O SOM DO SILÊNCIO
Quando criança, ele acordou uma vez no meio da noite e pensara que havia ficado cego. A escuridão era total. Deve ter feito um escândalo formidável, pois se lembrava dos seus pais correndo como loucos, abraçando-o e acalmando-o, como se uma cobra o tivesse picado.
Mas desde então, o seu maior medo sempre foi ficar cego. Pensava que deve ser horrível perder a visão. Andar por um mundo onde a luz não penetra, onde se pode encontrar, sabe-se lá que tipo de vidas, ou não vidas, que se comportam como se vivas estivessem. Vira uma vez um filme que mostrava o fundo do oceano, onde nenhuma luz conseguia penetrar. Havia estranhas formas de vida lá. Eram monstruosas! Pensou que a escuridão total talvez fosse como o fundo do oceano. Os antigos sacerdotes egípcios diziam que era. No Livro dos Mortos eles descreviam a terra intermediária, a Tuat, terra que a alma dos mortos precisava atravessar para chegar até o céu. Era como um oceano profundo, habitado por formas monstruosas, agressivas, aterrorizantes.
Não tinha medo do que é simplesmente escuro. Sabia que o escuro que temos neste mundo em que vivemos é apenas a luz obstruída. Removida a obstrução, ela reaparece em toda a sua integridade. Nossos olhos foram feitos para captar a luz. É de luz que todas as coisas são feitas. Quando algum obstáculo impede nossos olhos de captarem a luz, a escuridão invade nossas mentes. E só consegue se movimentar aquele que tem uma luz dentro de si. A cegueira total ocorre quando a gente também apaga essa luz interior.
Tinha usado essa analogia para resolver alguns problemas práticos em sua vida. Sempre que as coisas ficavam confusas, ele figurava um quarto onde nenhuma luz penetrava. Aí ele se punha em meio à escuridão e se imaginava acendendo uma vela. E depois projetava em sua mente uma luz se acendendo e iluminando todo o ambiente, mostrando pouco a pouco, todos os objetos que havia dentro dele. O mundo se aclarava, tudo ficava mais nítido e o próprio problema que se colocava antes como um obstáculo que impedia sua mente de progredir na sua solução parecia desaparecer.
Essa metáfora visual sempre trazia resultados práticos. A escuridão era removida e o cérebro podia ver claramente os caminhos que poderia seguir. Até então, como adulto, nunca vivera uma experiência daquelas bravas, em que a gente se sente perdido numa escuridão total e nada se pode fazer para removê-la. Por isso ele treinava a mente para sempre encontrar uma luz e nunca se deixar envolver pela escuridão total e indevassável.
Mas desta vez ele estava de volta àquela experiência da infância. Acordara novamente no meio da noite, em meio à uma total escuridão. Um breu indevassável e silencioso o cercava. Procurara, às apalpadelas, o interruptor de luz e o acionara. Nada. A energia estava desligada. Lembrava-se que antes de deitar, uma tempestade havia se formado no céu. Relâmpagos cortavam o ar de todos os lados, como se fossem espadas flamejantes a rasgar um véu escuro, e os trovões ribombavam nos ares carregados de eletricidade estática, numa competição maluca de sons abafados e contínuos, que pareciam jamantas carregadas de dinamite, colidindo umas com as outras.
“Parece que São Pedro tem uma pedreira no céu”, sua filha de dez anos, agora já casada, lhe dissera uma vez, quando uma dessas tempestades desabara em cima da casa deles. Ele achara engraçada a comparação que ela fizera, mas era isso mesmo − uma pedreira sendo explodida a dinamite – era o que parecia ser aquele ser balé de estocadas luminosas, acompanhadas de estrondos assustadores.
De certo foi isso que cortara o fornecimento de energia. Era coisa que já acontecera outras vezes e não constituía nenhuma novidade. Pela manhã estaria tudo bem. Nada que merecesse mais que um suspiro de resignação e uma careta de constrangimento.
Levantou-me e abriu uma fresta da janela. Afastou um pedacinho da persiana e tentou enxergar alguma coisa. Nada. Estava mais escuro lá fora do que dentro do quarto. A chuva continuava caindo, intermitente.
Lembrou-se da preocupação com que sua mulher tinha ido se deitar naquela noite. “Será que essa chuva vai ser uma daquelas?” Perguntou ela. “Se for, talvez seja melhor a gente ir para a casa da sua mãe. Nunca se sabe. Esses barrancos que ficam atrás de casa me dão medo. Não sei. Nunca confiei neles."
”Que bobagem, mulher”, disse ele.“Tira esses pensamentos da cabeça. Moramos aqui há mais de vinte anos e nunca aconteceu nada. Nossa casa tem alicerces bem firmes. Não há perigo. Vamos dormir.”
Talvez tenha sido a preocupação dela que o levou a acordar no meio da noite, naquela total escuridão. Costumava dizer, brincando, que quem dorme com cachorro no quarto sonha com lobisomem e quem dorme com preocupação na mente sonha com mulher ou com encrenca, porque a presença de uma traz sempre a outra junto com ela.
Lembrou-se daquela vez que fora dormir depois de ter brigado com a mulher. Nunca acontecera isso antes. Brigar era comum entre os dois. Brigavam desde que se casaram, mas nunca tinham ido para a cama sem fazer as pazes. A cama era sempre o melhor lugar para os armistícios. O dia a dia podia ser um campo de batalha, mas quando chegava a noite e os dois se cobriam com o mesmo lençol, então todas as diferenças desapareciam. Mas naquela noite em que a bandeira de paz não foi levantada por nenhum dos dois, ele sonhou que um cachorro tinha comido o órgão sexual dele. Acordou encharcado de suor e uma estranha sensação entre as pernas. Correu para o banheiro e só se acalmou depois de ver que tudo estava em ordem, que fora só um sonho mau aquele. Mas teve que se lavar porque urinara dormindo.
Dizem que escuridão completa não existe, assim como a pura luz. A luz é a escuridão fecundada e trevas é a luz interdita. Luz interdita é a energia presa dentro de um núcleo e que não tem um veículo pelo qual possa se manifestar. Algo assim como a potência energética de um átomo de urânio, ou uma alma sem corpo. Ambas “existem” mas não"vivem" por que não podem se manifestar no mundo das realidades sensíveis.
Como era kardecista logo lhe veio à cabeça o aprendizado veiculado pela sua crença. Luz e trevas são faces da mesma moeda. Alma é uma centelha de energia divina presa dentro de um invólucro carnal. Ela projeta luz sobre nossos cérebros e formata um conjunto chamado consciência individual. Esse conjunto é o que nós chamamos de espírito. Por isso o conceito de espiritualidade, na linha kardecista que ele seguia, era uma mente treinada para a prática do bem, do estudo, da tolerância e da união universal. Esse era um bem que tinha mais a ver com o equilíbrio geral do universo do que com a própria felicidade individual de cada um. Assim, quanto mais essa energia interdita, ou seja, nossa própria alma ̶ que é pura luz ̶ se manifestar dentro de nós, mais glorioso, mais forte, mais intenso será o nosso espírito. Essa era a fórmula que fazia a diferença entre as pessoas.
Pensou que se isso fosse verdade, talvez ele tivesse mesmo ficado cego, tanto externa quanto internamente. Pois não era capaz de enxergar absolutamente nada em meio a essa treva espessa que o envolvia. Era estranho. Não havia sons nem sinestesias naquela escuridão. Era um mundo ausente de qualquer coisa que se relacionasse com a realidade existente. Parecia estar dentro daquela canção da dupla Simon e Garfunkel, o “Som do Silêncio” que dizia: “Hello darkness, my old friend, I came to talk with you again, because a vision softly creeping, left its seeds while I was sleeping...”*
Tudo era feito de silêncio em volta dele. Mas sua consciência não havia sido anulada. Tinha memórias e sabedoria adquirida que ainda processavam seus pensamentos com lógica e concisão. Sabia, por exemplo, que sua mulher estava roncando ao seu lado, como de hábito. Lembrava-se que às vezes ela roncava como se fosse uma chaleira no fogo. Fsssssssss, fssssssss, fsssssss. Outras vezes parecia uma lixadeira desbastando uma tábua cheia de nós. Rrrrrrrrrr. Rsssssss. E tinha também aquele som de locomotiva a vapor diminuindo a marcha quando entra numa estação. Rrrrrrrr,ffffff, Rrrrrr,ffffff.
Estranho. Sabia que ela estava roncando, mas não escutava o som do ronco. Também sabia que estava chovendo e não escutava os pingos tamborilando na vidraça. Sabia que estava sentado na cama, mas não conseguia sentir a sinestesia da própria pele em contato com a textura das roupas. Parecia que todos os seus sentidos tinham sido amortecidos por aquela escuridão. “Se cá fora nada vês que te agrade, vai para dentro de ti”, dissera um desses poetas espiritualistas que dissipam nas nuvens da metafísica as suas mágoas cotidianas. “Quem sabe nesse labirinto que tu és, consigas capturar uma réstia de luz. Quando conseguires esse sucesso, dá o teu grito de liberdade. Tu estarás irremediavelmente morto para a vida que conheces e gloriosamente vivo para a vida que habita dentro de ti.”
Como kardecista ele já realizara muitas aventuras pelos porões da própria inconsciência. Efetuara contatos com muitas consciências desencarnadas e sabia o quanto pode ser dolorosa e desconcertante a experiência desintegradora da morte. Já experimentara a sinestesia da morte quando, no centro espírita que frequentava, tornara-se um “médium”, emprestando sua consciência para possibilitar a manifestação de consciências desencarnadas, que são os espíritos que ainda não se libertaram de suas memórias terrestres e ainda mantém uma ilusão de estarem vivos.
Ele sabia que viajar por essas esferas astrais, onde as consciências desencarnadas sobrevivem, sem um competente guia que possa trazer-nos de volta é uma aventura perigosa e assustadora. No centro espírita essas experiências eram realizadas com a assistência de um mestre que conhecia muito o processo e jamais deixava que ele se descontrolasse. Ele sempre voltava a si mesmo com a sensibilidade de que havia adquirido mais sabedoria, mais entendimento, mais sensação de unicidade com todas as coisas do universo e sinestesia de amplitude em sua própria consciência.
Mas nessa noite, ele sentiu que a coisa estava diferente. Não havia alguém para guiar a sua consciência pelos caminhos da insensibilidade corporal e orientá-lo nos contatos com as consciências desencarnadas. Ele sentia que a porta de volta ao mundo da sensibilidade orgânica estava bloqueada como se a chuva torrencial que caia lá fora, não tivesse apenas derrubado barreiras e bloqueado todas as estradas. Era uma força que o impedia de voltar ao próprio corpo, como se ele tivesse saído dele e agora estivesse impedido de regressar.
Levantou-se da cama e deu alguns passos dentro do quarto. Abriu a persiana e tentou enxergar alguma coisa lá fora. Do lado de fora havia só uma indevassável escuridão. Seu quarto era um mundo de onde fora banida toda e qualquer informação que pudesse dizer aos seus sentidos que ainda existia um mundo real. Cada passo que ele desse, se ele pudesse dar qualquer passo em qualquer sentido, o levaria a lugar nenhum, pois no espaço à sua frente ele só podia pressentir a existência de um vácuo imenso, um buraco sem fundo, onde toda informação de vida deixara de existir. Sabia disso pelo nada que havia no quarto e no mundo que sabia existir fora da sua janela. Era um mundo completamente vazio de realidade manifestada.
Então ele decidiu caminhar para dentro da sua própria consciência. Ali havia uma possibilidade de sair em algum lugar. Pensou que dentro desse labirinto em que se metia, talvez fosse possível encontrar alguma luz.
Viajou como um astronauta que se vê, de repente, atirado em um buraco negro. Sentiu a forte gravitação, a infinita radioatividade que ele irradiava. Viu, num relance, tudo que vivera desde que fora concebido. Desde o momento em que seu corpo não podia ser distinguido de uma minúscula gotícula de ácido nucléico. Depois, a acomodação dentro de uma bolsa em forma de pêra, onde recebia, através do corpo de sua mãe, todos os nutrientes necessários. Em seguida o lento crescimento, a formação do embrião, o desenvolvimento do feto até adquirir o formato de um ser humano. Depois o difícil caminho percorrido num canal estreito, silencioso e escuro, até saltar para um vazio iluminado e sonoro, mas desprovido de calor e proteção. Por fim a difícil adaptação ao mundo dos sentidos e dos valores. Aprender a comer, a andar, a falar, a fazer as necessidades sozinho. A sentir dor e prazer. A distinguir o que devia amar e o que devia odiar. Que tinha deveres e direitos. Que umas coisas podia fazer, outras não. Que umas vezes podia confiar, outras desconfiar. Que tinha que agradar algumas pessoas e desagradar a outras.
Tudo isso passou pela mente dele com a velocidade da luz. Estava sentado na cama, mas parecia que estava levitando. Contou mais de setenta anos revividos em átimos de nano segundos, e no entanto, sentiu-se tão cansado como se tivesse, realmente, vivido tudo outra vez. Sofreu e gozou de novo cada fracasso e cada vitória. Cada dor e cada momento de prazer. Toda paz e toda guerra.
E foi então que viu a luz. Começou com um pequeno pontinho azul, como se fosse uma pequena lâmpada de natal acesa no fim de um túnel. Mas ele sabia que era a luz de uma explosão nuclear. Era estranho. Ela estava fora dele, mas ele sabia que provinha dele, e era proveniente da sua consciência se descolando do seu corpo.
Ele sabia, também, que à medida que se aproximasse dela, ou que ela se aproximasse dele, ele seria envolvido por ela, que ela o descarnaria, o dissolveria, como a água faz com o açúcar, como o vento faz com a poeira, ou com a fumaça. Mas ele tinha que ir ao encontro dela, por que ela o atraia como um magneto atrai limalha de ferro. Então ele foi, já sem dor ou prazer, sem alegria ou tristeza, por que todos os valores, todas as crenças, todas as sinestesias que antes se hospedavam neste complexo que ele chamava de Eu, haviam desaparecido como se tivessem sido lavadas com um produto que não deixa marcas nem resíduos. E nesse instante ele sentiu-se feliz por ter escolhido o caminho do bem e do desenvolvimento espiritual.
Leve como o mais fluído dos gases ele entrou na zona de luz. Mas, antes de ser totalmente absorvido por ela viu, de relance, seu próprio corpo deitado sobre os escombros daquilo que fora a sua cama. Ao lado dela, o corpo da sua mulher sangrando, mas ainda respirando e tentando se livrar da lama e dos entulhos sobre os quais ambos estavam sepultados.
E só então ele percebeu que estava morto. E que a sua alma, luz que estava interdita em sua consciência, havia, finalmente se libertado.
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* Alô, escuridão, minha velha amiga/ vim conversar com você de novo/ porque uma visão sutil e assustadora/ deixou sementes enquanto eu dormia..” Nota do autor
Quando criança, ele acordou uma vez no meio da noite e pensara que havia ficado cego. A escuridão era total. Deve ter feito um escândalo formidável, pois se lembrava dos seus pais correndo como loucos, abraçando-o e acalmando-o, como se uma cobra o tivesse picado.
Mas desde então, o seu maior medo sempre foi ficar cego. Pensava que deve ser horrível perder a visão. Andar por um mundo onde a luz não penetra, onde se pode encontrar, sabe-se lá que tipo de vidas, ou não vidas, que se comportam como se vivas estivessem. Vira uma vez um filme que mostrava o fundo do oceano, onde nenhuma luz conseguia penetrar. Havia estranhas formas de vida lá. Eram monstruosas! Pensou que a escuridão total talvez fosse como o fundo do oceano. Os antigos sacerdotes egípcios diziam que era. No Livro dos Mortos eles descreviam a terra intermediária, a Tuat, terra que a alma dos mortos precisava atravessar para chegar até o céu. Era como um oceano profundo, habitado por formas monstruosas, agressivas, aterrorizantes.
Não tinha medo do que é simplesmente escuro. Sabia que o escuro que temos neste mundo em que vivemos é apenas a luz obstruída. Removida a obstrução, ela reaparece em toda a sua integridade. Nossos olhos foram feitos para captar a luz. É de luz que todas as coisas são feitas. Quando algum obstáculo impede nossos olhos de captarem a luz, a escuridão invade nossas mentes. E só consegue se movimentar aquele que tem uma luz dentro de si. A cegueira total ocorre quando a gente também apaga essa luz interior.
Tinha usado essa analogia para resolver alguns problemas práticos em sua vida. Sempre que as coisas ficavam confusas, ele figurava um quarto onde nenhuma luz penetrava. Aí ele se punha em meio à escuridão e se imaginava acendendo uma vela. E depois projetava em sua mente uma luz se acendendo e iluminando todo o ambiente, mostrando pouco a pouco, todos os objetos que havia dentro dele. O mundo se aclarava, tudo ficava mais nítido e o próprio problema que se colocava antes como um obstáculo que impedia sua mente de progredir na sua solução parecia desaparecer.
Essa metáfora visual sempre trazia resultados práticos. A escuridão era removida e o cérebro podia ver claramente os caminhos que poderia seguir. Até então, como adulto, nunca vivera uma experiência daquelas bravas, em que a gente se sente perdido numa escuridão total e nada se pode fazer para removê-la. Por isso ele treinava a mente para sempre encontrar uma luz e nunca se deixar envolver pela escuridão total e indevassável.
Mas desta vez ele estava de volta àquela experiência da infância. Acordara novamente no meio da noite, em meio à uma total escuridão. Um breu indevassável e silencioso o cercava. Procurara, às apalpadelas, o interruptor de luz e o acionara. Nada. A energia estava desligada. Lembrava-se que antes de deitar, uma tempestade havia se formado no céu. Relâmpagos cortavam o ar de todos os lados, como se fossem espadas flamejantes a rasgar um véu escuro, e os trovões ribombavam nos ares carregados de eletricidade estática, numa competição maluca de sons abafados e contínuos, que pareciam jamantas carregadas de dinamite, colidindo umas com as outras.
“Parece que São Pedro tem uma pedreira no céu”, sua filha de dez anos, agora já casada, lhe dissera uma vez, quando uma dessas tempestades desabara em cima da casa deles. Ele achara engraçada a comparação que ela fizera, mas era isso mesmo − uma pedreira sendo explodida a dinamite – era o que parecia ser aquele ser balé de estocadas luminosas, acompanhadas de estrondos assustadores.
De certo foi isso que cortara o fornecimento de energia. Era coisa que já acontecera outras vezes e não constituía nenhuma novidade. Pela manhã estaria tudo bem. Nada que merecesse mais que um suspiro de resignação e uma careta de constrangimento.
Levantou-me e abriu uma fresta da janela. Afastou um pedacinho da persiana e tentou enxergar alguma coisa. Nada. Estava mais escuro lá fora do que dentro do quarto. A chuva continuava caindo, intermitente.
Lembrou-se da preocupação com que sua mulher tinha ido se deitar naquela noite. “Será que essa chuva vai ser uma daquelas?” Perguntou ela. “Se for, talvez seja melhor a gente ir para a casa da sua mãe. Nunca se sabe. Esses barrancos que ficam atrás de casa me dão medo. Não sei. Nunca confiei neles."
”Que bobagem, mulher”, disse ele.“Tira esses pensamentos da cabeça. Moramos aqui há mais de vinte anos e nunca aconteceu nada. Nossa casa tem alicerces bem firmes. Não há perigo. Vamos dormir.”
Talvez tenha sido a preocupação dela que o levou a acordar no meio da noite, naquela total escuridão. Costumava dizer, brincando, que quem dorme com cachorro no quarto sonha com lobisomem e quem dorme com preocupação na mente sonha com mulher ou com encrenca, porque a presença de uma traz sempre a outra junto com ela.
Lembrou-se daquela vez que fora dormir depois de ter brigado com a mulher. Nunca acontecera isso antes. Brigar era comum entre os dois. Brigavam desde que se casaram, mas nunca tinham ido para a cama sem fazer as pazes. A cama era sempre o melhor lugar para os armistícios. O dia a dia podia ser um campo de batalha, mas quando chegava a noite e os dois se cobriam com o mesmo lençol, então todas as diferenças desapareciam. Mas naquela noite em que a bandeira de paz não foi levantada por nenhum dos dois, ele sonhou que um cachorro tinha comido o órgão sexual dele. Acordou encharcado de suor e uma estranha sensação entre as pernas. Correu para o banheiro e só se acalmou depois de ver que tudo estava em ordem, que fora só um sonho mau aquele. Mas teve que se lavar porque urinara dormindo.
Dizem que escuridão completa não existe, assim como a pura luz. A luz é a escuridão fecundada e trevas é a luz interdita. Luz interdita é a energia presa dentro de um núcleo e que não tem um veículo pelo qual possa se manifestar. Algo assim como a potência energética de um átomo de urânio, ou uma alma sem corpo. Ambas “existem” mas não"vivem" por que não podem se manifestar no mundo das realidades sensíveis.
Como era kardecista logo lhe veio à cabeça o aprendizado veiculado pela sua crença. Luz e trevas são faces da mesma moeda. Alma é uma centelha de energia divina presa dentro de um invólucro carnal. Ela projeta luz sobre nossos cérebros e formata um conjunto chamado consciência individual. Esse conjunto é o que nós chamamos de espírito. Por isso o conceito de espiritualidade, na linha kardecista que ele seguia, era uma mente treinada para a prática do bem, do estudo, da tolerância e da união universal. Esse era um bem que tinha mais a ver com o equilíbrio geral do universo do que com a própria felicidade individual de cada um. Assim, quanto mais essa energia interdita, ou seja, nossa própria alma ̶ que é pura luz ̶ se manifestar dentro de nós, mais glorioso, mais forte, mais intenso será o nosso espírito. Essa era a fórmula que fazia a diferença entre as pessoas.
Pensou que se isso fosse verdade, talvez ele tivesse mesmo ficado cego, tanto externa quanto internamente. Pois não era capaz de enxergar absolutamente nada em meio a essa treva espessa que o envolvia. Era estranho. Não havia sons nem sinestesias naquela escuridão. Era um mundo ausente de qualquer coisa que se relacionasse com a realidade existente. Parecia estar dentro daquela canção da dupla Simon e Garfunkel, o “Som do Silêncio” que dizia: “Hello darkness, my old friend, I came to talk with you again, because a vision softly creeping, left its seeds while I was sleeping...”*
Tudo era feito de silêncio em volta dele. Mas sua consciência não havia sido anulada. Tinha memórias e sabedoria adquirida que ainda processavam seus pensamentos com lógica e concisão. Sabia, por exemplo, que sua mulher estava roncando ao seu lado, como de hábito. Lembrava-se que às vezes ela roncava como se fosse uma chaleira no fogo. Fsssssssss, fssssssss, fsssssss. Outras vezes parecia uma lixadeira desbastando uma tábua cheia de nós. Rrrrrrrrrr. Rsssssss. E tinha também aquele som de locomotiva a vapor diminuindo a marcha quando entra numa estação. Rrrrrrrr,ffffff, Rrrrrr,ffffff.
Estranho. Sabia que ela estava roncando, mas não escutava o som do ronco. Também sabia que estava chovendo e não escutava os pingos tamborilando na vidraça. Sabia que estava sentado na cama, mas não conseguia sentir a sinestesia da própria pele em contato com a textura das roupas. Parecia que todos os seus sentidos tinham sido amortecidos por aquela escuridão. “Se cá fora nada vês que te agrade, vai para dentro de ti”, dissera um desses poetas espiritualistas que dissipam nas nuvens da metafísica as suas mágoas cotidianas. “Quem sabe nesse labirinto que tu és, consigas capturar uma réstia de luz. Quando conseguires esse sucesso, dá o teu grito de liberdade. Tu estarás irremediavelmente morto para a vida que conheces e gloriosamente vivo para a vida que habita dentro de ti.”
Como kardecista ele já realizara muitas aventuras pelos porões da própria inconsciência. Efetuara contatos com muitas consciências desencarnadas e sabia o quanto pode ser dolorosa e desconcertante a experiência desintegradora da morte. Já experimentara a sinestesia da morte quando, no centro espírita que frequentava, tornara-se um “médium”, emprestando sua consciência para possibilitar a manifestação de consciências desencarnadas, que são os espíritos que ainda não se libertaram de suas memórias terrestres e ainda mantém uma ilusão de estarem vivos.
Ele sabia que viajar por essas esferas astrais, onde as consciências desencarnadas sobrevivem, sem um competente guia que possa trazer-nos de volta é uma aventura perigosa e assustadora. No centro espírita essas experiências eram realizadas com a assistência de um mestre que conhecia muito o processo e jamais deixava que ele se descontrolasse. Ele sempre voltava a si mesmo com a sensibilidade de que havia adquirido mais sabedoria, mais entendimento, mais sensação de unicidade com todas as coisas do universo e sinestesia de amplitude em sua própria consciência.
Mas nessa noite, ele sentiu que a coisa estava diferente. Não havia alguém para guiar a sua consciência pelos caminhos da insensibilidade corporal e orientá-lo nos contatos com as consciências desencarnadas. Ele sentia que a porta de volta ao mundo da sensibilidade orgânica estava bloqueada como se a chuva torrencial que caia lá fora, não tivesse apenas derrubado barreiras e bloqueado todas as estradas. Era uma força que o impedia de voltar ao próprio corpo, como se ele tivesse saído dele e agora estivesse impedido de regressar.
Levantou-se da cama e deu alguns passos dentro do quarto. Abriu a persiana e tentou enxergar alguma coisa lá fora. Do lado de fora havia só uma indevassável escuridão. Seu quarto era um mundo de onde fora banida toda e qualquer informação que pudesse dizer aos seus sentidos que ainda existia um mundo real. Cada passo que ele desse, se ele pudesse dar qualquer passo em qualquer sentido, o levaria a lugar nenhum, pois no espaço à sua frente ele só podia pressentir a existência de um vácuo imenso, um buraco sem fundo, onde toda informação de vida deixara de existir. Sabia disso pelo nada que havia no quarto e no mundo que sabia existir fora da sua janela. Era um mundo completamente vazio de realidade manifestada.
Então ele decidiu caminhar para dentro da sua própria consciência. Ali havia uma possibilidade de sair em algum lugar. Pensou que dentro desse labirinto em que se metia, talvez fosse possível encontrar alguma luz.
Viajou como um astronauta que se vê, de repente, atirado em um buraco negro. Sentiu a forte gravitação, a infinita radioatividade que ele irradiava. Viu, num relance, tudo que vivera desde que fora concebido. Desde o momento em que seu corpo não podia ser distinguido de uma minúscula gotícula de ácido nucléico. Depois, a acomodação dentro de uma bolsa em forma de pêra, onde recebia, através do corpo de sua mãe, todos os nutrientes necessários. Em seguida o lento crescimento, a formação do embrião, o desenvolvimento do feto até adquirir o formato de um ser humano. Depois o difícil caminho percorrido num canal estreito, silencioso e escuro, até saltar para um vazio iluminado e sonoro, mas desprovido de calor e proteção. Por fim a difícil adaptação ao mundo dos sentidos e dos valores. Aprender a comer, a andar, a falar, a fazer as necessidades sozinho. A sentir dor e prazer. A distinguir o que devia amar e o que devia odiar. Que tinha deveres e direitos. Que umas coisas podia fazer, outras não. Que umas vezes podia confiar, outras desconfiar. Que tinha que agradar algumas pessoas e desagradar a outras.
Tudo isso passou pela mente dele com a velocidade da luz. Estava sentado na cama, mas parecia que estava levitando. Contou mais de setenta anos revividos em átimos de nano segundos, e no entanto, sentiu-se tão cansado como se tivesse, realmente, vivido tudo outra vez. Sofreu e gozou de novo cada fracasso e cada vitória. Cada dor e cada momento de prazer. Toda paz e toda guerra.
E foi então que viu a luz. Começou com um pequeno pontinho azul, como se fosse uma pequena lâmpada de natal acesa no fim de um túnel. Mas ele sabia que era a luz de uma explosão nuclear. Era estranho. Ela estava fora dele, mas ele sabia que provinha dele, e era proveniente da sua consciência se descolando do seu corpo.
Ele sabia, também, que à medida que se aproximasse dela, ou que ela se aproximasse dele, ele seria envolvido por ela, que ela o descarnaria, o dissolveria, como a água faz com o açúcar, como o vento faz com a poeira, ou com a fumaça. Mas ele tinha que ir ao encontro dela, por que ela o atraia como um magneto atrai limalha de ferro. Então ele foi, já sem dor ou prazer, sem alegria ou tristeza, por que todos os valores, todas as crenças, todas as sinestesias que antes se hospedavam neste complexo que ele chamava de Eu, haviam desaparecido como se tivessem sido lavadas com um produto que não deixa marcas nem resíduos. E nesse instante ele sentiu-se feliz por ter escolhido o caminho do bem e do desenvolvimento espiritual.
Leve como o mais fluído dos gases ele entrou na zona de luz. Mas, antes de ser totalmente absorvido por ela viu, de relance, seu próprio corpo deitado sobre os escombros daquilo que fora a sua cama. Ao lado dela, o corpo da sua mulher sangrando, mas ainda respirando e tentando se livrar da lama e dos entulhos sobre os quais ambos estavam sepultados.
E só então ele percebeu que estava morto. E que a sua alma, luz que estava interdita em sua consciência, havia, finalmente se libertado.
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* Alô, escuridão, minha velha amiga/ vim conversar com você de novo/ porque uma visão sutil e assustadora/ deixou sementes enquanto eu dormia..” Nota do autor