A Hora da Morte
Há muitos segredos, mitos e mistérios que envolvem a história da Faculdade de Direito do Recife e o palácio onde ela se instala. Mas, de todas, parece que a mais sombria das histórias é a do relógio.
Aquela antiquada máquina de algarismos romanos esconde um segredo terrível a muitos anos.
A história que estou por contar consiste no evento mais recentemente ocorrido, em que se manifestou mais uma vez a maldição que há nesse relógio.
Acontece que em certo período de férias, quando todos os serviços da Faculdade se encerravam no mais tardar às 17hs, depois do que nenhuma alma – viva – deveria permanecer na Faculdade (e inclusive, graças ao desenvolvimento tecnológico, toda a segurança noturna era mecânica) um aluno resolveu esconder-se dentro da Faculdade para explorá-la à noite.
Sensores, só havia nas entradas da Faculdade. Qualquer movimentação nos interiores não seria notificada à Central de Vigilância no Campus. E, apesar de haver câmeras em todos os recintos, nenhuma delas gravava suas filmagens – elas apenas eram observadas por seguranças que tinham de ver, ao mesmo tempo, dezenas de câmeras. Em resumo, ele conseguiu permanecer na Faculdade sem ninguém para observá-lo, podendo fazer o que bem entendesse, e, desde que não deixasse vestígios de sua pessoa, e ninguém jamais suspeitaria de nada.
O aluno – cujo nome, no momento, ainda não se pode revelar – começou pelos Departamentos, indo para a Escolaridade, onde revirou todos os papéis, à procura de algo que pudesse alterar em seu favor – ou em desfavor de alguém.
Logo, passou à Biblioteca. Separou alguns livros para retirá-los dali sorrateiramente, passando-os pelos sensores (então desligados), para levá-los para casa no dia seguinte, como qualquer aluno que anda com livros sob o braço. Já se aproximava da meia noite, e ele utilizava uma pequena lanterna, relativamente pequena, para que, pelas janelas, sua luz não fosse vista.
Mas ele não se contentou com isso. Apoderando-se do quadro de chaves (nem isso fora protegido devidamente, tamanha a confiança no maquinário tecnológico) poderia abrir praticamente qualquer porta e cadeado. Foi assim que tentou ir para o Terraço de Alceu.
Enquanto subia as escuríssimas escadas que dão acesso a esse pouco frequentado local, escutou um ruído, parecendo-lhe que havia alguém ali próximo a ele. Movimentou rapidamente sua lanterna, em todas as direções, nada nem ninguém encontrando.
Seguiu, temeroso.
Voltou a ouvir algo, e pensou que poderia tratar-se de algum casal de alunos que também tiveram a ideia de passar a noite na Casa de Tobias – mas, pensou ele, com intenções bem diferentes das suas.
Continuou, pouco a pouco, a dirigir-se ao alto da escada, de onde parecia vir o som.
Quando estava mais próximo da entrada apertada que dá acesso ao espaço no qual estaria o casal, ele parou, e pensou em surpreendê-los em seus atos.
Contudo, ao entrar no local e movimentar rapidamente a lanterna, mais uma vez não viu nada nem ninguém. Virou-se a todas as direções, mas nada. Começou a pensar que ou estava cansado de mais, ou estava começando a enlouquecer.
E, no momento que virou-se para voltar às escadas e ir ao Terraço, sentiu, gelidamente, segurarem-lhe o braço com uma força tal que o assombrou.
Quem o deteve pôs-se à sua frente, impedindo-lhe a passagem, e sussurrou, asperamente – Você não deveria ter vindo aqui! E agarrou-lhe o pescoço, mordendo-o e sugando parte de seu sangue – não o suficiente para matá-lo, mas apenas o suficiente para amaldiçoá-lo.
Por um largo tempo o infeliz aventureiro agonizou naquele torturante processo.
Amanheceu, chegaram os servidores, alguns alunos e professores, cheios de pendências e coisas para resolver, e tudo seguiu normalmente, exceto para algum estagiário da Biblioteca, que teve uma quantidade significativamente maior de livros para rearrumar.
Debilitado e confuso, o mais novo elo da longa cadeia de Vampiros da Faculdade de Direito do Recife apenas conseguiu despertar bem depois do fechamento, já perto da meia noite.
Levantou-se assustado, numa velocidade e num movimento que até então não experimentara.
Horrorizado com suas sensações, correu para o Terraço, como se ainda estivesse na madrugada anterior, e, ao ver sua garra, mão e dedo, alvos como a lua, e ao sentir seus caninos crescidos, deu um grito de pavor, ante a visão de um acontecimento terrível e inimaginável.
Seu grito, diferentemente do que se poderia supor, não causou espanto e horror nas pessoas que estavam nos arredores da Faculdade. Em parte, as loucuras urbanas impediam que as pessoas se surpreendessem com um louco a mais gritando ali perto, e mesmo que alguém se espantasse com os gritos, jamais pensaria que eles teriam vindo do Palácio da Faculdade.
Entretanto, algo ainda pior ocorreu – seu esforço em exprimir horror o transformara, momentaneamente, num Morcego vampírico, e seus berros ficaram quase inaudíveis.
Ainda mais desesperado, sobrevoou louca e perdidamente o Palácio da Faculdade, até esbarrar no Sino da Torre do Relógio.
Caído e quase perdendo de vez a consciência, voltou a sua forma comum.
Sua brusca queda provocou o despertar de um velho fantasma, que dirigiu-se a ele, para seu maior desespero, e o alertou:
– Você não deveria ter vindo aqui!
– Já é a segunda vez que me dizem isso. Quem é você? O que você é?
– Sinto muito, mas não posso revelar meu nome, por força de um grave juramento. Tudo o que posso dizer é que sou o espírito de alguém que passou boa parte de sua vida aqui. Não posso dizer como vim parar aqui – não por causa da maldição, mas porque seria muito complicado. Quem mais disse que você não deveria ter vindo aqui?
– Não sei quem é. Mas ele me transformou em um monstro.
– Primeiro, você não é um monstro. É apenas um vampiro. Você só será um monstro se quiser. E, acho que sei quem fez isso com você. Ele não é daqui. Não sei muito sobre ele; na verdade nenhum de nós sabe muito bem sua história. Só sabemos que foi trazido ao Brasil pelos militares, décadas atrás, de um país estranho da Europa. Foi usado para torturar uns presos aqui perto. Muitos anos depois que tudo aquilo acabou, ele veio para cá, não sei ainda como nem porquê. Por sorte ele fica no outro lado da Faculdade, e não vem para este lado nunca, talvez por saber que eu estou aqui. Você deve ter incomodado muito ele.
– Mas e quanto a mim? Isso é definitivo, não tem como impedir ou desfazer essa maldição? É para sempre mesmo?
– Infelizmente tenho que lhe dizer que sim, é definitivo. Mas, como dizia um dos meus professores preferidos, nem tudo que é definitivo é imutável. É possível que você volte a ser um humano, há uma maneira. Não seria fácil, há um preço a pagar, há condições estritas, e pode haver consequências imprevisíveis, mas é possível.
– Oh, por favor, diga-me como, e eu vou fazer o que for preciso para voltar a ser como eu era!
– Eu não disse isso. Você nunca mais vai ser como era antes. Você pode ser um humano, mas nunca será como antes. Você já foi tocado pelo mal, e isso sim é irreversível. E não é um caminho seguro, é algo muito arriscado, e envolve rituais das trevas. Não se engane, você pode não conseguir o que deseja.
– Mas qualquer coisa será melhor que isso. Eu imploro que me ajude.
– Está bem então. Eu vou lhe explicar algumas coisas, e depois você decide. Não vou poder explicar tudo o que você poderia saber, mas vou ensinar apenas o que você precisa saber por agora. Indo direto ao ponto, você deve realizar um sacrifício. Deve derramar sangue humano. Mas não com suas próprias mãos. Esta Faculdade está impregnada de segredos e maldições. Há uma seção proibida na Biblioteca, uma sala escondida por magia negra. Lá você vai encontrar alguns livros únicos no mundo. Em algum deles deve haver algo falando sobre uma magia secreta que é realizada a partir deste relógio.
– Certo, mas onde fica essa sala? Como posso encontrá-la?
– Meu amigo, você é um ser das trevas agora. Ande pela Biblioteca, entre as Obras Raras, e você vai saber quando estiver perto da entrada.
– Certo, espero que isso seja verdade.
– Não duvide, confie em mim, e em você mesmo também. E quando você entrar na sala, procure um livro que fale sobre o relógio e traga pra cá.
– Está bem, vou fazer isso agora.
O vampiresco aluno, então, seguindo as instruções de seu fantasmagórico amigo, saiu da Torre do Relógio e desceu à Biblioteca, dirigindo-se à Seção de Obras Raras. Andou cuidadosamente por entre os livros ali conservados, andou por todos os corredores, mexeu em alguns livros, tocou nas paredes, e nada.
Então, decidiu voltar a seu conselheiro para pedir por mais orientação.
Em caminho à saída, notou um grande livro no fundo de uma prateleira, a prateleira mais baixa da estante, quase tocando o chão, que não tinha visto antes, embora houvesse estado ali várias vezes. Um livro grande e pesado, marrom escuro, mas com detalhes dourados que brilhavam. Notou que o título estava em alemão. Mesmo sem ter estudado muito sobre essa língua, pôde compreender que se tratava de um livro de magia e feitiçaria.
Ao tentar abrir esse raro volume, foi transportado, para seu espanto, a outra sala, sem portas, onde o luar pleno dominava o ambiente, por um vitral sinistro, que projetava-se diretamente sobre a mesa arcaica, e sobre a qual estava o mesmo livro em alemão, já aberto, rodeado por vários outros.
Entre esses vários livros que estavam à sua frente, havia um, em uma língua que para ele era desconhecida, onde se via, entre várias palavras, várias figuras de relógios de toda espécie.
Tomou esse livro e fechou o primeiro, sendo então novamente transportado à sala das Obras Raras da Biblioteca.
Retornando ao Relógio, folheou, com ajuda do fantasma, quase todo o livro, que não era muito extenso, à procura das informações necessárias.
Pelo que lhe explicou o ser do além, não era à toa que os ponteiros do relógio marcavam horas distintas em suas duas faces, interna e externa. O livro dizia que a pessoa interessada deveria fazer com que as engrenagens do relógio começassem a girar, movimentando os ponteiros de ambos lados, e pronunciar seu pedido, fazendo voto de realizar um sacrifício aceitável. Quando ambas faces do relógio marcassem a mesma hora, a Morte ceifaria uma vítima, e, com o preço pago, aquele que moveu o relógio teria seu pedido atendido.
– Cuidado com isso. Cuidado com o que vai pedir. Já vi muitos que pediram coisas de maneira equivocada e se arrependeram amargamente por isso. Você nunca sabe como vai ser o resultado. A morte de um inocente é algo muito cruel. E não se iluda – você vai sair de uma maldição para cair em outra.
– Não importa. Quero voltar a ser humano outra vez. Qualquer coisa é melhor do que ser um vampiro pela eternidade.
– Bem, eu avisei. Mas se é assim que você quer... Você é o responsável por suas escolhas, e pelas consequências delas.
O aluno não queria mais ser um vampiro (apesar de que mal experimentara o que era ser um vampiro), e realmente estava disposto a fazer de tudo o que o livro indicava. Com algum esforço e com a ajuda do livro, conseguiu mover o motor do Relógio, e estes começaram a se mover num ritmo freneticamente acelerado, provocando fortes ruídos, e rajadas de vento.
Ele então rasgou suas vestes, abriu os braços e clamou – Quero voltar a ser um homem! Aceito o que for preciso!
Poucos segundos depois os ponteiros de ambas as faces do Relógio pararam marcando a mesma hora, XII – exatamente a hora em que estavam, causando um ruído elétrico e emitindo um forte luz, como num raio, no local.
Nesse mesmo momento, o senhor Diretor da Faculdade, em visita ao Timor Leste, foi vítima de um ataque fulminante e inexplicável, pois, ainda que parecesse ter sofrido um ataque cardíaco, ao cair no chão, muito sangue escorria por todo seu corpo.
O aluno acordou.
Não sabia onde estava, nem quanto tempo estivera inconsciente – se é que passou algum tempo inconsciente. Em realidade, não sabia sequer o que sentia.
Demorou um pouco, mas recobrou plenamente os sentidos. Estava no Terraço de Alceu. Era meia noite e um minuto, mas ele não sabia disso. Estava ainda assustado. Estava faminto. Sua pele era a mesma de antes, e seus caninos estavam em seu tamanho normal.
Alegrou-se e riu-se, acreditando que tudo ocorrera bem. Não parecia haver efeitos colaterais, pensou ele. O velho fantasma deve ter exagerado um pouco.
Tomou o caminho de volta, e correu para a escadaria, esperando encontrar alguma comida no Capri.
Mas, enquanto andava pelos primeiros degraus da escada, aquela mesma gélida e terrível mão agarrou-lhe o pescoço, puxando-o para dentro do mesmo lugar onde se haviam encontrado pela primeira vez.
– Parece que você não entendeu. Você não devia ter vindo aqui!
E sugou o que lhe restava de sangue.
De longe, o misterioso bedel do Campanário lamentou por mais um tolo que aventurou-se a pedir impropriamente sem conhecer bem os próprios desejos, sendo arrastado para a morte.
Fechou o livro, que desapareceu, voltando à Seção de Obras Raras. E moveu os ponteiros, mudando mais uma vez os horários marcados, diferentes uma face da outra, recolhendo-se mais uma vez até ser acordado por outro jovem que ali apareça, em busca dos mistérios do relógio.