NEGRA SOLIDÃO FLAMEJANTE!
Vivia no meu castelo rodeado de neblina, sombras e escuridão. Um típico castelo gótico envolvido numa paisagem mortiça e sombria. Revestido de gárgulas dantescas esculpidas com mármore corroído. Dentro dele, em pleno salão de receção, tocava adormecido sobre o meu órgão de tubos celestial, enquanto lá fora os negros escravos amarrados pelos pés a árvores do jardim cantavam um “hummmm” repetidamente, tal como um coro afinado! Mas eu tocava no teclado desafinado na afinada melancolia que percorria o meu esfíncter. Enquanto a minha testa batia nas teclas, com as mãos dedilhavam nas minhas costelas, tocando-as em acompanhamento como se fossem harpas humanas. A solidão esvaziou a carne e transfigurou-me em figura esquelética. Estava nu e apenas me compunha um velho colar composto pelos meus dentes arrancados por mim mesmo. E nessa debilidade balbuciava pastosa e lentamente:
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Eu tinha tudo para te dar mas tu decidiste partir cedo e cedo na noite partiste. Tudo aquilo que compus durante meses tu não ouviste, partiste para o surdo subsolo. E agora subsisto arrastando-me pela calada noite cansada, entre ramos e ervas desfeitas, entre os tapetes e os degraus das escadas desgastadas. Eu vivia por ti e tudo em mim era sol, mas ao partires o jardim ficou mole estufa putrefacta, dominada pela mortiça e cadavérica peste negra. A casa deveras entrou em trevas e agora tudo é agonia, já não há fantasia, já não há emoção, já não há alegria, já não andava, não corria, apenas arrastava os dedos no teclado lento. O portão ficou ferrugento pela tua inexistente utilização, A morte soprou a chama da vida e apagou-a numa rebelião contra o amor perfeito, o nosso amor era o eleito, porém apenas um sobrou e o que ficou, ficou desfeito. Hoje, na noite augusta, já nada me assusta, já nada me mete medo, vivo sozinho em pleno degredo, e na falácia da vida sobrevivo. Uma negrume melodia eu entoo à espera que tu regresses e te levantes do túmulo para ouvir por um segundo, as belas musicas que escrevera para ti, tenho partituras preenchidas da mais plena harmoniosa vida de romances nunca antes vividos porque o perfeito amor morreu jovem, e nada pode fazer voltar o que já se foi. Foi-se e não volta atrás, agora em partículas procuro-te no jardim, olho para mim e pergunto-te: onde estás? Mas não há resposta na verme escuridão, tropeço nas raízes sobrepostas como fraturas expostas de uma queda mortal, não sei onde estou, a tua morte cegou o meu olhar, a minha mente, o raciocínio. Já não existes e esse é o meu castigo, a minha punição. Dentro desta redoma colapso no devaneio da loucura insana, um dia de sofrimento equivale a uma semana de terror intenso, e ao meu peito destroçado lhe é perguntado: até quando, até quando continuarás a cair num precipício imenso e sem fim? E eu respondo chorando: até que ela acorde e volte para mim. Mas ela está deitada no seu leito de morte, e não há feitiçaria ou sorte que a levantem e a proclamem como vida, a potência extinguiu-se como animal raro, o fogo era alfandegário e não deixou passar a sorte. Na nossa noite de núpcias provaste o sal veneno do desgosto. E dentro das verdes chamas imensas foste incinerada no sarcófago indigesto, o teu peito ardeu e o ataque que nele se deu foi crepuscular regicídio, vi com os meus olhos os teus olhos eclipsar nas sombras eternas do descanso paranóico. E hoje procuro as cinzas que te formavam, mas nada restou no fogo que te matou, hoje és apenas miragem, aparição, um caixão em forma humana que ama ver a minha queda. Já não haverá noites de amor porque hoje o teu berçário é caixão mortuário, o berço onde te deitavas foi desfeito e a princesa que outrora serias, jamais existirá! A vida é injusta, minha filha, apenas tinhas um ano de idade…
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Aquando o término da música, os negros elevaram os seus corpos e suas vozes à loucura, faziam as correntes balançar pois já esperavam que um deles fosse morto; o que fosse mais insano e epilético sobreviveria mas o mais silencioso, tal solidão, pereceria e seria servido como alimento sobre o túmulo da minha cria morta!