ESTRANHA FOBIA
Sabe-se que há no mundo uma infinidade de medos e fobias. Algumas são bem comuns e compreensíveis aos olhos da coletividade e conduzem a um senso de tolerância e empatia, como aversão a aranhas, baratas, ratos e cobras, assim como os temores de altura e de voar. Entretanto, há outras repulsas que se apresentam extremamente estranhas e sem sentido diante da opinião dessas mesmas pessoas, as quais, via de regra, oferecem um julgamento preconceituoso e até mesmo jocoso. Pois bem, fui contemplado por uma dessas que podemos chamar de fobias incomuns. Trata-se de um transtorno conhecido como ornitofobia, que responde pelo pânico total e irrestrito a aves. Esse medo descontrolado já é por demais bizarro por si só, no entanto, ao longo dos anos, converteu-se em algo ainda pior através de uma condição conhecida como alectorofobia, na qual o meu medo concentrou-se em galinhas, frangos e galos. Entendam, esse horror não se aplica à carne dos bichos, mas aos seres em si.
Eu não sei exatamente quando tudo começou, mas de certo as perseguições que sofria ao ir e voltar da escola, tendo o meu caminho interrompido pela fúria de gansos insanos, contribuíram consideravelmente para isso. Assim como as ameaças feitas por minha mãe quando, às gargalhadas, sacudia na minha frente as cabeças decepadas dos frangos que serviriam de almoço. Ou ainda o ataque que sofri quando era bem pequeno, onde um galo cravara as esporas em minhas costas, deixando marcas profundas e doloridas, não só no corpo, mas também na alma.
Por sorte ou conveniência do destino, nunca morei numa área rural, na qual a possibilidade de enfrentamento aos meus temores seria uma tarefa diária. Sempre vivi na cidade grande, onde a maior ameaça à minha paz respondia pela presença dos desprezíveis pombos urbanos. Mas, contra eles, apenas procurava evitar sua presença, e quando necessário, esperava que o andar apressado de outros transeuntes tratasse de dispersá-los. Assim, seguia com a minha vida.
Apesar de morar na cidade, minha residência se fixava no chamado subúrbio, o que definitivamente não era o mesmo que uma área campesina, mas que ainda assim flertava com costumes mais rústicos quando comparados ao ritmo frenético dos centros metropolitanos. Eu tinha quinze anos de idade quando ocorreu o horror que desencadeou um divisor de águas em minha existência, pois o que vivenciei sobrepujou, e muito, os pavores ligados ao medo irracional da condição psicológica, uma vez que toda a monstruosidade à minha volta fora inexoravelmente real.
Minha família habitava uma vila, algo bem comum aos já citados rincões. Havia uns dois pares de casas na parte frontal do terreno, do qual, em seguida, estendia-se uma horta comunitária, um poço artesiano e um canil desativado. Todo o espaço era ladeado por uma variedade de árvores frutíferas. Nos fundos do espaço ficava a residência da proprietária, uma viúva de nome Nilma.
Dona Nilma era uma senhora cujos caprichos do tempo trataram de esculpir em seu rosto uma mescla formada por sinuosos sulcos e implacáveis tons arroxeados. Um resultado repulsivo e ainda mais acentuado pelos efeitos nocivos do hábito tabagista. Em sua face peculiar, destacavam-se as órbitas grandes e expressivas, marcadas por uma tonalidade incomum de verde, de onde eu podia jurar ter visto mais de uma vez um reflexo brilhante e ferino. De um modo geral, era como se aquela mulher abrigasse sobre si todo o peso das eras.
Sobre ela, era comum ouvir pelas ruas que a velha aceitava certos favores como pagamento pela locação em seus domínios. Nunca duvidei da veracidade desses fatos, mas com o tempo, parando para analisar, constatei que o meu pai não fizera parte da sua lista, apesar de que seus olhos de rapina estivessem sempre a espreitá-lo. A única que frequentava a casa da mulher era a minha irmã gêmea, também numa tentativa de obter um desconto no aluguel em favor da renda insuficiente dos nossos pais, porém com uma abordagem diferente. A garota frequentemente se dispunha a limpar a casa da senhoria e de lhe preparar algumas refeições vez ou outra.
Não sei se por conta do desprezo por parte do meu pai, ou simplesmente por antipatia, mas sempre tive a convicção de que a velha não me suportava. Dava para sentir a ojeriza por trás do verde profundo de suas órbitas sempre recheadas pelo negrume das olheiras. Jamais ouvi uma só palavra positiva dos seus lábios finos e ressequidos.
Essa hostilidade gratuita ficava apenas no campo dos tratamentos, sem um aprofundamento ou atitudes mais incisivas. No entanto, a situação viria a mudar rapidamente, e de modo mais intenso do que gostaria, confesso.
Eu não sei como funciona nas demais regiões do país, mas era usual no início da década de oitenta, nas vias do subúrbio carioca, a ação praticada por alguns vendedores ambulantes, onde os mesmos circulavam pela localidade em kombis, oferecendo a troca de garrafas usadas por picolés e pintinhos coloridos.
Minha irmã e eu sempre que podíamos fazíamos a troca, nos valendo de receber a nossa parte em amostras refrescantes de chocolate ou creme holandês. No entanto, naquela tarde, não sei o que deu na garota, mas ela resolveu trocar os seus exemplares envidraçados pelos filhotes emplumados, com a anuência dos meus pais.
Obviamente, eu não chegava perto, mas ela adorava aqueles bichos pintados de amarelo e cor-de-rosa. Daí para frente a minha vida viria a se tornar um inferno. Alimentados com farelos de milho e toda a sorte de migalhas, as aves cresceram rapidamente, tornando-se exemplares machos de tonalidade avermelhada, quase cobre, por todo o corpo, salvo a cauda e algumas penas esporádicas que se mostravam azuladas, quase negras, um horror aos meus olhos.
Era necessário que eu fizesse desvios e malabarismos para evitar cruzar com os bichos pelo quintal, mas ainda era possível sobreviver, apesar de toda a angústia. Mas isso viria a mudar logo.
Suponho ter sido o único que viu a chegada daquele homem ao cair da noite na casa de Dona Nilma. Assim como a senhoria, aquele homem trazia no corpo a ação intempestiva do tempo, mas de modo diferente da mulher, parecia que ele carregava algo mais consigo. Não sei explicar, mas era como se uma amálgama de vida e morte fizesse morada em suas feições, algo que extrapolava as nuanças da velhice de uma forma normal. Como disse, acho que fui o único a perceber sua chegada, mas não o vi sair, isso posso garantir, pois passei a noite observando a casa da velha, tamanho o desconforto que fiquei com a sua presença. Ele havia entrado, mas não saíra.
Dona Nilma tinha por hábito jogar grãos de milho para os galos de minha irmã. Grãos que não eram propriamente dourados, mas acinzentados quase brancos. Os bichos, com a sanha que lhes era peculiar, devoravam a tudo com sofreguidão. Mas naquela manhã, não eram as famigeradas partículas insossas o que ela jogava, era um farelo denso e enegrecido. E, enquanto lançava a poeira ao ar, ela me olhava e oferecia um sorriso mutilado.
Tirei os olhos da fresta da janela e, com as costas na parede, tentava controlar a respiração acelerada que ameaçava arrancar meu coração do peito. Permiti a mim mesmo uma nova olhadela, a velha não estava mais lá, mas o que vi foi ainda pior. Um dos galos, não sei precisar qual, uma vez que os bichos eram idênticos, adquirira uma coloração mais escura, ao passo que seus olhos davam mostras de terem ficado maiores e também perdido a pigmentação natural, ganhando uma tonalidade âmbar e brilhante. Eu poderia jurar junto à cruz que ele crescera consideravelmente. Mas o pior eram seus atos. Com uma fúria quase humana, ele atacou e destroçou seu semelhante, e com sofreguidão devorou cada parte do animal morto, não deixando de lado nem as penas ou garras. No fim, apenas manchas escarlates manchavam o solo, mas quando tomei coragem para me levantar e sair, nem isso restava. A alvorada começava com um canto forte e amedrontador, algo que não soava como as notas peculiares dessas aves, mas sim com o timbre de algo desconhecido e, talvez, inominável.
Tudo o que eu mais temia tomava corpo, afinal, o medo que fazia morada em mim até então respondia por um estímulo psicológico e, ainda que toda a minha convicção dissesse o contrário, o pavor não insinuava, de fato, uma ameaça palpável. Eu tentei, juro que tentei fazer com que meus pais acreditassem no relato que fizera acerca do acontecido, mas eles não deram razão às minhas palavras, sobretudo quando aquela velha maldita nublara o relato ao afirmar que o galo, supostamente morto pelo outro, havia fugido pelo portão aberto e que, de certo, uma figura oportunista o levara consigo. No fim, a falta de credibilidade convertia-se em mero delírio de uma mente perturbada, assim alegaram.
Entretanto, eu sabia muito bem o que havia presenciado, não havia dúvidas de que aquela criatura era extremamente perigosa, e os fatos que começaram a se suceder em todo o bairro confirmavam minhas desconfianças. No princípio, fora um gato vadio desaparecido, depois outro, só que este criado com esmero por uma família, em seguido outro, e um cão, e outro, até que muitas mascotes de toda a gente sumiram sem deixar vestígios. O ápice viria a ocorrer com o sumiço de um garoto muito mais novo do que eu. Apesar de todas as buscas, a criança nunca mais viria a reaparecer.
A linha de pensamento dos moradores era a de que havia um maníaco a solta pelas ruas, mas eu sabia muito bem quem era o responsável por tais atrocidades. Nada tirava da minha cabeça a imagem daquela criatura destroçando a outra, e não era difícil de imaginá-lo fazendo o mesmo com os demais bichos desaparecidos e, até mesmo, que os céus me protejam, com crianças.
O maldito parecia ficar maior a olhos vistos, a cada dia que passava. Era enorme, media mais de um metro e vinte. Eu mal conseguia sair de casa, pois havia a nítida impressão de que ele seguia os meus passos aonde quer que eu fosse. Eu o enxergava saltando por entre os telhados fazendo uso de um voo silencioso para tal. Ele se empoleirava nos galhos das árvores, se esgueirava pelos muros e vielas, dando mostras de que aguardava apenas uma chance para acabar comigo. Eu literalmente quase morri ao vê-lo pendurado no beiral da minha janela, com aquelas garras negras arrancando o verniz da madeira a poucos metros da minha cama. Em pânico, fui levado para o hospital tomado por uma relutante taquicardia e banhado em suor gelado.
Enfim, meus pais se deram conta de que o melhor seria se desfazerem do galo, para desespero na minha irmã. Logo, o bicho fora levado para a casa da minha avó, com a promessa de que a garota poderia visitá-lo sempre que quisesse.
A princípio, eu estaria livre daquele demônio. Mas a despeito desse suposto livramento, a condição que me acometia viria a piorar drasticamente. Eu já não conseguia manter a sanidade e a sensação de perseguição não me abandonava. Logo, meus pais chegaram à conclusão que a internação numa instituição de cuidados mentais seria a melhor opção naquele momento.
Apesar das boas intenções, aquele lugar estava longe de proporcionar uma ajuda eficiente a qualquer um que fosse. De modo resumido, o tratamento se valia de confinamento e remédios que mais nublavam a mente do que traziam lucidez. As visitas eram poucas, mas uma em especial, no entardecer de uma sexta-feira chuvosa, viria a trazer mais pânico para o meu coração atormentado.
Eu estava estático na cama sob os açoites indomáveis das alucinações quando ela surgiu do nada defronte à minha cama. Gotas de chuva salpicavam a tintura negra de seus cabelos. As olheiras, mais fundas do que minha memória era capaz de resgatar, apresentavam um contraste nauseante com o já destacado verde cínico de seus olhos. Todo o torpor que até então me dominava pareceu evanescer diante de sua presença, embora, ainda assim eu não conseguisse me mexer.
- Garoto, meu bom garoto - ela disse encostando os lábios bem próximos do meu ouvido esquerdo, quase me sufocando com o hálito de nicotina - você sabe que não pode se esconder, que é impossível fugir do próprio destino.
Embora eu quisesse muito, não conseguia emitir uma só palavra que fosse.
- Sabe, aquele a quem sirvo se afeiçoou a você. Ele te viu espiando pela fresta da janela, e naquele momento decidiu que queria você, não há como escapar disso. Ele me deu muito, garoto. Protegeu minha saúde e prolongou os meus anos além do que a natureza permite. Em troca basta que eu arranje sempre um novo vaso, um corpo para que ele possa habitar. Mas a essência que o compõe infelizmente é demasiadamente nociva, de modo que não dura muito. O hospedeiro apodrece e se desfaz, igual àquele sujeito que você viu. Por isso quanto mais jovem o corpo, melhor. Enquanto não lhe ofereço um hospedeiro definitivo, tenho que transpor a essência para um ser inferior, como um cão, um gato, ou como aquela ave que você tanto adora.
Ao mencionar as últimas palavras, ela gargalhou sem pudor algum, mostrando um total desprezo pela minha pessoa.
- Mas sabe de outra coisa, garoto. Não faço assim tanta questão de você não. Sabe por quê? Sua irmã está lá na sua casa, disponível, com certeza ela deve servir tanto quanto você.
Diante do meu desespero, ela ainda esbofeteou o meu rosto antes de sair grasnando uma risada tão amarga quanto a sua presença.
Eu sabia exatamente o que ela queria, afinal não sou estúpido. A isca tinha sido jogada, ela sabia que eu não poderia deixar minha irmã indefesa e totalmente alheia ao perigo. E ela estava certo nisso. Já estava mais do que na hora de enfrentar os meus medos. Eu só precisava arranjar um meio de sair daquele lugar.
Certamente, muitos já deveriam ter tentado escapar pelo muro lateral da quadra poliesportiva que fazia divisão com um conjunto de casas. O muro era alto? Sim, e ornado por concertinas afiadas. Não sei se tiveram sucesso ou não nas investidas, mas eu teria, mesmo com as câmeras de vigilância. Havia uma pequena passagem junto a uma árvore, rente ao muro pelo lado das residências. Com meu corpo esquálido, eu tinha certeza que conseguiria passar por ali.
A madrugada já estava alta quando coloquei em prática o meu plano. Não tive qualquer dificuldade para escalar o muro utilizando as reentrâncias como apoio, os momentos na corrida pelas pipas nas ruas moldaram tal experiência. O espaço delimitado pelas lâminas afiadas junto ao tronco era mais estreito do que eu supus, mas mesmo assim consegui me esgueirar pelo vão. Logo, já estava fora daquele local de opressão, e melhor, sem que ninguém me visse. Segui pelo telhado das casas na tentativa de chegar às ruas com a esperança de que tudo continuasse bem, mas foi só completar o pensamento para que um passo em falso me jogasse ao chão. Não me machuquei, mas o barulho chamou a atenção de um cachorro no quintal onde caí. Corri sem me lamentar pela dor nas pernas e antes que ele fosse capaz de me alcançar, saltei pelo muro, que por sorte era baixo. De costas no chão, observei os latidos ferozes do animal que mantinha a cabeça atravessada nas grades do portão. Caso o bicho em questão fosse uma ave, de certo eu não teria conseguido fugir. A paralisia me consumiria, de modo que eu seria incapaz de sair do lugar. Seria preciso me superar para enfrentar o inimigo que me aguardava. Ganhei as ruas sem esperar que o dia clareasse, eu precisava de uma carona num ônibus de volta para casa, a urgência me guiava.
Cheguei à vila, a qual, naquela altura estava tomada pela escuridão, a despeito de uma parca iluminação que provinha de um dos cômodos da casa daquela maldita bruxa. Como dito antes, a residência de Dona Nilma não ficava próxima das outras da vila, seria preciso atravessar toda a área comum para chegar até lá. De onde eu estava só conseguia perceber o pequeno ponto luminoso ao longe. A total escuridão me causava um pavor imensurável, pois eu sabia que aquele bicho endemoninhado estaria pelos arredores. Com toda a certeza do mundo, ele havia arranjado um jeito de fugir de onde meus pais o mandaram.
Pé ante pé segui pelo negrume da noite. Vez ou outra eu olhava para o alto, vislumbrando a copa das árvores e o telhado das casas. O único som que conseguia discernir era o da minha própria respiração mesclado com o ritmo acelerado em meu peito. Eu trazia nas mãos um longo facão enferrujado que retirei do armário perto da cisterna, o velho senhor Norberto, vizinho nosso, fazia uso do instrumento para cortar o mato do terreno baldio defronte à vila.
Cheguei perto da casa sem ser surpreendido pelo bicho. A luz se originava da sala. De modo furtivo, olhei pela fresta da janela e o que vi trouxe ainda mais desespero para o meu coração. Ali, presa nos domínios da mulher, estava minha irmã, de costas para mim e amarrada junto a uma cadeira.
Levei uma das mãos à boca para sufocar um grito que ameaçava me entregar. Eu poderia ir até minha casa e acordar os meus pais, mas certamente quando voltasse à cena, esta estaria modificada e eu seria levado de volta ao internato para loucos. Não. Eu precisava agir naquele momento, não havia mais tempo para divagações.
Entrei pela porta mesmo, não me importei com cuidados. A fechadura destrancada insinuava que ela me esperava, de qualquer modo. Aproximei-me da cadeira, chamei pela menina, mas tudo o que tive como resposta fora a percepção de um deslocamento de ar. Não tive tempo de levantar o facão, pois fui atacado pelas costas pelo maldito demônio em forma de galo. O infeliz cravou suas esporas no meu tronco arrancando carne e sangue. Eu gritava com toda a força dos pulmões, enquanto a fera lançava investidas vorazes com seu bico afiado contra o meu peito. Não há palavras que possam descrever com exatidão o sofrimento que me afligia. Eu estava vivendo o meu pior pesadelo. Os sentidos já ameaçavam me deixar quando, estarrecido, percebi que minha irmã se levantava da cadeira como se nada, de fato, a atrelasse ao objeto.
Perplexo, eu permanecia sob o jugo da ave amaldiçoada, cujas esporas convertidas em garras enormes, negras e afiadas projetavam-se na direção do meu coração. Lentamente, minha irmã, fazendo uso das mãos enluvadas, ergueu o facão que eu havia deixado cair no chão. Só então notei que realmente havia alguém enclausurado naquele recinto, pois vi, com clareza os contornos familiares de Dona Nilma num dos cantos da sala. A velha estava amarrada e amordaçada. Seus olhos lodosos expressavam tanto horror quanto os meus. Ela se debatia na cadeira enquanto a garota caminhava em sua direção com a lâmina em punho. Bastou um só golpe no peito para que a vida da senhoria encontrasse o seu fim.
- Ora, irmãozinho, não me olhe assim, ou você achou que eu realmente fazia questão de limpar a casa dessa bruxa só para termos um desconto no aluguel? Eu sempre soube que havia algo de errado na vida dessa velha, e quando descobri, decidi que queria para mim. Não foi difícil perceber que ela tinha interesse em você nos planos que ela tramava. Sabe por quê? Esse seu medo tolo era fundamental para criar o elo entre você e o ser inferior, e eu concordo, e muito, com o raciocínio que ela teve. Então, bastava roubar a sua ideia e trazê-lo aqui para completar o serviço. Para tal bastou que numa conversa eu lançasse no ar a ideia de que você era um irmão zeloso e protetor, e que sempre fez tudo por mim. Eu sabia que ela usaria isso para te atrair até aqui. Assim, quando ela pediu permissão aos nossos pais para te visitar, sabia que logo em seguida você estaria aqui. Viu como acertei?
Ao dizer isso, minha irmã descreveu um semicírculo no ar com a lâmina e decapitou o bicho. Enquanto a cabeça voava longe, o corpo degolado permanecia na mesma posição. Logo, uma fumaça escura e fétida começou a ser expelida pelo vão ensanguentado e antes que eu pudesse me dar conta, o vapor espiralado ganhou o meu corpo pelos ouvidos e narinas.
A luz do dia já entrava pelo recinto quanto os vizinhos e meus pais chegaram à casa da velha Nilma, de certo atraídos pelo barulho, e se deparavam com a senhoria morta com um caminho escarlate aberto no peito e com um galo decapitado no chão. Além, é claro, de mim mesmo, ofegante e com o corpo ferido. Mas antes que eu pudesse falar qualquer coisa, minha irmã se antecipou e disse:
- Foi ele, mãe. Não sei como ele descobriu que eu havia trazido o galo de volta da casa da vovó e que tinha pedido a Dona Nilma para tomar conta dele. Então, ele fugiu do hospital e atacou o meu bichinho, o meu pobre bichinho. E matou a Dona Nilma também. Eu o vi pulando o portão e vim atrás dele...tentei impedir, mas não consegui fazer nada. Por pouco ele não me machucou também.
Eu não podia acreditar naquilo que estava acontecendo, mas também não tive como retrucar, afinal, todos me tinham como o louco fugitivo, além do que eu já não tinha forças ou discernimento, de qualquer modo. Assim, antes de perder para a sempre a consciência e me tornar um invólucro para um demônio, ainda pude constatar um familiar brilho esverdeado no olhar de minha irmã, enquanto ela abraçava nossos pais. Os últimos reflexos de uma estranha fobia.