas.
 
     Eu tinha a impressão que era uma loira que estava a me observar. Mesmo quando estava sozinho em casa, no espelho do banheiro. Quando me olhava de relance, via um vulto passar ao fundo. Pra mim, parecia ser uma jovem loira. Quem sabe sem querer eu invoquei a loira do banheiro?
 
     Com o tempo isso foi ficando cada vez pior. Tanto que comecei a estranhar o que seria o meu próprio reflexo. Aquele ser asqueroso seria eu? Estaria num estado tão decrépito assim? Essa pele extremamente pálida, essas olheiras profundas, esses olhos vermelhos de olhar vazio, esses cabelos grandes, emaranhados e ensebados, sem contar com as marcas roxas espalhadas pelos braços e pernas?     
 
     – Com certeza, se eu topasse com isso na rua iria achar que era um zumbi! –Falei em tom zombeteiro para o espelho e sorri. Mas me parece que o reflexo não gostou muito da brincadeira. Seu sorriso foi mais amarelo e discreto que o meu. Com certeza!
 
     Para piorar, fazia semanas que eu já não conseguia mais dormir direito. Com sorte, por noite conseguia dormir meia hora ou uma hora inteira. Passei a ter a impressão de que estava sendo observado enquanto dormia. Quando eu fechava os olhos, eu conseguia vê-la, junto com outros vultos que eu não conseguia identificar.
 
     Um dia, enquanto estava passeando a beira do rio, no cair da noite, por acaso encontrei um revolver calibre 38, preto, enferrujado. Ele parecia estar lá por um bom tempo. Tomei coragem e o peguei, vi que nele havia ainda uma única munição, também já bem antiga. Escondi-o sob a minha camisa e o levei para casa.
 
     No banheiro, tive uma ideia: E se eu tentasse matar o reflexo? Será que eu conseguiria passar para o outro lado? Será que a realidade lá seria melhor que essa? Toda vez que eu tentava passar para o outro lado ele tentava me impedir. Por qual razão?
 
     Naquela noite eu peguei o revolver e o apontei para o reflexo. O reflexo repetiu tudo o que eu fiz, milimetricamente. Contudo, decidi testar aquele que estava do outo lado. Assim que ele piscasse, eu iria disparar o revolver. E assim aconteceu. Cinco minutos de olhos abertos, já lacrimejando, forçando ao máximo para não piscar e ele cedeu. Foi o suficiente. Atirei certeiramente e me joguei no chão. O mais estranho foi que não houve barulho de vidro quebrado. Houve apenas o som do disparo e de um corpo caindo no chão, nada mais.
 
     Levantei-me coçando os olhos. Minha vista estava turva após todo aquele esforço. Mal conseguia enxerga onde estava. O ar parecia muito denso. O espelho, por sua vez, estava escuro, completamente negro.
 
     Tomei coragem e o toquei. Parecia ser líquido. Finalmente deu certo! Sem pensar passei através dele – afinal, aquele portal poderia se fechar a qualquer instante.
 
     Quando cheguei do outro lado, minha vista voltou ao normal. Contudo, a cena que vi foi bem estranha, pois havia uma equipe policial que prontamente estava arrombando a porta do quarto para ver o que tinha acontecido.
 
     Estranhei a velocidade com a qual eles chegaram. Talvez algum vizinho tivesse ligado. A equipe rapidamente adentrou o meu quarto e logo cobriram suas faces devido ao cheiro pútrido que tomava o ar. Um a um eles ganhavam todos os cômodos.
 
     Observando atentamente os integrantes, eu finalmente encontrei a loira que eu via em meus sonhos e que me espreitava pelo espelho. Era ela, com certeza! A princípio foi difícil de identificar porque ela estava com o rosto coberto por uma máscara médica e o cabelo coberto por uma touca azul. Foi ela quem examinou o corpo do meu reflexo, que parecia estar em um avançado estado de putrefação.
 
     Não resisti a minha curiosidade, tentei falar com ela, mas ela me ignorou por completo, tentei tocá-la, chamar sua atenção, mas tudo o que ela sentiu foi um calafrio. Acho que nessa realidade eu deva ter algum tipo de superpoder: sou invisível e consigo atravessar obstáculos facilmente. Todavia, quando a noite cai, algumas pessoas conseguem me ver. Eu mesmo consigo me ver como um ser completamente enegrecido.
 
     Continuo fascinado pela loira.

* * *
 
     – Carlos, amor, esses dias eu não estou me sentindo bem. Mal consigo dormir, acho que alguém está me seguindo – disse Fernanda ao telefone, com a voz nitidamente abatida e preocupada.
 
     – Calma meu bem, próxima semana estrarei chegando aí. Você está trabalhando demais! Tenta dar uma desacelerada, relaxar mais. Às vezes a nossa mente nos prega algumas peças – Carlos sabia o quanto Fernanda ficava impressionada com o trabalho de perita criminal na Policia Integrada de São Cipriano. Ela vez por outra ficava abalada com alguns casos mais bizarros ou macabros, tendo em Carlos um apoio emocional.
 
     – Isso é algum pesadelo? – ela sussurrou ao telefone.

     – Oi meu bem, falou alguma coisa? – perguntou Carlos, enquanto arrumava a sua mesa e segurava o celular com o ombro.

     Fernanda soltou um grito de pavor quando viu aquele vulto de aspecto zumbítico lhe encarar pelo espelho do quarto, bem na porta, encurralando-a.
Manassés Abreu
Enviado por Manassés Abreu em 15/04/2020
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