O Homem Que Saiu Na Quarentena
As pessoas são movidas pelo medo. Não importa, uma dose de curiosidade, misturada com outras duas doses de adrenalina, fazem com que o ser-humano vá de predador à presa, em questão de segundos. E uma prova disso foi Natália e seu namorado, Antônio.
Os tempos eram outros. Agora um estranho vírus, vindo direto do oriente, dizimava a população aos poucos. Antes travestido como apenas uma gripe mais forte, depois como uma corrosão pulmonar fulminante, e agora dois anos depois, uma pandemia lasciva, que transformava homens em monstros em questão de minutos após o contágio. O casal, ambos com trinta e dois anos, já não sabia nada sobre sua família e amigos. Agora um tinha o outro, e nada mais. Isolados em seu apartamento, sem sair, em um prédio que até aquele dia, não se via ninguém, a não ser pela janela, alguns novos-monstros caminhando pelas imediações do condomínio, procurando comida.
O frio tinha chegado. Sem sons nas ruas, ou como comprar comida além das poucas que haviam estocado quando a FEBRE tomou conta do mundo, eles começavam a entrar em pânico sobre o rumo das coisas.
Natália tentava ser sensata. Por vezes invadiu apartamentos vizinhos, completamente protegida contra uma possível infecção, e assim conseguira alguns sacos de feijões e latas de sardinhas, além de muito macarrão instantâneo. Já Antônio, tinha medo. Sua ansiedade o dominava e o colocara em estado de clausura. Poucas eram as vezes que ele mantinha um diálogo com sua esposa. E lá no fundo, no pouco de razão que ainda lhe sobrara, ele sabia que o casamento não sobreviveria em meio ao caos e a interminável quarentena.
...
TOC TOC TOC TOC
Os olhos de Antônio imediatamente se abriram. Alguém havia batido na porta. O quarto estava escuro, e apenas um filete de luz entrava pela fresta destruída da persiana. Ele sentou-se na cama, e pensou em acordar sua esposa, mas preferiu deixa-la descansar. Ela não parara desde então e precisava daquele tempo para sua saúde.
Cambaleante, ele andou até a sala. Procurou por algo que pudesse lhe servir de arma, mas passou a mão no rosto tentando se acalmar e trazer-lhe de volta o juízo. E foi até o olho mágico na porta. Quando criança, sempre tivera medo de certa vez que olhasse por ali, visse algo sobrenatural, sombrio... Mas quando olhou naquele instante, havia um homem. Um homem negro, de mais ou menos um metro e noventa de altura e parecia impaciente.
Antônio caiu para traz, sentado na poltrona próxima à porta. Pela fresta embaixo da porta, podia ver a sombra dos pés impacientes do estranho que seria louco o suficiente para sair de casa durante a quarentena eterna, sem qualquer proteção.
- O que o senhor quer?
- Eu não quero enlouquecer sozinho. Abra a porta. Vamos conversar.
Antônio sentia o desespero e medo aumentarem dentro de seu corpo trêmulo e fraco. Travou uma batalha interna se acordava ou não sua esposa.
- Vá...Vá embora. Não vou abrir porta alguma! O senhor não sabe da FEBRE? O contágio?
- Isso é lenda. É uma gripezinha. O mundo entrou em histeria, a gripe se disseminou pelo fato de todo mundo simplesmente matar seus anticorpos e respirar a mesma porra do mesmo ar. Abra... vamos conversar...Antônio.
Ouvir seu nome vindo da boca de um estranho foi o suficiente para
Antônio ser tomado pelo ataque de ansiedade. Correu imediatamente para o quarto.
- Amor! Acorda! Amor, tem um homem lá fora! Ele quer entrar...Ele...Como aquele cara sabe meu nome? Ele sabe meu nome...Amor!
Natália permanecia imóvel. Dormia como se todos os dias de estressem estivessem sendo compensados ali. Ele preferiu não acordá-la no susto.
Revirou algumas gavetas, alguns armários, até que achou um celular velho. Trêmulo, ligou o aparelho rezando para que ele funcionasse. Mas assim como ligou, imediatamente ele desligou.
TOC TOC TOC TOC
O homem na porta continuava lá. Antônio voltou até lá. Procurou na estante da sala por algo que pudesse lhe servir de arma, mas tudo que via eram suas HQs organizadas por ordem alfabética. As HQs que ele passou lendo até ali, mas que já não tinham mais graça após dois anos.
- Abre a porta. A FEBRE passou. Olhe para mim, estou caminhando por sete dias aqui fora, com o mundo somente para mim, e estou bem! Já era para eu ter os sintomas. Já era para eu ser a porra de um zumbi... Ande... – o homem respirou fundo e olhou diretamente para o olho mágico, seus olhos agora, estavam vermelhos e luminosos – Abre a porta, Antônio!
Atrás da porta, sentiu seu coração gelar novamente. Ele não sabia o que fazer, não sabia para onde ir. Até que a overdose de pensamentos acelerados parou quando ele olhou para a maçaneta desgastada da porta. Ela parecia girar.
- Deixa a gente em paz! Deixa a gente em paz, seu filho da puta! – gritava enquanto segurava a maçaneta.
A mão de Antônio escorregava sobre o metal. Estava suada.
Imediatamente ele colocou a poltrona na frente, tentando assim, evitar a invasão. Correu para o quarto, se jogou sobre a cama e começou a balançar Natália para que ela acordasse. Em vão. Ela não se mexia. O rapaz começou a se desesperar. Ele gritava por ela, e ela simplesmente não expressava reação. Então, virou-a de lado. Sob sua esposa, uma poça de sangue já seco se misturava a outros fluídos. Um rasgo de pelo menos trinta centímetros de cumprimento chamava a atenção para o pescoço dela. Natália estava morta, e há muito tempo.
Antônio caiu da cama e o corpo decomposto de sua esposa quase caiu por cima do seu. Ele começou então a chorar compulsivamente. Encarando o teto. Às vezes tossia engasgado com suas lágrimas.
TOC TOC TOC...TOC...TOC..T...
- O que você fez, seu monstro! Porque matar? Por que simplesmente assassinar alguém que está fugindo da morte lá fora, seu demônio. – perguntava ao mesmo tempo que se contorcia no chão.
Uma sombra se formou sobre Antônio enquanto gritava de olhos fechados. Sentiu também a brisa fria vinda da rua, misturada ao cheiro de podre que dominava o mundo. Ao abrir, pode ver o estranho dentro de seu quarto, com o rosto totalmente esfacelado. Ele parecia sorrir.
- Antônio, eu não sou o monstro... Mas o tédio e o medo... Ora, nós sabemos que essa mistura, juntas durante um longo tempo, não tem o melhor dos finais! Acorde! Venha comigo, e acorde!
Antônio desmaiou. O quarto então ficou vazio. A porta da sala estava escancarada e já com teias de aranha, como se assim estivesse por anos. Um rastro de sangue criava um caminho involuntário da cozinha até a cama do casal, cessando sobre o cadáver de Natália, onde virava uma poça seca.
Ao lado do corpo dela, uma HQ ensanguentada mostrava a imagem de um homem alto, negro, com uma faca, matando sua vítima em meio à uma crise global.
Fim
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