O Guardião e o Mensageiro
Conto originalmente publicado na coletânea Nação Zumbi publicada pela editora Literata.
A velha caminhonete vermelha desbotada derrapou quando Pakile tentou desviar de um cavalo que surgiu repentinamente de dentro da névoa espessa, que pairava sobre a periferia da cidade; Amanda, sua irmã, foi jogada contra a porta de metal enferrujado do veículo.
– Droga! – Gritou a bela mulher – Cavalo idiota.
– Como está Cérbero? – Perguntou Pakile preocupado com o cão cinzento na traseira do veículo.
– Achei que você se preocupasse mais comigo do que com o seu cão. – Brincou Amanda limpando o corte na testa. O cachorro latiu. Ele estava em pé na carroceria da caminhonete. O nome do animal era o de um cão de múltiplas cabeças da mitologia grega; responsável pela proteção das entradas do Hades.
– Não fala isso. – Disse ele sorrindo – Não é você que alimenta o seu corvo, Lugh, com as próprias mãos, como se fosse mãe dele? – O enorme corvo negro rodopiou sobre a caminhonete e pousou na cabine. Amanda gostava de conversar e alimentar o animal. Quando os irmãos entravam em uma área desconhecida, o corvo voava pela região e voltava para o pulso de sua dona, em silêncio, ao encontrar tudo tranquilo; se houvesse perigo, o pássaro negro gralhava avisando da presença de zumbis. Cérbero cuidava do solo. O enorme cão cinzento farejava o cheiro de morte e sangue aproximando-se.
– Humm!
– O que foi? – Perguntou Amanda.
– O carro... não quer pegar. – Pakile tentou fazer contato direto, mas o carro não ligou. A névoa aumentava e isso complicava tudo. Nestes últimos anos Pakile, sua irmã e outras centenas de pessoas vagueavam pelas cidades em busca de alimento, comida, abrigo e armas. A vida era difícil e tornava-se cada dia pior, uma vez que as centenas tornaram-se dezenas e do outro lado, dos mortos-vivos, aumentava.
– Temos que caminhar. – Disse Pakile batendo na direção do veículo.
– Droga! Logo em um lugar desses.
– Vamos colocar Cérbero à frente; faça o Lugh voar acima da mata ao nosso lado. – Amanda fez um sinal com as mãos e Lugh obedientemente singrou o céu escuro. Pakile assobiou e Cérbero desceu da caminhonete. Seu dono passou a mão em seu pelo macio e apontou para frente; o cachorro elegantemente caminhou naquela direção. Pakile e Amanda acenderam as lanternas suspensas em seus ombros; pegaram armas na caminhonete e caminharam com atenção, seguindo Cérbero.
O tempo passava lentamente. Os dois viam apenas a silhueta de Cérbero caminhando corajosamente na frente deles. O silêncio de Lugh era bom sinal, mas estava deixando Amanda impaciente.
– Você tem alguma ideia se estamos perto do “Ninho da Águia”?
– Acho que estamos próximos. – Pakile não demonstrou muita determinação. Ele decidiu sair da comunidade onde estava com outras quinze pessoas em busca do “Ninho da Águia”: um pequeno aeroporto do outro lado da cidade. Pakile cansou de esperar e decidiu encontrar um meio de sair daquele lugar morto. Sua irmã não achou a ideia apropriada, mas não poderia deixar o irmão fazer isso sozinho com seu cão.
O ar estava impregnado de cheiros terríveis: de sangue, de podre e morte. Cérbero caminhava atentamente até que parou repentinamente. Pakile tocou o ombro de Amanda e fez sinal para que ela prestasse atenção. A moça olhou para o alto para ver se obtinha sinal de Lugh, mas a névoa não permitia.
– Ahh! – Um grito agonizante ecoou pela estrada. Cérbero avançou, sumindo na branquidão. Pakile e Amanda apressaram um pouco o passo e cuidadosamente seguiram em direção a Cérbero. Ao sair da estrada no outro lado, viram uma enorme casa antiga, uma pessoa deitada no chão do jardim e Cérbero circundando-o.
– Será que aquela pessoa foi atacada por algum zumbi? – Perguntou Amanda.
– Não sei, tome cuidado! – Preveniu Pakile.
– Socorro! Meu cavalo... ele me derrubou. – Era um homem. A perna estava quebrada. Pakile e Amanda aproximaram-se.
– O que aconteceu? – Perguntou a moça.
– O meu cavalo, assustou-se com algo e me jogou ao chão. Minha perna está com fratura exposta. Por favor, me levem para dentro de minha casa, está seguro lá. – Pakile encaixou a arma nas costas e tentou avaliar a perna do homem. Amanda continuava olhando para o alto procurando por Lugh.
– Ajude-me aqui Amanda. – A mulher parecia distante – Amanda!
–O Lugh está demorando e isso me deixa preocupada.
– Vamos levá-lo para dentro. Se houvesse perigo o Lugh... – A frase de Pakile é interrompida pelo gralhar aterrador de Lugh.
– Merda! – Pakile puxa imediatamente a arma das costas.
– O que foi? – Pergunta-se o homem assustado deitado no chão. Cérbero começa a latir. A tensão aumenta vertiginosamente.
– Ali! Eles estão chegando pela estrada. – Grita o homem caído. Meia dúzia de monstros corre em direção aos sobreviventes.
– Entre na casa Amanda! – Grita Pakile. A mulher obedece sem pestanejar – Cérbero e Lugh a seguem.
– Atire em mim! Não deixe que eles me peguem! – Implora o homem deitado percebendo que seria impossível para Pakile cuidar de um homem que não pode andar. Peso morto. Naqueles tempos, cada um deveria estar preparado para algo assim. Pakile olha para os monstros aproximando-se e depois para o homem deitado – Por favor! – Pakile o alveja. Não há gritos. Enquanto atira ele corre em direção a casa. Pakile consegue derrubar três dos monstros; um deles ainda levanta-se. Amanda o aguarda a porta. Tão logo seu irmão entra, ela a fecha no último segundo antes que os zumbis o alcancem.
– Essa foi por pouco! – Disse Amanda. Gritos e urros são ouvidos lá fora.
– Estamos salvos por enquanto. Vamos vasculhar este lugar para ver o que podemos conseguir. – Repentinamente os barulhos lá fora cessaram.
– Desistiram! – Disse Pakile – Acho que devemos dormir aqui esta noite.
Eles vasculham a casa e encontram algumas latas de comida congelada na cozinha; comem e alimentam os animais. Pakile constantemente vigia o ambiente lá fora, olhando pelas janelas dos quartos superiores.
Amanda encontrou água no banheiro e decidiu tomar um banho. A moça esqueceu-se por um instante o mundo morto em que vivia agora. Ela distraiu-se enquanto a água morna escorria pelo seu corpo. Esse foi um grave erro. A porta do quarto foi aberta e um zumbi entrou; Amanda ouviu o barulho e saiu nua como estava; o monstro faminto estava ali a sua frente. Ela não tinha nenhuma chance, pois sua arma estava do outro lado do quarto, sobre a cama. Decidiu chamar, sem esperanças, pelo irmão:
– Pakile! Eles estão aqui. – Esse foi um erro ainda maior. Dois outros zumbis entraram no quarto e caminharam em direção à mulher; numa fração de segundos, ela saltou para a cama e pegou a arma; atirou no primeiro monstro; os outros dois estavam próximos demais e arrancaram a arma de suas mãos. O fim era iminente até que subitamente Cérbero invadiu o quarto e de um único salto derrubou os dois zumbis. Uma luta prosseguiu enquanto Amanda descia da cama e pegava a arma no chão. Cérbero grunhiu. Amanda atirou furiosamente nos mortos-vivos. Nesse momento Pakile entrou no quarto. Cérbero estava deitado. Pakile desejou que o pior não tivesse acontecido, mas os olhos de Cérbero denunciaram que ele não era mais o dócil cão de outrora.
– Cérbero... não. – Desceu uma lágrima dos olhos de Pakile, mas tinha que matá-lo. Mas, estranhamente, o cão não esboçou nenhuma reação assassina para os dois irmãos. Ele caminhou entre os corpos dos zumbis destroçados e os irmãos; olhou para trás quando chegou à porta e desceu as escadas como se tivesse reconhecido a sua família e não as quisesse atacar. O cachorro, agora um zumbi, sumiu na noite escura.
Uma semana depois Pakile, Amanda e Lugh chegaram ao “Ninho da Águia”, mas não encontraram nenhum avião. Os dois irmãos nunca se juntaram a outros sobreviventes, preferiram sobreviver sozinhos. Eles vagueiam pelas cidades destruídas e vazias, e muitas vezes encontram Cérbero sobre os telhados, caminhando pelos bosques e estradas. Às vezes o cão aparece sobre as colinas como um guardião do inferno que se tornou a terra; e sempre parece reconhecer à distância, o homem que fora seu dono.