NO LIMIAR DO MEDO
NO LIMIAR DO MEDO
A noite não admite brincadeiras. A mata não admite zombarias. Não se aventure se não souber os segredos dos que vivem do lado de lá... Era assim que o velho Tião Sabino falava com as crianças. Suas histórias enchiam aqueles olhinhos curiosos de medo e admiração.
- Os do lado de lá se ocultam na noite e nos dias da mata! – Arregalava os olhos ao mencionar isso – Alguns moram no fundo do rio! As crianças, logicamente, queriam saber quem eram os do lado de lá?
- São gentes e animais que já estiveram do lado de cá, entre os vivos.
Daí explicava que, entre os que partiram, havia os zombeteiros, os vingativos, os inconformados, os irados e os que conseguiam se comunicar. Alguns usavam de “cavalos” para voltar... Muitos de nós não entendíamos muito bem essa parte.
- Não são cavalos de verdade! – Era difícil explicar para crianças.
Contava então muitas histórias de espíritos da floresta, entre elas, a do Juca Balaustra. Este, um sujeito alto, cumpridão mesmo, metido à valente e conquistador. Acampou ele, um dia, com alguns amigos às margens do Rio Sono. À frente a Floresta Negra e além dela, diziam, uma aldeia de índios desconhecidos, ainda, da civilização.
Chegaram na boca da noite e, ao amanhecer, pretendiam pescar ali perto. De noite uns goles de esquenta tripas, ao som de um violão velho e vozes desafinadas fizeram a farra normal. Juca já ia se deitar quando vislumbrou uma figura saindo das águas, no meio do rio.
- Que diabo é isso? – Pensou ele.
Uma linda figura. Uma índia morena, seminua e insinuante passa à sua frente rebolando e acenando com as mãos: Venha! Venha! – Em seguida, ela adentra à floresta e continua acenando.
- Mas, esperem, é noite! As matas! A noite não admite brincadeiras!
Juca Balaustra não quer saber de mais nada. Aquela coisa linda quer alguma coisa com ele. Ele sabe do que ela precisa. Medo!? Não! Isso é coisa para bobocas assustados. Ele nunca teve medo de nada. Mas, por precaução, levava um punhal na cintura.
Assim que entrou na mata começou uma brincadeira de esconde-esconde. A garota sumia ali e aparecia acolá, sempre perto do apaixonado Juca. Sorridente e terrivelmente sedutora. Balaustra já morrendo de paixão ia entrando no coração da mata. De repente aconteceu...
A criatura deixou-se agarrar pela cintura. O infeliz já cego de amor esticava os beiços para beijá-la quando o ser se transformou diante de si. Era a própria figura do Cão chupando manga...discípula de Satanás...filha da Besta-Fera... a feição do Bode diante de si. Para encurtar a história: um espírito zombeteiro. O grito de desespero de Balaustra abalou até os ouvidos das criaturas do fundo do rio.
NAAAAAÃO! NÃAAAAAAAAAAO!!!! SOCORRO!!!!!
Os companheiros o viram passar em desabalada carreira, com os calcanhares a quase bater na nuca. Juravam que havia criado asas nos pés. Balaustra sentiu no cangote a baforada do Nojento e a partir dali foi levando cipós parasitas, unhas de gato, espinhos de tucum e lascas de madeira no peito. Perdeu o rumo da praia. Perdeu a noção e a direção de tudo.
- Ele enlouqueceu! Será que foi atacado por algum bicho!
Ninguém se atreveu a entrar na mata durante a noite. Balaustra perseguido pelas criaturas ouvia risos e urros às suas costas. O miado de uma onça passou perto ao cu das calças. Um peido teria distraído o animal. Um morcego gigante tirou tinta de suas orelhas. De repente o vazio... o corpo de Juca se precipitara no abismo. Teria se estatelado nas rochas se, no último instante, não tivesse se agarrado a um galho de árvore. Estava a salvo, por enquanto.
- Meu Deus! Quanto tempo poderei agüentar!?
Ao longo daquela terrível noite ele nada enxergava. Não ousava também abrir os olhos. A noite estava cobrando seu preço. Ouvia os macacos rirem desenfreadamente de sua desgraça. Flamingos, araras e bem-te-vis cantavam sua infelicidade. As forças iam se acabando e, fatalmente, ele despencaria para a morte certa.
A noite morreu primeiro. Os espíritos das matas retornaram para suas casas e seus afazeres.
Olha ele lá! Nós o achamos!
Juca Balaustra não acreditou que estava salvo. Seus amigos agora lhe perguntavam por que ele havia deixado o acampamento e estava ali todo rasgado e ferido, pendurado num galho de árvore a dez centímetros acima do nível da estrada. Ele agora ria nervosamente... ficara mudo. Só o medo é capaz de explicar.