Santânico

[ Santânico é um conto baseado em uma música de mesmo nome da banda Matanza. As músicas da banda me inspiram muito e fazem minha mente viajar em histórias mirabolantes. Dependendo lanço outros. ]

Santânico

“ Podia ser só mais um lindo entardecer em San Miguel

Se eu não soubesse o que acontece quando a lua está no céu

Mas quem mora por ali sabe bem como as coisas são

Sei que essa noite eles virão

E não vai sobrar nada de ninguém “

San Miguel é uma pequena cidade não muito distante da Cidade do México. As lendas acerca da cidade eram famosas, mas para todos não passava de lenda. Ou quase todos.

Vez por outra aparecia algum curioso, ou até mesmo um desavisado. O que era o caso de Juan. Ele era um mochileiro e não tinha grandes pretensões na cidade. Era apenas caminho. Mas ao caminhar pela cidade, gostou muito de tudo que viu. Casas pequenas e bonitas, lojas pequenas e organizadas, pessoas simpáticas e pacíficas e o visual ao redor da cidade era exuberante. A cidade ficava em um vale cercado por montanhas e cortada por um rio.

Ao perceber que sua rota poderia ser mais que um simples caminho, resolveu pernoitar na cidade. Ainda era de manhã, mas resolvera passar todo o dia explorando e depois dormir em algum lugar barato.

Caminhou um pouco e logo resolveu entrar em uma padaria. Pediu um café preto e um pão com manteiga. Sentou-se numa mesa simples no canto e contemplou o momento. Momento que não era comum, pois não podia se dar sempre a esse luxo já que vivia na estrada. E a vida da estrada é dura. Chamou a atendente e lhe perguntou onde havia uma pensão barata.

– Ao fim da rua. Fale com a Amber. - Disse ela com um largo sorriso.

Ao terminar o café seguiu sua caminhada pelo local indicado ainda apreciando tudo ao seu redor. Juan achava estranho, mas parecia que o ar da cidade era diferente. Poderia jurar que a cidade como um todo tinha um ar perfumado, atraente, quase hipnotizante.

Chegando ao fim da rua encontrou seu destino. Uma pequena placa revelava que ali era o lugar. Entrou e dirigiu-se a uma simpática senhora que se encontrava atrás da escrivaninha. Ela lhe recebeu bem e lhe direcionou até o quarto. Pelo caminho teve a impressão de que não se recebia muita gente ali, apesar da beleza da cidade. Parecia uma simples casa, que não estava preparada para receber hóspedes. Esses deviam ser menos comuns do que o normal.

O quarto era simples, contava apenas com uma cama, um armário antigo em madeira maciça e um criado mudo com um velho abajur em cima. Tudo o que ele precisava e, no geral, muito mais luxuoso do que era acostumado. Abriu a janela e viu que o visual era muito mais belo do que poderia imaginar. Não haviam mais casas ao fundo, com exceção de um pequeno sitio que se podia ver o longe, e duas montanhas emolduravam o rio de águas cristalinas que corria preguiçosamente. Tão preguiçosamente que quase resolveu descansar um pouco. Quase. Tudo era tão excitante que a bruma parecia o chamar para desbravar. E foi isso que fez.

Caminhou pela cidade, comprou uma cerveja e sentou na bela praça. Logo ao seu lado havia um senhor bem velhinho fumando seu cigarro de palha, e resolveu puxar conversa.

– Linda cidade a de vocês, hein...

– É. - respondeu simplesmente o velho.

– Posso saber o nome do senhor?

– Pablo. - Disse o velho depois de um longo trago.

– Meu nome é Juan.

– O que faz por aqui, jovem? - Perguntou em um tom meio sombrio.

– Sou um viajante, gostei muito da sua cidade e resolvi estender um pouco minha passagem. - Respondeu Juan num tom de surpresa, pois achava que o velho não estaria disposto a um diálogo.

O velho tragou profundamente seu cigarro e, pensativo, exalou uma grande quantidade de fumaça.

– Você sabe sobre a cidade? – Perguntou em tom igual ao da pergunta anterior.

– Não sei. Tem algo que eu deveria saber?

– Coisas estranhas acontecem aqui. - Disse firmemente o velho.

– Que tipo de coisas estranhas? - Perguntou curioso.

– Seres estranhos aparecem. - Disse semicerrando os olhos e dando mais um trago.

– Como assim, aparecem? - Perguntou descrente.

– Coisas estranhas acontecem quando eles aparecem. Gritos, névoa e sangue.

– Como assim? - Disse quase assustado.

O velho não respondeu. Juan não era meio cético, e simplesmente acreditou que o velho era maluco, e então resolveu ir.

– Até logo - Disse ao velho.

– Se cuida. – Disse o velho. – Tem algo no ar. Hoje é noite de lua cheia. Tenha cuidado.

– Obrigado.

“ Mas somente o velho lembra como tudo aconteceu

Ele era novo no momento em que o primeiro apareceu

Mas quem mora por ali sabe bem como as coisas são

Sei que essa noite eles virão

E não vai sobrar nada de ninguém. ”

Juan seguiu caminhando e logo estava na margem do rio. Continuou margeando e andou por algumas horas, até que encontrou um lugar magnífico, em que a água estava parada e clara e com belas rochas ao redor. Ideal para mergulhar. E assim o fez. Ficou por algum tempo na água, se refrescando e apreciando aquilo que mais amava, a natureza e a liberdade que ela o trazia.

Ao sair da água, encontrou uma pedra para se encostar sob uma magnífica árvore e ali ficou. Respirou fundo e sorriu. Sorriu simplesmente pela sua existência. Ali ficou algum tempo. Não se sabe exatamente o quanto.

Quando abriu os olhos estava meio perdido. Não lembrava bem de onde estava e nem de ter dormido. Aos poucos foi se situando e percebeu que havia simplesmente se rendido ao cansaço e dormido um pouco. Estranhou mesmo o fato de que já era noite. Talvez não tenha dormido tão pouco assim.

Levantou, esticou seus braços ao alto e respirou fundo. Sentiu um calafrio.

Apesar de a noite estar tão bonita quanto fora o dia, e a lua clarear o rio e suas árvores como se tudo fosse um quadro de Monet, algo era meio sombrio ali. Na verdade, tudo era sombrio ali. O que era belo, agora era assustador. Simplesmente assustador. E o que mais assustava era que, o mesmo ar que antes inspirava alegria, agora era melancólico e sombrio. Era quase palpável, tinha um cheiro peculiar, fétido. Fétido como enxofre.

Racionalmente Juan olhava ao redor e via que tudo estava normal, sem poluição, e não havia de onde existir esse cheiro. Inconscientemente sabia que havia algo errado.

Resolveu seguir seu caminho de volta o mais breve possível. Caminhando por onde veio, percebeu que a paisagem parecia meio diferente. Na verdade, o caminho estava meio diferente. Curvas onde antes eram retas, pedras onde não existiam e moitas que não tinha passado por elas.

Sons estranhos pareciam estar sendo emitidos bem próximos aos seus ouvidos. Ele acreditava serem animais. A cada vez mais ficava difícil acreditar nisso. Sons vinham de todos os lados, as vezes como sussurros, galhos se quebrando e gemidos graves.

Tudo era muito surreal, mas seu ceticismo não o deixava acreditar em nada do que aquele velho havia dito. Nada.

Até que caminhando olhou por cima do seu ombro esquerdo e viu no meio da vegetação olhos vermelhos flamejantes e uma pele meio escamosa cor de ferrugem. E então o nada virou tudo. As palavras do velho ecoavam em sua cabeça enquanto corria freneticamente.

Sua corrida era tão sagaz que os sapatos acabaram ficando pelo caminho. E sua corrida desprovida de calçados estavam o fazendo sangrar, pois pequenos galhos e espinhos lhe cortavam o pé, mas nada que impedisse sua insana tentativa de fuga. A cada momento parecia que o ser estava mais próximo dele, o fazendo acreditar que sentia sua respiração muito próxima. Poderia ser somente o ar, que se tornara quente e doentio.

Ao tropeçar em uma raiz de uma grande árvore caiu e bateu com sua cabeça em uma pedra, abrindo assim um grande corte em sua cabeça, mas nada que impedisse a desesperada corrida pela vida. Ao olhar rapidamente para trás via que não mais se tratava de um, e sim de um amontoado de seres, que se engalfinhavam e se rasgavam sedentos por sangue. Sangue que escorria de Juan agora. Seu corte sem dúvidas os deixavam mais excitados e sedentos.

A corrida cada vez mais alucinada não o fazia pensar muito, mas o pouco que pensava sabia que não havia saída. Sentiu algo cortar suas costas. Algo como uma imensa garra. Arqueou seu corpo perante a excruciante dor e pensou em desistir. Mas seguiu. Seguiu e ao ver que não havia alternativa, jogou-se no rio em uma parte mais forte e deixou a correnteza o levar. Ela o levou até uma corredeira e de lá caiu fortemente no fundo do rio. O estampido foi intenso, mas parecia reconfortante diante do silêncio que o seguia. Não havia mais nada.

Conseguiu subir a superfície e com muita dificuldade alcançou a outra margem. Ao chegar a outra margem deitou-se numa parte arenosa do rio e respirou com dificuldade. Fechou os olhos e uma lágrima escorreu aos olhos. Estava vivo.

Abriu novamente os olhos e todo o alívio se foi. Na verdade, tudo se foi.

Viu um par de olhos flamejantes fitando os seus a cerca de um palmo de distância. Sentiu seu corpo ser perfurado e arrastado para a escuridão; onde a lua não clareava mais.

“ E não há nada que os detenha quando a noite cai

E nem nada que os acalme quando a lua cheia sai

É não há nada que os detenha quando a noite cai

E nem nada que os acalme quando a lua cheia sai

Podia ser só mais um lindo entardecer em San Miguel

Se eu não soubesse o que acontece quando a lua… “

Derek Mendonça
Enviado por Derek Mendonça em 06/03/2020
Código do texto: T6882064
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