Oiteiro
OITEIRO
A reunião anual da família no sítio da bisavó Zenia era tradição consolidada e, desde quando consigo recordar, faço parte desse evento. Eram dois dias de confraternização, tempo em que revia alguns primos distantes e podia me aventurar subindo em árvores e deliciar-me com as mais diversas frutas. O meu maior desafio sempre fora a majestosa árvore mangueira, enquanto os meus primos escalavam-na, faltava-me coragem para ir além do primeiro galho grosso de onde eu os observava, torcendo pelo seu sucesso ao apanhar as mangas mais suculentas de toda a roça, salivando ansiava por tê-las nas mãos e sempre retornávamos com o suficiente para o suco que regava a ceia da tarde.
Recordo-me de que ao cair da primeira noite implorávamos pelas histórias que a bisavó contava para entreter-nos, todos acomodados nos bancos de madeira ou até mesmo no chão gramado na frente da casa, evitando as urtigas com todo cuidado.
Houve uma noite em particular que culminou numa tragédia que causou a ruptura jamais reparada em toda família. Na hora da história a bisavó parecia indisposta devido a uma repentina fraqueza que sentira no corpo cada vez mais fragilizado pelo tempo, na ocasião, Zé, que era como um filho para ela e para nós um tipo peculiar de tio, aceitou substituí-la para contar a história. A princípio estávamos receosos, somente o mais novo aguardava esperançoso pela história.
“No topo do oiteiro...” Ele começou, enquanto enrolava seu fumo malcheiroso. “Perto lá do jenipapeiro tem uma toca onde vivia um canibal.” O silêncio era rei e a curiosidade, rainha. Estávamos todos inclinados para ouvi-lo. “Nome dele era Gerúndio quando ainda era gente. Depois que virou bicho a gente chamava só de Mur.” Ele pausou para ouvir a pergunta do primo mais novo, questionava o apelido. “Era o barulho que ele fazia, ora. Gritava e gritava toda vez que alguém chegava perto da toca dele.” Deu um trago no fumo e soprou a fumaça para cima. “Depois de uns tempos veio um padre de longe, se num me engano veio do sul, só pra consertar o Mur.” Sorriu de canto. “Era corajoso, disse que subia o oiteiro sozinho e só voltava com o bicho domado e pronto pra sentar na mesa e comer feito gente, comida normal. Ofereceram uma carabina, mas ele negou.” Deu de ombros. “Esperaram o padre descer e nada, mais um dia... Nada. No terceiro dia subiram para procurar. Dizem que quando acharam o padre ele tava deitado perto do jenipapeiro, fedendo já, com a barriga aberta e as tripas cheias de mosca. Enterraram por lá mesmo. Até hoje tem a cruz que marca o túmulo do padre, mas o Mur nunca foi encontrado.”
Dominados por curiosidade e medo fomos colocados para dormir, mesmo sabendo que nenhum de nós pregaria os olhos naquela noite. Resisti à tentação de esgueirar-me para fora do quarto e acordar o primo mais velho, ele certamente poderia dizer que era tudo inventado, daria sua palavra, então eu dormiria bem, mas não o fiz.
Pela manhã eu tive um pesadelo depois de um cochilo descuidado, despertei antes da hora do café, foi o desjejum mais silencioso que eu vira em anos. Ao término do café rumamos para o quintal onde ficava a mangueira, nos reunimos ainda em silêncio, ninguém falava no assunto embora quiséssemos.
“Vai subir até o topo dessa vez? Você é o único que não tem coragem.” Quando o silêncio foi quebrado, fui alvo de uma provocação vinda de um primo que tinha a mesma idade que eu.
“Tenho sim!” Respondi com maior volume do que convicção.
Impulsionado pelo receio de ser desonrado como “sem coragem” eu escalei a maldita árvore até onde pude e, aos gritos de comemoração, os outros vieram ao meu encontro. Do alto da mangueira eu pude ver o mundo de um jeito que jamais tinha experimentado. Me sentia alto, livre, destemido. Admirei o trem que cortava a maré que banhava o subúrbio da cidade, os muitos barcos catamarãs na marina distante, as bananeiras que pareciam tão pequenas... O oiteiro, erguendo-se austero além do cume da mangueira, obstruído por tantas árvores que mal podia ver o chão.
Lá ficamos por horas, sentados nos galhos, conversando e chupando manga. Em poucas horas estaríamos rumando para casa, faltava pouco para ouvir os berros que nos chamariam para banhar e colocar roupas limpas.
“E se a gente fosse lá procurar a cruz?” Sugeriu o mais velho, de repente, apanhando-nos todos de surpresa.
“É tudo mentira isso, vamos só cansar e sujar a roupa subindo o oiteiro.” Retrucou o outro.
O terceiro puxou assunto sobre pipa e após um breve silêncio de constrangimento o assunto da cruz foi deixado para morrer com o tempo. A mãe do mais novo foi a primeira a gritar e já o fazia com ameaças, ele se apressou em descer, os outros o seguiram, restando apenas eu e o mais velho que parecia imerso nas mais profundas reflexões, no fundo eu sabia exatamente o que o perturbava.
“Não vai descer?” Ele perguntou, finalmente, preparando-se para descer.
“Agora não.” Eu respondi, tentando mascarar o fato de que não fazia ideia de como faria para descer.
“Eu vou lá ver.” Disse ele, como se estivesse confessando.
“Não precisa ir agora, vamos todos juntos depois.” Tentei.
“Num posso aguentar até o ano que vem, vou lá ver agora.” E com isso ele desceu da árvore, terminando num salto invejável.
Tentei seguí-lo, mas não pude, minhas mãos não estavam firmes como antes e minhas pernas tremiam involuntariamente. Apenas o acompanhei com os olhos quando ele começou a escalar o oiteiro, até que as árvores o cobriram e nada pude ver. Voltaria a vê-lo apenas depois num trecho descoberto já próximo do jenipapeiro. Ele prosseguiu até desaparecer mais uma vez. Não poder avistá-lo me causava ansiedade, tudo o que eu podia ver era o farfalhar das árvores e o barulho distante dos passos sobre as folhas secas. Até que uma visão roubou a minha atenção, guardo até hoje com detalhes na memória, uma figura de vestes negras caminhava próxima ao jenipapeiro no trecho descoberto, numa das mãos parecia segurar um cordão e com a outra segurava a barriga, cambaleando atrás do meu primo. Pensei em gritar, mas o medo me paralisou, a última das minhas intenções era me tornar alvo daquela coisa. Por longos minutos nada pude ver ou escutar acerca do que se passava no oiteiro e então, a criatura passou arrastando ele pela perna, arrastando o meu primo que estava desacordado, ensanguentado, que terrível visão! A criatura que andava curvada, despida senão pelos tufos de cabelo pelo corpo e cabeça, veio seguida pelo padre que ainda empunhava o terço e cambaleava na tentativa de alcançá-los no caminho para a toca.
Não sei se por coragem ou excesso de medo eu fiz um movimento para descer, escorreguei no galho e bati a cabeça noutro antes de cair pesado no tapete de folhas que cobria o pé da árvore. Minha cabeça atordoada zunia, meu corpo desobediente latejava, mas permanecia imóvel. Alguns segundos de tormento se arrastaram enquanto eu tentava gritar por ajuda, no entanto o ar escapara dos meus pulmões doloridos na queda. Lembro-me de ver o padre descendo o oiteiro, inclinado como se os pés grudassem no chão sem necessidade de apoio, a mão esquerda tentava cobrir o abdome escancarado, na direita trazia um terço envolto nos dedos, seus olhos mortos foram a última coisa que vi naquele dia, enquanto escutava e sentia um fétido hálito quente baforar próximo da minha orelha.
Meu primo foi encontrado morto no oiteiro, no laudo a causa da morte atestava uma queda, embora eu saiba de toda a verdade. Dez anos após o ocorrido eu documento a verdadeira versão do que ocorreu, antes de retornar à casa da finada bisavó.