DEIXE-ME EM PAZ - Uma releitura de O CORVO de Edgar Allan Poe
As batidas eram em sua massa cinzenta
Três fortes e aflitivas investidas, armadas
Da mais incisiva forma de causar uma dor
O amor, o amor, o que não retornará jamais
Aquela que pelos anjos foi levada antes
De se colher seu aroma inda em botão
Incauta fez dos vermes seus possuidores
E o desarmou de seus favores ofertados
Com tanta insistência, o que sua honra evitava
Mas a noite doída, agitada, alguma coisa tramava
Batidas eram lá fora além de dentro dele
Aumentando sobremaneira o seu sofrimento
O vento fazia galhos dançarem ritmos descompassados
E a lua crescente com um sorriso medonho riscava o negro céu
Ao fechar a janela o bicho apareceu de rompante
Batendo uma asa em sua mão e o deixando ofegante
Caído entre a cadeira e a parede, nem sentado numa nem apoiado na outra
O corvo gralhava os lamentos do mais profundo inferno
E furioso estendia as asas e estufava o peito
Deixe-me em paz, deixe-me em paz, deixe-me em paz
Três vezes bradou e depois recuou se encolhendo
Sobre o livro que pousara se mantinha impoluto
Até a cabeça insistentemente agitar, indicando lá fora o que para Laertes era oculto
Aos tropeços ele abre as cortinas e escancara a janela
Vociferando "O que foi, ave agourenta? Porque me atormentas?"
Mas empalidece logo e espalma as mãos no rosto
A boca aberta deixa escorrer um fio de saliva
Os olhos não crêem na visão de Lenora que o encara
Translúcido, o fantasma geme e o corvo desalmado, que carece de algumas penas no rabo
Voa em direção de sua amada desencarnada
E pousa sobre um galho da robusta cerejeira
O bico da maldita ave projeta-se exatamente de onde a boca alva e fina de Lenora pende
E os gritos recomeçam: "Deixe-me em paz, deixe-me em paz, deixe-me em paz."
Outras três vezes e param e os ouvidos de Laertes sangram
Pela dor das palavras que reverberam
Por serem de dicção odiosa e ferirem os tímpanos como arranhaduras no metal
Outra vez o vento batia as janelas e o corvo de olhos amarelos grasnou da escrivaninha agora uma só vez: "Deixe-me em paz".
Então passou a bicar o livro sobre o qual estivera pousado antes
Até abrí-lo e folheá-lo, usando seu bico para tal feita
Passou a bicar num só lugar do livro e Laertes febril e alucinado
Foi pra cima da besta emplumada e com o livro nas mãos batia nela que revidava
Desferindo bicadas em rosto e mãos, onde o atingisse
Tão frenética corria a luta que ele até usou uma velha máquina de escrever contra o bicho
"Deixe-me em paz, deixe-me em paz, deixe-me em paz" gritava Laertes enlouquecido
O corvo pousou sobre um cabide de chapéus
E ficou ali até tudo acabar
Inanimado, empalhado, imortal ele ficou
Lembrando sempre a inevitável verdade que trazia
Incômodo, convencido daquelas palavras
No livro estropiado nas mãos, era uma bíblia
A marca profunda deixada pelo corvo sobre o versículo:
"Deixe que os mortos enterrem seus mortos."