A Cidade Que Sumiu

Um adeus prematuro separou duas almas destinadas à comunhão eterna, no pacato povoado de Alto Recanto, onde, às margens do rio Morumar, Marina acenou para o amado que partia na travessia rumo à capital. Rafael trajava pouco além da esperança que o impulsionava a seguir o sonho de uma vida melhor, seduzido pela promessa de riqueza, deixou para trás tudo que lhe era querido, jurando voltar por Marina, mas não para permanecer.

Exatamente um ano após, no mesmo lugar, Marina sentou-se sob uma árvore para observar além do rio. Era uma tarde agradável, o vento suave fazia farfalhar os galhos e o mato que crescia verde e saudável nas margens do rio. Ela já havia concluído toda sua lista de tarefas: Já apanhara os ovos no quintal, lavado as roupas, já auxiliara também a mãe no preparo do almoço. Era uma moça esforçada, conhecia os seus deveres e não lhe eram privados os seus direitos, naquela manhã pedira para ser liberada cedo, sua esperança lhe dizia que uma surpresa a aguardava na outra margem do rio e ela, tão sensitiva, seguiu suas intuições. De olhos vidrados nas calmas águas do rio ela se permitiu aos mais sensacionais dos devaneios, ainda que as cartas para Rafael jamais tivessem recebido resposta, mesmo que no seu silêncio coubesse muita desesperança, ela escolheu sonhar. Sem perceber, o sol partiu para adormecer atrás dos montes e a noite chegou bela e estrelada, também fria. Marina recolheu os joelhos para si e os abraçou, recostada no tronco da árvore, soltou um suspiro sofrido antes da lágrima que rolou no rosto afável, silenciosa tão quanto dolorosa. A noite trazia a morte da promessa que fizeram, uma vez que decretara abandonar a ideia tola de aguardá-lo retornar, quando Rafael já deveria tê-la esquecido nos braços de outra. Buscou refúgio nas estrelas, admirar a vastidão do espaço ajudava a melhorar sua perspectiva sobre tudo, transmutava em quase insignificante sua vida como seus problemas, minúsculos diante do infinito indomável. Foi apenas num momento de fraqueza, quando estava à beira da epifania, que a maior e mais brilhante estrela do céu despencou, bailando sua cauda celeste. Fechou os olhos, rogou com a alma o pedido mais puro, desejou o seu amor, juntou as mãos diante do peito e apertou-as unidas, acreditou com fervor. Quando abriu os olhos, a estrela estava ainda maior, um clarão a cegou, seguido do estrondo que anunciou a queda. Não parecia ter caído muito distante, nos arredores da cidade havia muita vegetação selvagem protegida pelas muitas lendas que afugentavam a maioria que cogitava perambular por aquelas partes. Ela pensou em voltar para casa, contar aos pais, notificar alguém, não podia ter sido a única a escutar ou ver, mas mudou de ideia, talvez perdesse a grande chance de ver de perto uma estrela caída, imaginou uma pedra grande e brilhante que lhe traria riqueza e boa sorte para o resto da vida, mas para isso, deveria ser a primeira a alcançá-la, então correu. Ela fez seu caminho por entre a mata escura, arranhando-se nos galhos pontudos, vez ou outra tropeçava numa das inúmeras raízes e troncos espalhados, a visão que criava da estrela era a única razão pela qual não retrocedia, e após certo tempo e esforço, alcançou um terreno plano, os vestígios do grande impacto guiavam-na até o epicentro onde havia uma grande cratera fumegante. Diante da densa fumaça era impossível enxergar o fundo da cratera, obrigando-a a se aproximar cautelosamente da sua margem. Com mais atenção, Marina pôde perceber que, escondidas na fumaça, esferas negras flutuavam próximas, cerca de um palmo umas das outras, numa ordem de distância impecável.

“Marina...” A jovem escutou, a princípio foi difícil distinguir de onde vinha a voz, mas sobre o dono dela não teve dúvidas desde a primeira sílaba, virou-se, seus olhos se encheram de lágrimas, era ele, era Rafael, seu amado Rafael, de volta para os seus braços finalmente. Ele estava próximo, de braços abertos, e ela correu para alcançá-lo, saltando em sua direção. Quando estava prestes a tocá-lo, foi arrebatada pelo que pareciam ser garras que vieram da cratera, tragando-a, abafando seus gritos dentro do enorme buraco negro.

— Veja bem, é natural que desaparecimentos dessa natureza ocorram nessas cidadezinhas afastadas, muitas das vezes a pessoa sofre algum tipo de acidente no meio do mato ou é levado pelo rio. A melhor estratégia agora é ficar de olho no noticiário da cidade vizinha onde corre o Morumar, quem sabe eles encontram o corpo dela boiando por lá. – O delegado não poupava a si ou aos outros das próprias falácias carregadas duma astúcia esquiva caricata da nata refém do pecado da preguiça, gastaria todas as palavras antes de levantar um dedo para resolver um problema.

— “Veja bem” uma porra! Se a filha do cunhado do irmão do prefeito desaparece sem explicações e fica por isso mesmo, que porcaria de polícia eu tenho? Ninguém vai se sentir seguro por aqui, se os sóbrios estão desaparecendo, que há de acontecer com os bêbados que são a nossa maior fonte de renda? Já imaginaste uma cidade que não consome álcool? Barbárie! – Ainda que levemente distanciado do foco do problema, o prefeito estava alterado e exigia um desfecho.

— A pois, não foi a primeira e não será a última, não faltam jovens de espírito tolo e aventureiro, eu culpo esse sistema educacional defeituoso que estimula a curiosidade das crianças, no meu tempo não era assim. – Ele parecia decidido a resistir às ordens do prefeito, quase deitado na cadeira, com as pernas sobre o banco.

— Petulante! Não coloquei-te na cadeira de delegado para que fique aí juntando banha e poeira. Não esqueça-te que com a mesma facilidade com qual o coloquei, posso arrancá-lo daí. Quero respostas, respostas! Tens até a semana véspera do festival para resolver o caso ou considere-se perdido!

No sítio Caranto, residência da família de mesmo nome, o patriarca aguardava na varanda, embora sua velha cadeira de balanço já não balançasse, sem alegria para sorrisos, os cantos dos pássaros recordavam-lhe a filha perdida. De lá ele não saía, de olhos grudados no horizonte além da sua propriedade, vez ou outra sua esposa aproximava-se com o refil do cachimbo, aguardente, café e os pratos de comida que terminavam como banquete das galinhas que se amontoavam para cear galinha cozida. Partiria num instante, não fosse a maldita perna que mal aguentava dez passos sem latejar como um inferno, preso na condição de espectador, suspirava fumaça na varanda. A noite caiu despercebida pelo velho que vacilou numa pestana involuntária, despertado pelo clarão no céu que durou menos de um segundo e então, um barulho de impacto. Afonso esperou pela esposa que certamente havia de ter acordado assustada com o alvoroço, mas esperou em vão por vários minutos silenciosos até decidir verificar dentro de casa, levantou-se com esforço da cadeira, as pernas careciam de exercício, rumaria casa à dentro não fosse...

“Papai...” A voz da filha que o fez se virar. Ele a avistou, no limite do seu cercado, apoiada no portão de madeira, parecia fraca demais para caminhar. Esforçou-se o dobro para ir ao seu encontro, mancou, sentiu os ossos do joelho a colidir, num tormento, mas não cessou. A cada passo ele dizia o nome da filha. “Marina...” E a via mais claramente, pálida, com os cabelos molhados e vestes rasgadas. “Marina...” Avistou algo laçá-la pela cintura por trás e então ela foi puxada, engolida pela escuridão. Gritou seu nome e apressou os passos. Não encontrou a filha, apenas rastros de teia de aranha pelo chão, no centro o rastro maior do que parecia ser o resultado de algo arrastando a doce Marina para longe. Olhou em volta, o desespero lhe inibiu o raciocínio, quiçá seus reflexos, não viu a enorme pata preta e esguia de ponta afiada que cruzou-lhe o tórax numa estocada e o tragou. A última visão foi o corpo da filha empalado por outro apêndice como uma marionete, carregados pelo grande aracnídeo que os levava para longe.

Às vésperas das festividades que costumavam atrair centenas de visitantes que vinham da capital, o delegado foi destituído do cargo pela ausência de avanços nas investigações sobre os desaparecimentos. A estimativa para o evento era muito abaixo do esperado e o vislumbre do fracasso prejudicou fortemente a campanha do prefeito que em pouco tempo disputaria a reeleição. O medo dos cidadãos de Alto Recanto matou qualquer clima festivo e foi instaurado espontaneamente um toque de recolher que os afastava das ruas à noite. Os mais abastados que podiam, partiram, ainda havia gente de fé, mas era minoria. Pouco depois do desaparecimento do marido, Antônia Caranto também sumiu sem deixar rastros, e algum tempo depois dela, a mulher do irmão do prefeito avistou uma estrela cadente e desejou rever sua irmã e família...

Álefe
Enviado por Álefe em 20/02/2020
Reeditado em 24/02/2020
Código do texto: T6870834
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