OLHOS CINZENTOS COMO O MAR SERENO – CLTS 10

RELÍQUIA MALDITA

Com o andar suave e silencioso de um gato, o ladrão caminha pela antiga igreja de pedra. Adaptado à escuridão após as horas que passou escondido entre as cortinas do santuário, ele sabe para onde ir. Sua missão é simples. E deve ser completada sem alarido e sem sangue.

Deve roubar um objeto cuja existência é insuspeita e cujo desaparecimento também deverá permanecer em segredo.

Ele passa indiferente às numerosas peças de ouro e prata sobre o altar. Despreza até mesmo o grande crucifixo onde um Jesus de ouro maciço e em tamanho natural expiava as culpas dos homens. Tinha sido muito bem pago para executar aquele serviço com a condição de que deveria ater-se à urna sem valor. E assim o faria, pois havia empenhado sua palavra de ladrão... Entretanto, nada o impediria de retornar em outra ocasião para locupletar-se com as preciosidades momentaneamente desprezadas.

Seguindo pelo longo corredor que leva da nave aos aposentos do sacerdote, prossegue em total silêncio. Sua respiração permanece tranquila e ritmada. Ele está no controle de suas emoções. Ao alcançar a porta do dormitório, abriu o alforje e de lá tirou um punhado de raízes secas. Posicionou-as no pequeno vão entre a porta de madeira e o piso e, usando uma pederneira, ateou fogo ao pequeno maço que começou a produzir muita fumaça.

Do lado de dentro do quarto, o padre Arisztid dormia o sono agitado que tornou-se rotineiro desde que a pequena urna foi acrescentada ao mobiliário de seu quarto. Seu primeiro desejo era deixá-la escondida ou até mesmo enterrá-la no piso. Mas a fascinação crescente pelo conteúdo da urna e pela imagem do castelo que via pela janela enquanto celebrava a missa, levaram-no a deixá-la à vista. Longe de qualquer olhar e precedida pelas preciosidades do altar, ela não despertava cobiça ou curiosidade.

A fina fumaça entorpecente invadia o aposento volteando em graciosas espirais que tomavam conta de todo o espaço do quarto. O padre mergulhava em um sono profundo como há muito tempo não conseguia. Era tragado para o poço de uma aconchegante inconsciência. Do lado de fora, o ladrão já estava seguro de que era hora de abrir a porta. Com uma pequena ferramenta, retirou os encaixes que prendiam a porta nas paredes e pode retirá-la.

Acendeu uma pequena lamparina a óleo e olhou para o padre certificando-se de sua total incapacidade de acordar e frustrar seu plano. Sem dificuldade, identificou o objeto que fora roubar. A pequena e inexpressiva urna pareceu-lhe sem valor algum. Mas não foi pago para questionar e sim, para roubar. O que quer que houvesse naquela urna, era de muito valor para o rico estrangeiro que o contratara.

Na manhã seguinte, o grito de padre Arisztid ecoou pelos corredores da igreja. Corria desesperado, maldizendo o momento em que cedeu ao fascínio daquela relíquia maldita.

Pela janela, olhou para o tenebroso castelo que se erguia ao longe e chorou amargamente a derrota sofrida. Era agora um homem velho e sem nenhuma condição de enfrentar o monstro que habitava aquela fortaleza.

Falhou em sua missão diante de Deus. Por sua causa, o monstro do castelo estava novamente solto no mundo.

A RESSURREIÇÃO DO MAL

Vinte e três horas na mansão Weinstein. A mansão é uma propriedade muito antiga e suas paredes de pedra viram passar várias gerações daquela família. Na soturna sala de reuniões, quatro homens estavam reunidos ao redor de uma mesa sobre a qual repousava uma pequena urna. O patriarca, Lucian Weinstein, estava acompanhado de outros dois homens ricamente vestidos. Todos estavam na casa dos cinquenta anos de idade.

A expressão em suas faces transparecia ansiedade e temor. Sacando seu relógio de bolso, o senhor Weinstein conferiu a hora e rompeu o gelado silêncio:

_Senhores, como esperado, o ladrão que contratamos entregou a encomenda que pedimos. Como podem ver, a urna funerária que precisamos está diante de nós. Um de meus empregados já deu cabo do ladrão, de forma que apenas nós três e o antigo guardião da urna sabem de sua existência. Não temam, pois ele sabe que ninguém dará crédito a uma possível queixa. Não podemos fraquejar agora. Se algum de vocês quiser desistir, sabe que morrerá.

_ Iremos até o fim, Lucian! - disse o senhor Orlock, um sujeito calvo a quem o nariz adunco, magreza e roupas negras davam uma aparência de pinguim.

_Não tive o trabalho de recrutar um ladrão nos piores inferninhos do porto para desistir agora. – emendou – Creio que o senhor Murnau e o senhor Fisher concordam comigo, não é?

Os outros dois nada disseram, mas assentiram com um aceno de cabeça. Diante da aceitação geral, Weinstein renovou seu ânimo nefasto e puxando uma corda que abriu uma pesada cortina, fez entrar na sala um menino pequeno e maltrapilho.

De olhos arregalados e com andar vacilante, o menino entrou na sala carregando um bebê em seus braços. Weinstein adiantou-se nas explicações:

_ Encontrei estas criaturas vagando pela feira. O mais velho catava frutas quase podres no chão para se alimentar. Prometí-lhe comida e voilá! Aqui estão. Sigilo, meus caros, o sigilo está no cerne do que fazemos aqui. Está na hora. Já é meia-noite. Os demais sorriram em regozijo pela astúcia de seu companheiro de torpeza.

O menino, trêmulo, perguntou: _ Senhor, e a comida? Precisamos voltar para casa! Nossa mãe já deve estar nervosa...

Irritado pelo pedido do menino, Weinstein puxou-o pelo braço para perto da mesa, o que fez com que o bebê caísse e começasse a chorar. Fischer e Murnau seguraram o menino enquanto Orlock abriu a urna expondo as cinzas que ela encerrava. Os gritos do menino, que se debatia, e o choro estridente do bebê não ecoavam nas almas cruéis daqueles homens.

Enquanto Fischer e Murnau imobilizavam o menino e Weinstein levantava o bebê do chão, Orlock retirou um punhal do bolso do casaco e cortou os pulsos do menino. O sangue espirrou abundante, vermelho e escuro por sobre as cinzas. O caudaloso jorro de sangue criava uma mistura viscosa com as cinzas, que transbordava da urna espalhando-se por sobre a mesa.

Enfraquecido, o menino foi jogado ao chão. Descartado no momento em que a lama sanguínea começou a borbulhar. Do chão onde estava olhava para o irmão no colo de Weinstein, que mais parecia uma estátua de gelo, tamanhos eram a indiferença e o desdém estampados em sua face.

Na mesa, a fumaça das bolhas tomaram a forma de um homem esquálido.

O cadavérico homem nu desceu da mesa enquanto os demais se ajoelhavam e fitavam o chão, evitando seu olhar de fogo. Com uma voz que parecia vir do fundo de um poço, o cadáver vivo esbravejou com arrogância:

_ Tenho sede! Quero ser servido! - Em resposta, Orlock, sem tirar os olhos do chão, apontou para Weinstein, que ergueu o choroso bebê em oferenda ao morto-vivo.

O menino, já sentindo a visão escurecer, tentou erguer sua mão na direção do irmão. Mas sua tentativa foi vã. A força da vida já o abandonava e seu corpo não tinha mais condições de se debater como fazia seu espírito desesperado naquele momento. Nada poderia fazer para livrar o inocente do toque das longas unhas pontiagudas que lhe roçavam a pele enquanto as mãos esqueléticas o recebiam das mãos ofertosas de Weinstein.

Um sorriso macabro de dentes enormes tornou-se uma mordida profunda no peito ofegante do bebê até que a respiração cessasse. Antes que a escuridão eterna o tragasse, o menino ainda pode ver quando o vampiro lançou longe o corpinho exangue, como um bêbado que repele uma garrafa vazia.

Com o sangue escorrendo pelo canto da boca, o monstro dirigiu-se aos homens trêmulos que ainda estavam de joelhos diante dele:

_ O que esperam de mim?

Weinstein, o mais rico e pretensioso entre eles, respondeu:

_Queremos que nos conceda um pouco de seu sangue para que tenhamos a vida eterna.

_ Acham que merecem viver eternamente? - perguntou o vampiro, desdenhosamente, enquanto erguia a cabeça de Weinstein com a extremidade de seu longo indicador e olhava no fundo de seus olhos. O homem, forçado a encarar a assombração, tinha tremores nos lábios e sentia a pressão da unha que levantava seu queixo.

_ Acabaram de entregar duas crianças a um monstro... Acham que merecem a vida eterna? O sangue de Drácula jamais estará em seus lábios.

Ao terminar a frase, o senhor dos vampiros arrancou a cabeça de Weinstein fazendo-a rolar à frente dos outros três homens. Apenas Orlock levantou-se, impassível, enquanto Fisher e Murnau ensaiaram uma fuga apavorada, mas foram rapidamente eviscerados pelas garras monstruosas.

Parando diante de Orlock, Drácula sorriu contente e o homem dirigiu-lhe a palavra, gentil e polidamente:

_E um prazer revê-lo, meu senhor! Espero que tudo tenha saído do seu agrado. Imagino que queira banhar-se para livrar-se de todo esse sangue e vísceras. Na carruagem, tenho roupas que providenciei para o senhor. Tomei a liberdade de eliminar aqueles colarinhos altos que o senhor usava, fica mais atual. – disse o homem calvo com uma íntima tranquilidade.

_ Orlock, você será recompensado. Vejo que o sangue que te dei foi muito bem empregado. Depois me explique como conseguiu rastrear a urna e iludir estes imbecis para me libertar. Agora vou me preparar. Preciso sentir o ar da noite.

O VAMPIRO DA NOITE

Mais tarde, em uma animada taberna, apreciando a vida efervescente, vendo as danças e sorvendo o perfume das mulheres, o conde vampiro apreciava seu retorno ao plano dos vivos. Após ouvir de Orlock as atualizações dos últimos setenta anos, o príncipe das trevas concluiu que o padre que guardava suas cinzas alimentou-se delas. Afinal como explicar a longevidade anormal do sacerdote?

Também foi informado da existência de um livro escrito por uma bruxa. Um livro tão antigo quanto ele mesmo, mas que fora mantido em segredo pela família de um médico português desde a época da Inquisição.

_Mestre, um dos encantamentos deste livro chama-se "de lamia anathema". Um encanto que, se realizado, pode destruir de uma vez só todos os vampiros do mundo.

O olhar de Drácula faiscou ao ouvir tal frase. Sua própria existência era uma prova dos poderes da feitiçaria. Não podia correr o risco de ser destruído definitivamente por palavras entoadas à distância. Tinha de encontrar o tal livro e destruí-lo. Entretanto, seu olhar se acalmou inexplicavelmente, e ele concluiu:

_É provável que esse livro esteja em poder de outro vampiro e por isso o encantamento não foi realizado até hoje. Volte para o hotel e fique lá ate que eu precise de você. Quero viver esta noite. _ disse enquanto olhava para uma moça de sotaque francês que falava animadamente junto ao balcão.

Nada que lembrasse a cândida polidez de Mina Murray ou das muitas princesas que conheceu no passado. Mas hoje nenhuma delas seria de interesse. Hoje o vampiro queria fogo e sangue.

Orlock levantou-se em cumprimento à ordem recebida por seu mestre. Andando de forma maquinal dirigiu-se ao exterior da taberna, com o olhar vazio de quem está sob comando mental. Mesmo na ausência de Drácula ele tinha sido um servo fiel. Sua admiração pelo conde e o desejo pela vida eterna tornavam-no um escudeiro astuto e dedicado.

Os cálices de sangue do mestre que havia bebido há quase cento e cinquenta anos levaram-no até ali. Nos últimos setenta anos, investigou o destino das cinzas de Drácula, pois elas não foram achadas quando os estrangeiros o mataram em seu castelo. Ouvindo boatos, seguindo rastros e torturando possuidores de segredos, ele foi tecendo sua teia de informações.

Buscando por boa parte da Europa, acabou ironicamente chegando a uma igreja na Transilvânia. Uma igreja no ponto de partida de sua peregrinação. Uma igreja de cuja janela podia-se ver o castelo Drácula esmaecido à distância, no horizonte. Precisava de apoio para tirar as cinzas de lá. Passando-se por um rico cultor do ocultismo conseguiu a adesão de três inescrupulosos e narcisistas homens de fortuna. Foi fácil seduzi-los com a promessa de uma vida infindável.

Com a saída de Orlock, Drácula levantou-se de seu lugar e dirigiu-se à moça no balcão. Seu olhar fixo e inescapável cravado na mulher fez eriçar os pelos dos braços dela. O homem alto e magro tinha uma expressão cativante e misteriosa no rosto.

Andava de forma suave, como se nem tocasse o chão. Envolto em uma elegante capa negra tinha ares de quem pertencia à nobreza. Aproximando-se dela, ignorou os homens ao seu redor e perguntou-lhe:

_ Voulez-vou danser avec moi, mademoiselle Valerie? – a voz profunda e o olhar fixo capturaram sua vontade e ela só pôde dizer que sim. Aceitou o convite do estranho para dançar.

Os homens com quem conversava esboçaram uma reação, mas foram desencorajados tanto pela aceitação por parte da moça quanto pelo olhar que o estranho lhes lançou. Um olhar carregado de crueldade e autoconfiança, um olhar que deixava claro que ele não era um homem qualquer, mas alguém com grande capacidade de causar danos.

O corpo quente e macio da mulher trazia-lhe lembranças do tempo em que ainda era apenas um homem. O vampiro suspirou ao sorver o perfume dos cabelos de Valerie. Resquícios de sua existência mortal que nunca o abandonaram. Afinal seu nascimento para as trevas se deu apenas pela busca do prazer. O prazer de exercer o poder. O prazer de prevalecer sobre outros seres. Enxergava-se como alguém tão magnífico que não poderia ser entregue à terra e aos vermes.

Sempre foi sobre ele mesmo. Sua existência, sua magnificência e seu egoísmo. Nada além disso. E para perpetuar a obsessão pela própria existência, achava que todo artifício era válido. Nada nem ninguém tinha valor bastante para interromper seu caminho através do tempo. Mesmo que nesse caminho deixasse atrás de si um rastro de cadáveres drenados, de corpos de crianças mortas com os olhos arregalados de medo, de famílias exterminadas e mulheres amorosas tragicamente iludidas. Apenas sua satisfação importava.

Os ocupantes da taberna viram quando Valerie saiu de braços dados como estranho. Sorridente, olhava para ele como se estivesse vendo o mais belo dos príncipes. Estava encantada por aqueles olhos cinzentos como o mar sereno. Segundo uma testemunha próxima, o estranho a convidou para “um passeio à luz da lua cheia.”

Pouco antes do nascer do sol um leiteiro deu o alarme, aos gritos: o corpo lívido de uma mulher loira foi encontrado com os olhos verdes, sem luz, fitando o céu. No pescoço de Valerie, duas pequenas marcas de mordidas. Em seu corpo nem uma gota de sangue.

A BRUXA

_ Sabe o quanto aprecio o sangue humano, Orlock. O sangue das mulheres e o sangue dos mais jovens são os mais agradáveis para meu paladar. Ou talvez por serem os que sentem mais medo. Quando eu enfim te transformar e você for, de fato, um imortal, saberá a maravilha que é o perfume inebriante do medo. O medo dos mais indefesos e o sabor de seu sangue... – divagava Drácula, pensativo diante de seu servo.

Orlock ouvia a lição do conde imaginando quando ele finalmente seria um vampiro. Mas naquele momento, por seu próprio interesse e pela devoção ao mestre, ele deveria ser a consciência do dândi imortal.

_ Meu senhor, como faremos para localizar o livro da bruxa? – perguntou, Orlock.

Drácula, reconhecendo-lhe a razão decidiu:

_ Começaremos achando uma bruxa, caro Orlock! Quem melhor para

conhecer a obra de uma bruxa, senão outra bruxa? Estou certo de que entre elas deve haver alguma que já ouviu falar sobre esse livro.

Naquela mesma noite o conde perambulou pelo maior cemitério da cidade. Sua intuição lhe dizia que seria provável encontrar uma feiticeira recolhendo ossos em uma tumba ou realizando seus artifícios mágicos. Sua intuição não o enganou. Depois de muito procurar, ele avistou o vulto de uma mulher envolta em um manto vermelho e rodeada de velas acesas.

A mulher estava de costas, mas ainda assim ordenou-lhe que parasse:

_Fique onde está, vampiro! – ordenou com entonação firme e calma. O conde espantou-se com a total ausência de medo na inflexão daquela voz.

_Como sabe quem eu sou sem ao menos se virar, mulher? – perguntou um atônito conde Drácula percebendo-se incapaz de se mover.

A mulher levantou-se e o encarou com ar de superioridade:

_Sei muitas coisas sobre vocês, criaturas da noite. O seu tipo é apenas um dentre muitos. O que você quer de mim? – disse a mulher mortal, sem nenhum temor do ser imortal dominado a sua frente.

_ Quero saber onde está o livro que contém o de lamia anathema. Foi escrito por uma de suas irmãs. Sei que apenas vocês, entre todos os mortais, podem me dizer o paradeiro do livro.

A bruxa riu baixinho. Os olhos negros assumiram uma expressão divertida.

_Então o grande Conde Drácula está com medo de algumas palavrinhas escritas por uma bruxa morta há séculos? Um imortal com medo de uma mortal já morta! Há!Ha!Ha! – bateu palmas, divertindo-se.

_Eu posso dizer-lhe onde está o livro, mas o que eu ganharia em troca? Você não pode me ameaçar, já que não pode me fazer mal algum. O que me oferece, vampiro?

_ Posso oferecer um pouco de meu sangue para que sua vida se prolongue ainda mais. – disse o vampiro.

_Aceito o trato. Colherei seu sangue. Mas saiba que você ficará aí até que eu esteja longe. Não se preocupe. Te liberarei antes do amanhecer.

O NOVO MUNDO

Do outro lado do oceano, no Rio de Janeiro, uma menina acorda ofegante e coberta de suor. Sonhara com um enorme morcego e um navio. Encolheu-se, enrolando-se nas cobertas e olhando a lua pela janela. Os sonhos estranhos não podem voltar.

Não queria ter o mesmo destino de sua avó e morrer internada em um hospício por causa de sonhos e de um livro. Não contaria para ninguém, nem para a sua querida tutora, a Duquesa Magdalena.

Em Berlim, o Conde Drácula e o senhor Orlock começavam uma viagem ao Novo Mundo. Um lugar distante chamado Brasil.

FIM

TEMA: DRÁCULA