O monstro do armário embutido


Miguel Carqueija



Eu tinha nove anos quando pela primeira vez constatei a existência de monstros nos armários embutidos das velhas residências. Nossa família havia mudado recentemente e eu havia ganho um quartinho todo meu. Todos os quartos naquela velha casa de Santa Tereza ostentavam armários embutidos. O meu não era tão grande, mas era anormalmente fundo.
Eu o tinha visto e examinado, extasiado, logo no dia de nossa mudança. Era feito em madeira de lei, envernizada, e encontrava-se ainda em ótimo estado. Existiam os gavetões em baixo, mas eu, sentindo a firmeza do lenho, entrei no camiseiro, descalço, e fui até o fundo, tatear a madeira, ali coberta por papel de parede, pensando se não haveria uma passagem secreta. Tolice, pois essas coisas só acontecem nos filmes — pelo menos é isso que todo mundo acha. Só que mais tarde eu soube que além daquela parede o que existia não era outra casa, e sim rocha sólida, rocha da encosta do Morro de Santa Teresa. Até poderia haver uma passagem secreta.
Naquele dia, é claro, o armário encontrava-se vazio. Logo, porém, naquela confusão de arrumação de mudança, meus pais e eu pusemos lá a minha roupa, o que tornou pouco visível o fundo. Ficou claro para mim, porém, que o espaço era suficiente para que uma ou duas pessoas se escondessem atrás das roupas. Ótimo para as brincadeiras que minha irmã e eu aprontássemos.
Até aí tudo bem. Na terceira noite, porém, já mais ou menos assente a poeira da agitação, algo começou a assaltar o meu pensamento. De repente, a ciência daquele espaço vazio atrás das roupas passou a me incomodar. Deitado em minha cama, eu enxergava na penumbra as portas do armário e a minha imaginação se agitava. Era como se alguma presença estranha estivesse lá por dentro, me vigiando. A premonição tornou-se opressiva, sinistra. Eu ofegava, meu coração batia acelerado, e comecei a suar frio. Não gritei para não cair no ridículo, mas a minha vontade era fugir daquele quarto.
Quanto tempo fiquei assim, confesso que não sei. Não tinha nenhum Haroldo para conversar comigo e me infundir coragem. Só me restava tremer e rezar. Acabei adormecendo de puro sono, mas despertei mais tarde, sobressaltado e ainda apavorado. Há quem diga que é preciso ter a coragem de enfrentar os próprios terrores. Assim, não aguentando mais, acabei por me levantar e acender a luz. Então abri o armário, afastei as roupas e falei: — Se tem algum monstro aí, apareça! Apareça se for homem!
Bem, ele não apareceu. Crianças têm também sua dose de pragmatismo, de modo que dei de ombros e apaguei tudo de novo retornando à cama. Deitei-me, ajeitei a coberta e suspirei aliviado. Já me preparava para adormecer, quando senti a súbita queda de temperatura.
Aterrorizado, sentindo definitivamente que não estava sozinho, levei a mão ao interruptor do quebra-luz, na mesinha de cabeceira. Foi quando a coisa gelada e pegajosa segurou o meu pulso, paralisando-me de terror.
— Eu não quero luz — disse a voz cavernosa, de outro mundo.
— Quem é você?
— Eu sou o monstro do armário. Eu não gosto de luz! Não acenda essa luz!
Eu tremia e me esforçava por gritar, chamar pelos meus pais, só que a voz não saía. Era horrível. Aquela gosma me segurando era a experiência mais asquerosa pela qual eu já passara. Por fim, depois de muito me debater e esforçar, consegui murmurar:
— O que você quer de mim?
— O seu medo. Eu me alimento do medo das crianças nos quartos escuros. Quanto mais medo vocês tiverem, mais poderosos nós seremos.
— Vocês vêm de onde?
— Do outro universo. O universo das sombras. Este seu universo será de sombras também, quando os sóis se apagarem. Então vocês serão também uma raça das sombras, e servirão à nossa. E o medo de vocês alimentará a todos nós.
Mamãe sempre dizia que eu tinha um anjo da guarda e que devia amá-lo muito e recorrer a ele. Só que eu nunca me lembrava dele. Naquele momento eu me lembrei e pedi a sua ajuda, só em pensamento, pois não conseguia falar e nem queria revelar o meu trunfo. E por mais difícil que seja de acreditar, brilhou uma estranha luz no quarto, cintilando pelo ar. Meu pulso foi libertado. A monstruosidade recuou, arrastou-se pelo chão, ou melhor, escorreu-se, e eu voltei a procurar o interruptor. Acendi a luz "normal" e aquela outra, azul e sobrenatural, desapareceu. Abri a porta do armário. Não havia nada lá, fora as roupas. Nenhum monstro linguarudo.
Passei a dormir com abajur aceso e, depois de muita insistência (meus pais não acreditavam em monstros) consegui que eles instalassem uma lâmpada no interior do armário embutido. Treinei-me também para não ter medo. De mim eles não iriam se alimentar.
Cresci obcecado por assuntos misteriosos e li inúmeros livros, coisas estranhíssimas e de escassa credibilidade, sem encontrar uma explicação satisfatória para aquele fenômeno.
Até que um dia esbarrei com uns tratados raríssimos, que só localizei em latim, o "De vermis mysteriis", de Ludwig Prinn, e o "Necronomicon", de Abdul Al-Hazred. E lá estavam, sem tirar nem por, os seres gosmentos e gelados, que de outra dimensão nos espreitavam sem cessar, numa eterna vigília. Espreitando... espreitando... até que um dia se abram as portas dimensionais e a Terra venha a ser dominada, e a humanidade destruída pelas forças das trevas.
A não ser, é claro, que os nossos anjos-da-guarda possam detê-las para sempre.



imagem do filme "Monster in the closet"
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 20/02/2020
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