O Boneco
Um homem velho, já considerado estéril pela medicina de sua época, talhava com as mãos calejadas uma forma humanoide feita com as madeiras de sua pequena carpintaria, que era famosa em seu vilarejo pela venda de brinquedos artesanais. Enquanto o homem manufaturava o objeto, lágrimas escorriam de seus olhos acinzentados já recém-dominados pela catarata. Suas mãos mexiam-se automaticamente, demonstrando a sua tremenda habilidade e experiência para aquele tipo de artesanato. Depois de um tempo trabalhando no escuro, pois sua loja encontrava-se fechada e com as janelas enegrecidas por cortinas escuras, o velho homem levantou-se e sorriu ao admirar seu feito enquanto enxugava os resquícios de lágrimas de seus olhos marejados. Ele então acalentou o boneco e o posicionou em uma cadeira enquanto buscava um outro assento para ficar de frente para sua obra. Era um ventrículo, mas sem as cordas conectadas em suas articulações. O boneco não possuía olhos, nem boca e nem cores, mas mesmo assim o velho artesão sentia que nada mais precisava ser feito.
Com um estranho livro em mãos, o velho recitou algumas palavras em latim encarando o boneco sem rosto na escuridão do pequeno cômodo. Enquanto lia as frases do livro, novas lágrimas minaram de seus olhos. Eram frutos das lembranças de seu pequeno filho que fora encontrado morto anos atrás em sua própria loja. As autoridades do vilarejo desconheciam a causa da morte da criança, assim como todos os seus moradores. O menino foi enterrado com a garganta suturada, pois um corte fora feito ao longo de quase todo o seu pescoço, levando todos a crerem que sua morte dolorosa foi concebida pelo acúmulo de sangue em seus pequenos pulmões.
Ao terminar de ler o livro, uma voz sibilante sussurrou nos ouvidos do velho palavras que não tinham forma, como se fossem ditas em uma língua desconhecida. Porém o artesão entendia todas elas, mesmo sem compreender como exatamente aquele fenômeno era possível. Os pelos no pescoço do velho eriçaram ao escutar aquilo. Seu coração acelerou e suas mãos habilidosas começaram a tremer de forma involuntária. Ele engoliu a própria saliva com dificuldade e não se atreveu a olhar para trás. Ele sabia quem estava ali. O ritual estava funcionando até o presente momento, fato que o surpreendeu inteiramente. A voz vinda do vazio da escuridão fez uma pergunta. O velho assentiu com a cabeça. Uma ordem a ele então foi dada, e eis que o pai entristecido ofereceu sua mão ainda sem ousar olhar para trás. Ele gemeu baixinho quando sentiu um corte feito em sua palma da mão antes de repousá-la em uma das páginas do estranho livro, o manchando de sangue. A voz então calou-se, e o clima de tensão e pavor deu-se por encerrado.
O homem permaneceu sentado, ainda encarando o boneco, apertando a mão marcada pelo corte quando novamente se surpreendeu. O boneco mexera-se de forma autônoma. Primeiro ele encostou sua cabeça de madeira em seu peito artificial e pareceu estar olhando para suas mãos enquanto estas mexiam-se. Depois moveu a cabeça em movimentos circulares, como se tentasse localizar-se. Logo depois, fixou-a na altura dos olhos do velho, que desabava em lágrimas e soluçava intensamente. O boneco agora parecia encarar o homem no escuro. Sua forma humanoide e sem rosto permaneceu imóvel por um tempo antes de tentar grunhir algumas palavras com bastante dificuldade. Mas apesar dos sons estranhos emitidos misteriosamente pela coisa sem boca, o velho pareceu compreender o que esta queria dizer. Então o boneco levantou um de seus pequenos braços e apontou seu dedo indicador para o artesão. O velho se desfez em lágrimas, e com um machado disposto perto de sua cadeira, partiu para cima do boneco, o retalhando em pequenos pedaços, enquanto sons horríveis vindos de sua obra soavam dentro de sua cabeça. Logo após este feito, o velho subiu as escadas de sua carpintaria ainda tomada pela escuridão e se dispôs a escrever um bilhete com a pequena iluminação emitida por uma vela.
Dias depois os vizinhos do velho carpinteiro começaram a reclamar de um forte odor de carne apodrecida que vinha de sua loja. Nada fora feito até o momento em que um oficial da lei fora chamado para inspecionar o local. A cena grotesca que ele vira com seus olhos incrédulos fez seu estômago embrulhar, e antes mesmo que ele pudesse entender o que se passava ali, o vômito espalhou-se no chão e misturou-se com o sangue seco que vinha do pescoço de um homem caído de bruços no chão. Em uma de suas mãos havia uma serra pintada com sangue entre suas intersecções e ao lado do cadáver uma bilhete jazia ao chão manchado de sangue. O oficial leu horrorizado as palavras que ali estavam grafadas, pois o suicida deixara em seus últimos lamentos a confissão do assassinato do próprio filho, que fora morto pela mesma serra que encontrava-se junto ao seu corpo.
Ninguém nunca entendera ao certo o que aconteceu naquele dia, mas resquícios de um boneco com a altura de uma criança foram achados na oficina do homem, porém nenhum livro jamais foi encontrado ou mencionado nos relatórios oficiais. Mas todos do vilarejo afirmaram que aquilo tudo fora obra do próprio diabo...
(Guilherme Henrique)