Treva

Começou do outro lado do mundo. Uma escuridão palpável, como uma névoa negra, surgida de repente, que engolia toda a luz dentro dela. De princípio ela parecia não causar mal algum aos seres humanos além do terror e da confusão de se estar na mais completa escuridão que não podia ser afastada por lanterna, lâmpada ou vela alguma. As pessoas que eram engolidas pela escuridão começaram a perceber que era difícil respirar nela, mas, a longo prazo, não havia qualquer prejuízo ao organismo daqueles que entravam em contato com a treva.

Com o tempo, a escuridão foi alcançando espaços geográficos cada vez maiores no país onde os primeiros relatos começaram, tomando cidades inteiras por alguns dias, e depois indo embora. Como ela avançava lentamente, as pessoas estavam minimamente preparadas, de modo que não aconteceram tantos acidentes no início. Assim, à medida do possível, as pessoas foram continuando sua vida normal.

Então gente começou a desaparecer. De repente, sem deixar nenhum vestígio. Simplesmente a escuridão invadia suas casas ou ruas e elas tentavam continuar sua vida e esperar que a as trevas fossem embora, mas quando ela desaparecia, as pessoas descobriam que alguém sumiu.

Na primeira semana foram quarenta desaparecimentos confirmados. Isso levou as pessoas a começarem a temer verdadeiramente a escuridão, e se afastar quando ela se aproximava. Mas ela começou a avançar muito rápido, de modo que muitos simplesmente não conseguiam sair da sua área de ação rápido o suficiente. Essas eram as principais vítimas, os muito pobres, idosos ou doentes, que tentavam prosseguir sua vida no escuro e acabavam simplesmente sumindo.

Uma crise econômica começou, especialmente causada pelo pânico. Fábricas fecharam, cidades inteiras abandonadas, viagens para as regiões próximas da escuridão foram reduzidas. Especialistas de todo mundo começaram a trabalhar intensamente para tentar entender o que estava acontecendo, conforme milhares de pessoas eram afetadas. Mas essa névoa negra simplesmente não se parecia com nada conhecido pelo homem. Assim, afastar-se da escuridão se tornou a principal estratégia para combatê-la, de modo que os países do mundo começaram a resgatar do país de origem aqueles seus cidadãos que estavam lá.

O problema é que já na segunda semana a escuridão começou a aparecer em lugares distantes no seu epicentro, surgindo em outros países e continentes. Conforme as cidades em que as trevas apareciam se multiplicavam, o número de pessoas desaparecidas aumentava, em uma média de duas ou três pessoas a cada cem engolidas pela escuridão. Pode parecer pouco, mas considerando o fato de que as trevas surgiam do nada, se espalhavam muito rápido por uma cidade e depois iam embora levando dezenas ou centenas de pessoas que não tinham qualquer chance de se defender por não conseguir fugir a tempo, a impotência em relação a essa ameaça a tornava absurdamente assustadora.

Os países em que a escuridão chegava começaram a tomar medidas para diminuir a circulação de pessoas, para que elas não se aproximassem sem querer de algum lugar onde a treva estivesse. Um cruzeiro, por exemplo, entrou em uma grande área no mar próximo ao Japão tomada pela escuridão e nunca mais foi visto.

Na metade do segundo mês, só no país onde a treva começou a surgir, dezenas de milhares de pessoas desapareceram, chegando a um auge de mais de duas mil pessoas sumindo por dia só naquela região. A partir desse momento, entretanto, a escuridão pareceu ocupada demais com outros países e começou a recuar por ali.

Bem, pelo menos isso tudo é o que dizem. Mais rápido do que a escuridão, o pânico e as fake news se espalharam. No Brasil, pela metade do segundo mês, já havia dezenas de relatos de lugares onde a escuridão teria aparecido. O excesso de notícias falsas sobre o assunto me fez ter certeza de que toda essa história nem era real. Isso porque não havia uma única foto ou vídeo dessa tal escuridão. A desculpa era de que ela não era visível em filmagens ou fotografia. A única prova de que a coisa toda era real era o testemunho daqueles que afirmavam tê-la visto. Por isso eu nunca acreditei.

Em dois meses, 64 países reconheceram a existência dessa escuridão, a quem cientistas israelenses deram o nome de HOSEK. Mas não havia uma foto, um vídeo, uma pessoa famosa desaparecida, uma prova concreta além de histeria coletiva. Então o governo brasileiro foi o 65° a alegar o desaparecimento de alguém - um casal de idosos do interior de São Paulo - por causa do Hosek. Teoricamente, uma nuvem negra como carvão havia descido do céu de repente e caido sobre a casa deles. As pessoas ficaram com medo de se aproximar e todos que viviam próximo fugiram. Na semana seguinte as trevas se foram, e o casal que vivia naquela casa sumiu.

Eu fiquei paranóico com isso, querendo investigar essa história. Tinha certeza que era um pânico sem motivo. Mas eu não tinha dinheiro ou tempo para viajar até São Paulo, então decidi esperar. Logo, mais e mais relatos foram surgindo aos milhares. Nos primeiros dias, mais nenhum desaparecimento, apenas informações na TV e na internet de casas ou ruas tomadas pela escuridão. Eu tentei investigar por conta própria a situação, mas nunca consegui encontrar uma única pessoa, uma única casa, uma única rua que realmente houvesse sido atingida.

Algumas regiões foram sendo isoladas pelo Governo para evitar que pessoas se aproximassem dos supostos lugares onde as trevas haviam aparecido. Anteontem, o Governo do Estado Rio de Janeiro decretou estado de calamidade pública. Quando notaram que todos os casos confirmados haviam sido encontrados na região metropolitana do Rio de Janeiro, onde eu vivo, todas essas cidades foram isoladas, e qualquer pessoa de fora era proibida de entrar nelas, enquanto as pessoas lutavam para irem para outras regiões. Você deve imaginar o caos que ocorrreu com milhões de pessoas tentando escapar ao mesmo tempo.

Eu continuei tentando seguir minha vida normalmente. Como eu trabalho na Companhia de Limpeza Urbana da minha cidade, meu serviço foi um dos poucos que não parou por causa do pânico geral. No dia 78 desde o primeiro relato do surgimento do Hosek, eu acordei 4 da manhã para ir trabalhar, como todos os dias. Minha mulher estava dando de mamar para nosso recém-nascido, nosso primogênito (não que houvesse outros, mas eu queria ter uns cinco bonequinhos). O prédio onde moro tem cinco andares, cada um com um pequeno corredor de quatro apartamentos, eu moro no último. Ao sair, deixei a luz da cozinha acessa, para que entrasse no quarto claridade suficiente para que a mulher pudesse alimentar nosso rebento. Desci as escadas, ainda sonolento (sempre me arrependo de dormir muito tarde, mas sempre tarde demais). Quando cheguei ao corredor do terceiro andar, uma coisa chamou minha atenção: a luz estava piscando. Podia não ser nada, mas uma mudança brusca da rotina como essa logo despertou meus sentidos.

Ao chegar no lance de escadas que dava para o segundo andar, dei de cara com uma coisa que simplesmente não deveria existir. Era uma criatura humanoide magricela, parada bem no meio das escadas, literalmente pele e osso, com dois grandes olhos negros que ocupavam metade do seu rosto, e a outra metade era praticamente só sua bocarra - com pequeníssimos dentes, mas muito pontudos, como uma serra. Ao seu redor, havia uma fumaça negra; mais do que isso, era uma treva densa, uma escuridão palpável.

Nem mesmo consegui gritar, a garganta fechou. Dei as costas para a criatura e corri de volta para o apartamento. O trajeto de subir aqueles dois andares teria sido feito em segundos, mas o tempo pareceu passar bem mais devagar, tanto que pude distinguir atrás de mim um som como que de um vento muito forte, embora não houvesse vento nenhum. Entrei no apartamento, tranquei a porta e, apavorado, tentei pensar no que fazer. Estava completamente cercado: se aquela coisa conseguisse entrar, minha única fuga seria pular a janela e rezar para sobreviver à queda de cinco andares.

Mas outro pensamento me apavorou muito mais, enquanto a luz da cozinha começava a piscar e aquela treva entrava por debaixo da porta: eu havia atraído a coisa para onde estava minha mulher e meu bebê.