SANTA JUSTINA
 
     As crianças seguiam correndo mata adentro. Parecia improvável, mas elas conseguiram fugir, na última hora, daquele furgão temático que vendia sorvete e doces às crianças do bairro dos Funcionários. As três, Marcelo, Débora e Bianca, caíram por sobre um de seus raptores para fora do veículo em uma curva mais brusca, uma vez que a porta detrás não tinha sido bem fechada.

          Os quatro caíram e saíram bolando naquela estrada vicinal. Marcelo, Débora e Bianca estavam com as mãos atadas entre si por um lençol branco todo manchado. Suas bocas estavam tampadas com “silvertape”. Só suas pernas que ainda estavam livres. Se não fosse pela curva, um dos raptores já estava pegando a corda para imobilizá-los completamente.

          Débora era a mais velha e a mais forte dos três. Foi ela quem, após a queda, ditou o rumo da fuga. Inicialmente, começaram correndo acompanhado a estrada. Contudo, o raptor, ainda vestido com o uniforme de vendedor de sorvete e mancando, já tinha se levantado e começava a alcança-los rapidamente. Foi então que ela teve a ideia de se esconder pela mata.

          Bianca estava com dificuldades de respirar, ainda mais com a boca tampada. Marcelo vez por outra ia por um caminho diferente, fazendo com que as crianças tivessem dificuldades de se distanciarem do raptor, que, mesmo com o tornozelo torcido, seguia no encalço, se aproximando cada vez mais.

          O furgão parou mais a frente e deu uma ré até o ponto próximo em que as crianças entraram pelo matagal. O motorista, alto, magro, já sem o uniforme, saiu esbravejando e, pegando um facão, saiu em ajuda ao comparsa.

          Em um determinado ponto, Débora parou para tirar a fita da boca de Bianca e falou para Marcelo seguir exatamente o caminho que elas faziam. Seus rostos estavam enrubescidos pelo calor e pelo cansaço, a fala saía ofegante. Mas não poderiam ficar ali parados, porque os raptores já conseguiam se aproximar das crianças. Era uma questão de poucos metros para alcançá-las.

          Elas viram que tinham mais um obstáculo para vencer: uma cerca de arame farpado. Débora sentiu um arrepio na espinha, não saberia dizer se as duas outras crianças, menores e mais novas, teriam a mesma agilidade dela em atravessar aquela barreira. Ainda mais com as mãos atadas pelo lençol.

          Por um instante ela pensou em sua avó e nas histórias que ela contava. Tentou focar no momento atual, avançou sobre a cerca e começou a pular com alguma dificuldade. Bianca e Marcelo estavam do outro lado ainda, tentando não se furar, chorando, se enrolando com o tecido branco do lençol que se enganchava cada vez mais nos espinhos metálicos da cerca.

          Os braços fortes dos raptores puxaram rapidamente Marcelo, que mal tinha posto o primeiro pé por sobre a cerca. O garoto esperneava, chorava, enquanto um os raptores o imobilizava. O outro, sem o uniforme, puxava Bianca para o lado dele da cerca, enquanto Débora a puxava para o outro lado.

          Jorge, mais, alto, sacou o facão, e fazendo menção de usá-lo contra Bianca, foi impedido pelo outro:

          – Para! Você está louco! Elas valem dez vezes mais se forem entregues vivas! Se estiverem muito feridas ou mortas receberemos uma mixaria! Larga isso Jorge!

          – E eu ligo? e deu um sorriso malicioso para Mateus, seu comparsa.

          Ele desembainhou o facão e o desceu junto ao corpo de Bianca, que berrava a plenos pulmões suplicando pelo amor de Deus que alguém a ajudasse. Ela acabou tendo seus gritos abafados pelo lençol. Ele fez o mesmo com Marcelo, imobilizado pelo comparsa.

          Débora, de olhos arregalados, vendo aquela cena, se lembrou de uma história que sua avó contou sobre a Santa Justina, que tinha protegido as crianças que fugiam da Vila de Boa Esperança de serem mortas pelos soldados imperiais que tinham invadido e dizimado aquela vila que servia de refúgio para escravos fugidos.

          Parecia que sua avó sussurrava ao pé do seu ouvido, à medida que ela repetia as palavras:


“Santa Justina cuidai de vós
Como aquelas crianças que não ficaram sós
Que a sombra seja nosso escudo
a nos proteger do inimigo imundo”


          Não se sabe se foi o derradeiro cair da noite, se foi uma piscada mais longa de seus olhos ou uma súbita queda de pressão. Por um instante todo o ambiente foi tomado uma treva, um breu intransponível em que não se podia ver nada. E, novamente, numa fração de segundos, tudo voltou ao normal.

          Como por um milagre, quando a luz voltou ao mundo, os raptores se viram no chão, se engalfinhando com o lençol que era usado para amarrar as crianças. Elas, por sua vez, se viram do outro lado da cerca. Entreolharam-se assustadas sem entender como aquilo acontecera, mas ficaram felizes por terem ganhado algum tempo.

          Débora se sentia estranha e via no horizonte uma mulher negra, com roupas brancas e um sorriso tranquilo. Olhava para as árvores e elas pareciam seres disformes, mas amigáveis, que indicavam a direção pela qual as crianças deveriam fugir.

          Teve medo, mas algo no seu íntimo dizia que poderia confiar. Afinal, os dois raptores já tinham se livrado do lençol, pulado a cerca de arame farpado e seguiam em sua direção.

          Segurando firmemente as mãos de Marcelo e de Bianca, Débora os puxava pelo caminho indicado pelas árvores tortuosas, evitando olhar para os vultos que delas saiam e iam em direção aos raptores.

          Aqueles vultos soltavam uma gargalhada macabra, estranha, baixa, parecia o som de uma hiena. Mas o formato daquelas sobras não era de um animal comum, era um misto de gente, galhos, rochas e bichos.

          De repente, enquanto atravessavam um trecho de mata alta, próximo de uma árvore seca, de tronco muito grosso, alto e preto, enegrecido como se tivesse sido queimado, as crianças caíram em um buraco, uma pequena caverna.

          As rochas se misturavam com a terra e as raízes daquela estranha árvore. Pareciam corpos disformes abraçados entre si. Havia algumas rochas brilhantes, que pareciam olhos, refletindo o estranho brilho azul de uma poça de água que havia ao fundo da gruta.

               Mais uma vez, Débora ouviu os comandos de alguém, possivelmente da moça negra vestida de branco, a quem ela atribuía ser a Santa Justina. A voz dizia:

          “Vocês estarão seguros aqui. Fiquem em silêncio, fechem os olhos, não toquem em nada brilhante e não bebam da água! Descansem. Quando o sol vier, eu os acordarei. ”

          Débora repassou os conselhos para Bianca e Marcelo. Bianca fechou os olhos e se encolheu, ficando em posição fetal perto dela. Marcelo questionou, pois estava muito inquieto com todas aquelas luzes. Estava morrendo de sede e de medo, mas fez conforme Débora disse.

          As crianças caíram num sono profundo. Lá fora, os raptores foram consumidos por vultos furiosos e emitiam gritos de dor e de desespero como os de quem é devorado vivo. Marcelo acordou com a algazarra. As meninas dormiam um sono profundo. Ele se sentia acuado, com todos aqueles olhos o observando. Contudo, a sede era muito maior que seu medo. Aquele lago tinha uma água transparente, límpida, quase reluzente. Quanto mais ele se aproximava, mas se sentia observado e mais atraído pelo pequeno lago.

       Marcelo afundou as mãos na poça e bebeu o tanto quanto pode até ficar plenamente saciado. Naquele momento, ele sentiu como se aqueles seres presos nas paredes lhe dessem boas vindas e ficou tão relaxado que acabou pegando no sono.

         Ao raiar do sol, que invadia a pequena caverna com luz, as três crianças acordaram quase que ao mesmo tempo. Quando elas olharam ao redor, todas aquelas formas horrendas e olhos perscrutadores sumiram – foram substituídos por rochas, raízes e terra sem graça. Elas instintivamente saíram de lá. Quando ganharam o campo aberto, viram ao longe um veículo de patrulha florestal. Correram em direção à estrada e, sentindo-se finalmente seguras, foram encaminhadas ao Posto da Guarda Florestal.

          Enquanto elas iam saindo, Marcelo ficou olhando pela janela do carro. Ele não se sentia muito bem, sentia algo estranho com ele. Deveria estar feliz, mas não estava. Sentia-se como quem estivesse abandonando sua casa. O sol fustigava seus olhos. Tudo o que ele mais desejava era retornar àquela caverna. No caminho, ele ainda conseguiu enxergar de relance os restos mortais de seus raptores escondidos pelo mato, o que lhe deixou com um estranho sorriso. Bianca apenas ficava abraçada à Débora, calada, chorando de felicidade, pois aquele pesadelo finalmente tinha chegado ao fim.

          Débora, ao ver aquela árvore negra e disforme sumir no horizonte lentamente pela poeira que o carro levantava, poderia jurar que via uma senhora negra, calma, ao lado de sua vó, se despedindo. Ela sentiu os olhos marejarem e guardou um silêncio de agradecimento.

 
Manassés Abreu
Enviado por Manassés Abreu em 31/03/2020
Reeditado em 15/05/2020
Código do texto: T6902342
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