COVID-19. FIQUEM EM CASA!!!!!
O velho Deodato desceu serelepe a rua das Rosas, sob o sol abrasador do verão carioca. A camisa do Botafogo e o boné das Casas Bahia. O palito na boca. A barba longa. O carrinho de mão cheinho de macaxeira. -" Macaxeira da boa. Cincão o quilão!!!" Gritava pelas ruas do bairro. Um comprador aqui. Uma compradora alí. A molecada empinando pipas. A cachorrada latindo. O funk vindo dos carros rebaixados. -"Essa macaxeira é boa, meu senhor???" Perguntou a mulata que segurava um menino no colo, outro chorando agarrado às pernas da mãe. -"Boa???? Desmancha na pressão, dona!!! Compre mandioca de velho pois é mole!!!!" O velhote parou de rir quando um homem saiu com um rifle. -" Pra dentro, Dolores!!! Mandioca, adoro mandioca!! Quanto é, seu velho???!" Deodato pegou uma sacolinha. Jogou a pequena balança do lado. -"Pro amigo, é gratuito. Experimente e fique freguês!!!!" Entregou ao outro uma generosa porção dos tubérculos. Acenou e se foi. Meia hora até chegar em casa. Parou no bar do Fonseca pra tomar uma gelada. Alguns amigos jogando sinuca. -"Não é bom ficar por aí, Deodato. O Corona está solto!!!" Deodato sorriu. Enxugou o suor da testa. -" Sou Bolsonaro, Fonseca!! É só uma gripezinha!!! Ele está certíssimo
" Mostrou uma coxinha. O barman pegou o salgado. Um vidro de molho de pimenta. -"Devia parar com a cerveja, Deodato. Salgado faz mal na sua idade." Aconselhou o dono do estabelecimento. Os frequentadores do boteco riram. Deodato ficou nervoso. -"Pare você, Fonseca. Está parecendo minha mulher!!!!" Deodato começou a tossir. Um jovem entrou no bar. Estava com uma máscara cirúrgica. -" Agora começou essa lezeira de usar máscaras!!! Se bem que algumas pessoas deveriam usar sempre, mesmo depois da pandemia!!!" Soltou Deodato. As pessoas tiram mas logo ficaram em silêncio. -"Já chegou no Rio, Fonseca???? Esses ricos vivem indo pra Europa. " Perguntou um dos jogadores de sinuca. O barman ligou a televisão. Deodato deu uma olhada no carrinho de macaxeira. -" Não vendi bolhufas!!! Tive prejuízo hoje!!!!" Fonseca ergueu o volume da tevê. -"O prefeito ordenou quarentena!! As ruas estão vazias!!!! Cancelaram o Encontro, com a Fátima Bernardes!! Ana Maria Braga está de molho!!! Logo, logo vão adiar as olimpíadas!!!!" Disse o dono do estabelecimento, limpando o balcão. Todos prestando atenção ao noticiário. Os repórteres informando sobre os sintomas do Coronavírus. -" Diarréia tenho direto. A nega Zumira capricha no óleo que é uma beleza!!! O arroz até brilha!!! Falta de ar tenho direto com o ataque do Fogão. Tá osso!!!!! Não sentir cheiro, tosse e espirro.... tudo coisa de velho. Por isso estamos no grupo de risco." Deodato olhou as horas no celular. -"Melhor coisa que fizeram foi parar o futebol. Tava ruim ver o Mengo ganhar tudo!!! Novela então, só passam assassinato e traição, assassinato e traição. Não sai disso." Um dos homens pediu que ele fizesse silêncio. Deodato ignorou. -" Pra que visitar os parentes?? Eles fingem gostar da gente. Nesse ponto melhor ficar em casa mesmo. Ver as replises. Daniel Boone, Chaparral, A Viagem, a final do Brasileirão de 95.....gol do Túlio Maravilha. Wilson Gotardo, Mazolinha, Maurício, Donizete Pantera.... que emoção. Eu chorei.... jogos da copa de 2002." Fonseca beijou o escudo da camisa. -" Isso é coisa que rico trouxe pro Brasil. Pobre não vai pra Europa, não vai pra China." O telejornal passou a correria por produtos nos mercados. A alta dos preços de álcool gel e o sumiço de máscaras cirúrgicas das farmácias. Deodato começou a tossir. -" Você deveria se cuidar, Deodato. É idoso, asmático, diabético e safenado!!!!" Disse Alfredão. O homem pegou o copo de cerveja e o tomou. Deodato deu-lhe um tapa no ombro. -"Isso não lhe dá o direito de tomar minha gelada, Alfredão." Deodato colocou o banquinho de lado. -" Vou pra casa, pessoal. Agora é só Coronavírus pra cá, Coronavírus pra lá. Fonseca, pindura aí." Os amigos da sinuca arremataram toda a mercadoria do carrinho dele. Deodato abriu um sorriso. Ficou emocionado com o gesto. -"Vá pra casa, homem. Você está no grupo de risco. É sério!!!!" Disse Alfredão. Tempo depois, Deodato abriu o portão de casa. O cachorro Toby veio até ele. -"Eu cheguei em frente ao portão, meu cachorro me sorriu latindo!!!!" Cantarolou a música do rei Roberto Carlos. A tarde caiu. Deodato levou um susto ao abrir a porta da casa. O samba campeão da Viradouro tocando alto. -"Pode ir tirando a roupa, Datinho. É uma ordem!!!!" O homem arregalou os olhos. -"Agora, paixão?!!?!?? Estou sem o azulzinho." A mulher cruzou os braços. -" Mente poluída. É pra lavar sua roupa, homem. Pode estar infectada de Corona pois você veio da rua!! Trata de tirar os chinelos e lavar com água sanitária..... O doutor Bactéria disse que oitenta por cento dos germes ficam nos sapatos!!!!" Deodato obedeceu. -" Pronto, viramos tudo japonês. Eles entram na casa sem sapato." A mulher continuou. -" Você está no grupo de risco, paixão. Nada de sexo. A partir de hoje, você vai dormir no sofá!!!!" Deodato ia retrucar mas resolveu obedecer. Ela tinha o controle, inclusive o da televisão. Semanas depois. O crescimento da pandemia. As mortes na China, Itália, Espanha, Estados Unidos e Brasil. -" Quer dizer que são os outros que podem passar pra mim, coração???? Eu achando que era o contrário." A notícia do adiamento das olimpíadas. A ajuda dos seiscentos reais pelo governo aos informais e microempreendedores. O aumento de mortes no Brasil. Deodato finalmente resolveu ficar em casa. Fonseca ligou e o avisou que fechara o bar. Ordens do prefeito. -" Esse Mandeta, ministro da saúde, vai cair logo. Está contra o presidente, o mito." A mulher, trinta anos mais jovem, estava ocupada com a roupa no varal. Ela saía pra fazer mercadinho e pagar boletos. -"Suquinho da imunidade para o meu Datinho. Tem manga, inhame, limão, maçã, mel, água e castanha de caju!!!!" Deodato fez cara de nojo. Preferia uma gelada. Fazia exercícios pra fortalecer os pulmões. -" Nada de querer ir no culto do pastor Cláudio!!! Fica em casa!!!! Rezamos em casa mesmo." Ordenou a esposa. Deodato consentiu. -"Essa pandemia veio ensinar sábias e preciosas lições a essa geração, Zumira!!! Eu sempre me cuidei. Tenho sessenta e dois num corpinho de vinte!!!!" Dia 28 de março. Aniversário dele. A tradicional feijoada. O bolo floresta negra, preferido dele. Poucos convidados. A sogra, os seis cunhados e a turma do bar do Fonseca. As cadeiras colocadas no quintal dos fundos. Um metro de distância entre elas. O som alto. Alfredão colocou caipirinha numa lata de fanta uva. -"Toma, Deodato. Hoje está liberado!! Parabéns, amigo!!" Deodato o abraçou. -"Amigo, não é fanta..... Obrigado por pensar em mim!!!" Deodato tomou três cervejas, disfarçadas na lata de refrigerante. Só Alfredão sabia do esquema. Zulmira abraçou o esposo. -"Querida. Está sem perfume?!???" Zulmira sorriu. -" Estou com perfume, Datinho. Tomei banho de Jequiti!!! Perfume da Eliana!!!!" Alfredão olhou para o Fonseca. -"Anosmia, perda do olfato, pode ser sinal da presença do Coronavírus!!!" Deodato começou a tossir. Uma tosse seca. Era fumante, até conhecer Zulmira numa festa da Petrobrás. Uma hora da tarde. Todos foram embora. Deodato tomou os comprimidos pra pressão e diabetes. Ele entrou no banheiro. Precisava de um banho. Zulmira entrou no banheiro. O box embaçado. Ela abriu o box. Estava como veio ao mundo. Deodato se assustou. -" Fia da mãe. Parece filme de terror do Hitcock.... que susto!!!" Ela o beijou. Ela passou um comprimido da boca dela pra dele, durante o beijo. -" O que é, paixão?!?? Drops?!? Tic Tac!?!???" A mulher saiu do box. -"Hoje é seu aniversário. Está tudo liberado!!!!" Deodato saiu do banho. Um cheiro de incenso no quarto. Olhos curiosos. Uma vela aromática. Uma música do Belo, tocando baixinho. Uma luz vermelha no abajur. Zulmira nua na cama. As almofadas do Botafogo. As janelas fechadas. O ventilador ligado. -"Eita, visão do paraíso, Zuzu. Um mês inteiro, a gente fica igual lagartixa, subindo nas paredes!!!!" Ela o puxou com violência. -" Bota fogo, Datinho." Quinze minutos de sexo selvagem. A cama quebrou. Eles riram muito. Eles foram se amar no sofá da sala. O casal de pombinhos adormeceu. Abraçados. A noite caiu. Zulmira acordou com os latidos do cachorro. Deodato não acordou. A mistureba de remédios, caipirinha, cerveja e Viagra foi fatal ao coração do guerreiro. No hospital, testes detectaram a presença do Coronavírus no cadáver. Colocaram Covids-19 na causa mortis. Deodato entrara nas tristes estatísticas do Coronavírus no Brasil. Cremação imediata. Sem velório. Sem despedidas. A turma do bar do Fonseca, do grupo da melhor idade e os parentes foram ao Maracanã. As cinzas de Deodato foram jogadas ao redor do estádio fechado. Zulmira toda de preto, chorosa. Consolada por Alfredão. A casa branca de número 777 foi pintada de vermelho. A grade continua preta. Vermelho e preto, as cores do Flamengo, time de Alfredão, atual namorado de Zulmira. Como diz o Chico Pinheiro, às sextas-feiras, no Bom Dia, Brasil.....-"é vida que segue!!!!" FIM