MONÓLOGO SEM PLATÉIA

Domingo, 30 de dezembro de 2019.

Noite fria, lugar abandonado... Ótimo visual para resolver assuntos importantes, e dos bons, com requintes de crueldade, será o meu melhor, farei o meu melhor, guardei tudo que vivi e sofri durante esses 30 anos. Humilhado, pisoteado, tratado como escória da sociedade. Fui internado em hospital psiquiátrico, preso em penitenciárias que mais pareciam cemitérios para vivos. Se mereci? não sei, fiz coisas boas e ruins. Você vai me julgar?

Sou um grande cozinheiro, com vinte anos escrevia e executava o cardápio de um restaurante. Lugar legal, servíamos média e alta sociedade... (Lágrimas e risadas contidas)

Fiz um bom começo em minha vida profissional, nem sei como, nem quando, não lembro agora, mas quando percebi já estava em Paris, agora em um restaurante do mais alto padrão, 3 estrelas Michelin, alto salário, em Euros. Vivia como milionário, muita bebida, mulheres, apartamentos e carros luxuosos, muitas pessoas ao meu redor... Todos me amavam, (risos), amavam meu dinheiro, meu status.

Meus pais eram extremamente humildes, na verdade, não conheci meu pai, ele nos abandonou assim que nasci. Segundo o que mamãe contava, ele era casado, família bem constituída, não queria mais problemas para a vida dele. Mamãe casou-se com um agricultor de uma pequena fazenda que cuidava bem de nós... (lágrimas tristes)

Meu querido padrasto era matuto do interior, fumador de charuto, fumo fedorento, não se preocupava onde estava, a fumaça pairava em todo lugar. Como eu disse, cuidava bem de nós, nunca deixou faltar nada, mas exigia muito de minha mãe, não poucas vezes presenciei cenas de sexo tórrido, ela gostava desse risco, gostava de saber que alguém estava vendo, não se importava que fosse eu. Eu tinha sete anos quando vi pela primeira vez.

Minha mãe cozinhava para meu padrasto e para os colegas, isso ela fazia muito bem, nunca irei esquecer do cheiro e do gostinho de açafrão que ela deixava no arroz, (Gargalhadas). Deu uma nostalgia agora, uma vontade de comer açafrão...

Aprendi a cozinhar com minha mãe, todas as manhãs ela cantarolava canções inventadas com receitas, coisas como:

“Pegue a panela, coloque a água esquentar, separe o feijão e a batata a fritar” ... (mais gargalhadas).

Para mim, era lúdico, as canções ficavam em minha cabeça. Ela me amava, eu sentia isso, era pouco expressado, nunca disse “eu te amo”, ela transferia as dores do passado e do presente para mim, mas eu tentava não demonstrar minha tristeza. Ria de tudo que eles diziam, meu padrasto contava piadas com muitos palavrões, não tinha muita ideia do que ele estava dizendo, mas achava engraçado o jeito que ele expressava e mexia os braços... (Risadas contidas)

Falei demais, cansei, não vou fazer mais nada hoje, preciso descansar, fica pra amanhã.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2019.

Linda noite, noite de ano novo, ano de mudanças, melhorias para as nossas vidas, você não acha? Não precisa responder, já tenho certeza da resposta, todos nós queremos a mudança, dinheiro, paz, prosperidade, que “Ele” volte... (Risos e dedos apontados para o céu).

Cada um comemorará de uma forma diferente... (suspiro). Lembrei do dia em que minha mãe foi dormir mais cedo depois de ter bebido muito, fiquei na beira da fogueira com meu querido padrasto e alguns amigos dele. Ele serviu uma taça de vinho para mim, foi meu primeiro contato com o álcool, eu tinha apenas doze anos... Gostei. (Risos)

Me fez jurar que não falaria nada pra minha mãe. Achei que não seria problema, sorri e meneei a cabeça dizendo sim. Bebi mais algumas taças, depois estava bebendo cachaça e depois... Depois... Não sei o que aconteceu, apaguei. (risos)

Acordei pelado ao lado de um dos colegas do meu querido padrasto, sentia muita dor de cabeça, me enrolei na minha camiseta e saí correndo, no meio do caminho, da cocheira até minha casa, minha mãe me catou pelo braço e perguntou porque eu estava daquele jeito. A dor na minha cabeça era tão forte que desmaiei mais uma vez. Acordei com gritos do lado de fora da casa, era meu padrasto surrando um de seus colegas e perguntando o que ele havia feito comigo, porém, antes que pudesse responder, levou um tiro na testa. (risos e choro contido)

Como se nada tivesse acontecido os outros o arrastaram pelas pernas e o enterraram em meio a plantação de milho. Nunca falamos sobre esse assunto, e nunca mais comi milho. (Muitas risadas seguidas de um suspiro).

Vamos voltar, preciso beber um pouco, amanhã conversamos mais.

terça-feira, 01 de janeiro de 2020.

Meu deus, que dor de cabeça, acho que passei do ponto, desculpe ter tirado suas roupas ontem à noite, fiquei com a história que te contei na cabeça, mas não fiz nada demais com você, ou fiz? (Gargalhadas e choro).

Não gosto de te machucar, na verdade não gosto de machucar ninguém, mas perdi o controle ontem. Não bebo mais (muitas risadas).

Lembra quando disse que minha mãe era ótima cozinheira? Não era só isso que ela fazia bem, a casa estava sempre muito arrumada e cheirosa, ela vestia-se muito bem, gostava muito de vestidos da cor verde, combinava com seus olhos da mesma cor, o que parecia chamar a atenção do meu padrasto e de seus colegas. Ela parecia exibir-se para todos, ou fantasiei muito (risadas).

No meu aniversário de 15 anos, minha mãe fez uma festinha em nossa casa, alguns poucos amigos estavam lá. Pedro Henrique, o que eu considerava meu melhor amigo da escola, levou uma prima que o visitava na cidade, logo na chegada me encantei pela menina. Tinha dezessete anos, vestia-se de maneira diferente, calça jeans e blusa amarrada acima do umbigo, piercing no nariz, tatuagem no ante braço e cabelo muito preto. Na verdade, chamou a atenção de todos os poucos que estavam lá, inclusive do meu querido padrasto. (risos e lágrimas)

Quando fui ao encontro deles para cumprimentá-los, ele veio mais rápido e os abraçou como se já os conhecessem, agradeceu a presença com um tapinha nas nádegas dela, um soquinho punho a punho nele e disse para divertirem-se. Aquilo era surreal, nunca tinha visto ele daquela maneira. Naquele momento eu achei legal, parecia estar alegre com minha festa... (Suspiros), mas na verdade meu querido padrasto encantou-se por Ieda, e ela por ele. O que ela viu nele? gostara do cheiro de fumaça? Sei lá... (risadas e gritos)

No desenrolar da festa, percebi os olhares mútuos dos dois, minha mãe envolvida em servir os convidados, não percebeu nada. Duas horas depois e muitas cervejas, senti falta de Ieda. Disfarcei dos outros e saí, procurei por alguns lugares até que na cocheira encontrei meu padrasto deitado sobre ela. Não deixei que me vissem, saí correndo para avisar minha mãe, entrei em casa, ela não estava na cozinha, subi até o quarto, correndo e vi meu melhor amigo transando com minha mãe... Essa parte da história me deixou um pouco triste, não quero mais... (Lágrimas e choro com soluços)

Voltaremos amanhã.

Quarta feira, 02 de janeiro de 2020.

Onde paramos ontem? A sim, peguei a arma de meu padrasto, que ele guardava em cima do armário e atirei contra Pedro Henrique, foram seis tiros. Acertei dois, no ouvido e no pescoço. Morreu ali, em cima da minha mãe. Com o barulho dos disparos, os convidados, inclusive o meu padrasto e Ieda, subiram até o quarto, viram a cena, alguns saíram vomitando, outros choravam. Meu padrasto tirou a arma de minhas mãos, recarregou, mirou na minha cabeça, mas depois desviou e atirou contra a minha mãe, acertou dois tiros na cabeça. (suspiro de alívio)

Ele tentou fugir, mas foi contido pelos convidados até a polícia chegar. Nos levaram para a delegacia, não havia o que fazer, confessamos. O levaram para a penitenciária e eu fui para casa de detenção de menor de idade. Foi meu primeiro contato com o mundo real. Drogas, bebidas, estupros. (silêncio momentâneo)

Quando completei dezoito anos, eles tiveram que me soltar. Não sabia o que fazer, então voltei para minha antiga casa, mas já haviam outras pessoas morando lá, foi a leilão para pagar o processo da família do Pedro. Eu não tinha pra onde ir, não conhecia mais nada. Saí da cidade, o mais longe que consegui, fui pedindo carona e com pequenos furtos em lojas e postos, fui me alimentando.

No meio do caminho, entrei numa pequena loja de roupas, estava a caminho do sul e era inverno. Pensei em pegar um casaco e uma touca e sair correndo, mas por ironia do destino, quando preparei a corrida para fuga, dois indivíduos entraram na loja com armas nas mãos, me escondi, eles começaram a bater no homem do caixa e não perceberam a chegada da polícia.

No momento em que começaram os tiros, correram para o fundo da loja, exatamente onde eu estava. Um dos assaltantes percebeu minha presença, jogou uma arma em minha direção e mandou eu atirar. Eu não consegui fazer sequer um movimento, não sou um assassino. No tiroteio, me escondi atrás de uns móveis, quando os tiros cessaram, levantei com o intuito de sair correndo, mas recebi ordem de prisão, não pude explicar, infelizmente aquela arma em minhas mãos me condenava. Mais uma vez estava em uma delegacia, algemado. No meu depoimento, o delegado até me ouviu, mas a cara dele mostrava que não acreditara em nada do que eu disse. Ele me olhou e disse que o homem da loja havia me reconhecido, que teria sido flagrante e com meus antecedentes seria difícil me livrar da condenação e sem poder sequer me defender, fui para o presídio... (Choro)

Só de me lembrar dos momentos naquele inferno, sinto calafrios. Hoje vou andando, sozinho, não quero sua presença... Tchau.

Quinta-feira, 03 de janeiro de 2020.

Continuando..., (risos nervosos)

Preso mais uma vez, não tinha dinheiro para um bom advogado, e aquele que o estado indicou, aconselhou-me a confessar. Realmente, não havia como me defender. Eu sei! Já havia falado sobre isso, mas repeti assim mesmo.

Fui trabalhar na cozinha do inferno (gargalhadas), gostava do que fazia, era legal ser reconhecido, mesmo que fosse por pessoas presas. As frases: “como consegue fazer isso com esses legumes podres?” e “enquanto fizer comida permanecerá vivo”, mantinham-me esperançosos. (Risos)

Cumpri dois anos de pena e por bom comportamento saí. Conheci um traficante dentro da cadeia que havia saído alguns meses antes de mim. Ele sempre dizia que quando estivesse livre, mudaria de vida e iria abrir um restaurante e me contrataria para ser o cozinheiro.

E foi tudo verdade, no meu segundo dia livre da cadeia, o procurei e recebi o convite de emprego. Enfim, tudo iria melhorar. Em menos de cinco anos já havia passado por cinco restaurantes diferentes, vivia para fazer comida, fiz vários cursos até chegar ao convite da França. Fui para um dos melhores: “Le Melleir de la France”, comecei como subchefe, mas um ano depois já estava como chef.

Cheguei no meu melhor momento, tudo estava dando certo, graças a ele. (Lágrimas contidas e dedos apontados para o céu)

Meu passado não estava esquecido, mas já conseguia controlar melhor meus pensamentos e lembranças. Minha vida estava de acordo com o que imaginava. Eu cozinhava, conhecia mulheres e homens interessantes, tinha muito dinheiro para satisfazer meus egos. Meu telefone tocava dia sim, dia não com convites de outros restaurantes, oferecendo altos salários, bônus, participações..., mas era o momento de eu me estabilizar, ficar um pouco mais de tempo no mesmo lugar.

Até que 20 dias atrás meu telefone tocou, eu já tinha a resposta na ponta da língua, não iria aceitar convite algum. Estava cansado de tanta insistência, eis que escutei a voz, aquela que achei que havia esquecido, mas não, estava bem viva dentro do meu cérebro, cheguei a sentir o cheiro do charuto fedorento. Era meu querido padrasto me dizendo que sairia da cadeia, que não tinha mais nada e que estava me acompanhado pelas revistas e programas que eu estava aparecendo, me cobrou visitas que nunca fiz, dizendo que esqueci dele. Mas na verdade nunca esqueci, esse trauma estava guardado... (choro).

Mas isso fica para amanhã.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2020.

Após a ligação, perdi a cabeça e comecei a quebrar tudo no restaurante, e na França, as leis são outras, não é a barbada que é no Brasil.

Os policiais tentavam me agarrar, mas eu estava descontrolado, um deles me acertou com uma pistola de choque. (cara de dor e choro leve). Parei em um manicômio no meio de assassinos e psicopatas que se fingiam de doentes. Um deles me reconheceu, na verdade era um fã, que por motivos semelhantes aos meus havia matado seu pai, então aproveitei os cinco dias que estive lá para entender a história de meu novo amigo. Ele disse que descobriu que seu pai estava traindo e roubando sua mãe, ela era dona de uma grande transportadora e ele, um alcoólatra que só gastava dinheiro.

Falou que conversou com seu pai e que pediu a ele pra parar com as traições, mas que escutou que além de trair sua mãe, ele o mataria se contasse algo para qualquer pessoa. Porém, o meu novo amigo descobriu que poderia reverter a situação, conversou com um dos seguranças de sua mãe, contou a história e pediu que matassem o seu pai. (Cara de espanto e gargalhadas)

No dia seguinte o segurança trouxe o pai dele dentro do porta malas de um carro, levaram até um matagal e puseram fogo. Gostei da história, poderia escrever algo sobre isso um dia.

Depois que saí daquele hospício fedido, resolvi voltar ao Brasil pra esperar meu padrasto querido na saída do presídio, e foi o que fiz. Passamos a tarde juntos, jantamos, bebemos, ouvi muitas desculpas pelo passado, mas não consegui desculpar. E cá estamos (gargalhadas), juntos mais uma vez, depois de muitos anos...

E de hoje não passa. Pensei muito e quero que saibas que foi você que tirou o pouco de coisas boas que aconteceram em minha vida, e agora que eu estava estabilizado e fazendo o que mais gosto, resolveu aparecer. Por que? (gritos)

Por que está tão quietinho? deve ser calor. As pessoas que amei você matou, minha mãe, o José, seu colega que realmente me amava, e inclusive, o dia em que ele foi morto não foi nossa primeira vez, eu já havia o encontrado várias vezes. E Ieda, a vi apenas uma vez, e você quebrou meu encanto... (Choro e lágrimas)

Você já conhecia essa pedreira? Eu imagino que não, bem alta, não é? mas agora vamos terminar com a dor e o sofrimento de todos nós... Primeiro vou tirá-lo do porta malas.

Meu queridão, vamos ver como está... ops! dormindo (gargalhada), não acredito...

Morreu? não! Estava fingindo, bela atuação, digna de óscar. (choro e risos).

Vamos voar juntos, é a hora da libertação. 3, 2, 1, soltando o freio.

(Gargalhadas, choro, risos, soluços e fim).