Um forte tom alaranjado tingia o céu, avisando que o longo dia de trabalho em nossa pequena propriedade rural tinha chegado ao fim. Estávamos exaustos. Quando chegamos em casa, avistei minha mãe, que esperava na porta para garantir que só entrássemos depois de limpos e o cheiro de sopa de feijão e chouriço nos animou. As noites eram sempre iguais, depois da sopa sentávamos na soleira da porta e, enquanto minha mãe cerzia nossas roupas, meu pai falava de coisas que talvez só tivessem acontecido em sua imaginação. Assim ficávamos até a hora de dormir. Nós nos deitávamos muito cedo e o cansaço do trabalho pesado garantia que dormíssemos a noite toda.
Naquela noite, porém, despertei pouco antes da meia noite com a sensação de que havia algo de ruim me espreitando. Assustado, percebi um vulto se esgueirando num movimento rápido para baixo do meu cobertor, antes que o toque gelado em minha pele me fizesse gritar, percebi que era meu irmão mais novo.
— Posso ficar aqui com você? — Pediu com voz de choro e completou — Estou com medo.
Não respondi, mas também não mandei que ele voltasse para a cama. Então ficamos ali, os dois envoltos num silêncio pesado, rompido apenas pelo tic-tac do relógio que, na sala, costurava o tempo, apavorados demais para falar, até que a porta de nosso quarto foi aberta com um estrondo. Era meu pai. Percebi que seu rosto tinha uma palidez mortal e que o movimento do lampião denunciava um forte tremor em suas mãos. A luz que tremeluzia no quarto, revelava que meus outros irmãos também estavam acordados e assustados.
Sem qualquer explicação ele ordenou que o seguíssemos e nós obedecemos. Já no quintal, ele gritou ordens para cada um de nós antes de desaparecer na escuridão e eu me deparei com uma noite acinzentada e pálida, estranhamente fria para aquela época do ano. Nuvens escuras e pesadas cobriam a lua, as árvores do pomar nos fundos da casa moviam-se como fantasmas negros e uma forte ventania varria tudo que encontrava pela frente, formando um turbilhão de poeira que entrava por meu nariz e embaralhava minha visão enquanto fazia o galo-do-tempo no topo de nossa casa girar gemendo como se sentisse dor.
Os animais haviam escapado de seus cochos e baias e corriam enlouquecidos por todos os lados, tão assustados como se assombrados pela própria morte. Os cavalos empinavam e relinchavam enquanto batiam suas patas com força nas paredes do estábulo, as vacas se lançavam contra o arame farpado mugindo de dor pelas feridas que se abriam em seu couro grosso. Os galos cantavam como se o dia estivesse amanhecendo, as aves batiam as asas e emitiam sons estranhos e ameaçadores enquanto vagavam desorientadas pelo terreiro.
Chorei de medo ao ver Lady, nossa cadela sempre tão mansa, ganindo em direção ao céu. Corri em sua direção implorando para que ela parasse, mas para minha surpresa ela avançou sobre mim, me derrubando no chão e me mantendo ali com as patas sobre meu peito enquanto me encarava com olhos cruéis, e de sua boca escorria uma espuma branca e abundante. Ela estava prestes a abocanhar meu rosto, eu tremia sem forças para afastá-la, então por um breve momento ela silenciou antes de uivar longamente e disparar em direção ao campo, olhando fixamente para a lua como se pudesse alcança-la. Foi só então que olhei para o céu e percebi que as nuvens haviam se espalhado para revelar a lua que naquela noite não brilhava gorda e branca, mas estava envolta por uma névoa vermelha, como se de seus buracos jorrasse sangue.
Quando consegui me acalmar, me lembrei da ordem que meu pai havia me dado e corri em direção ao cocho dos porcos, ali o clima também era de terror, os animais pareciam tão enlouquecidos quanto os demais. Porém, havia algo ainda mais perturbador: a leitoa, que chamávamos de Filó, guinchava de forma pavorosa. Com cuidado, aproximei-me e percebi que ela estava parindo. Eu já tinha visto muitos animais do sítio parindo, mas nunca tinha visto nenhum sofrer, para mim, o sofrimento do nascimento era coisa de gente, não de bicho. Fiquei paralisado ao perceber que a pobre leitoa parecia ‘rebentar enquanto fazia força para expelir os filhotes de dentro de seu corpo, seus olhos estavam esbugalhados e prestes a saltar de sua cabeça. Continuei ali, sem saber o que fazer, até que vi surgir um ser gordo e rosado envolto em placenta e sangue. Era um ser grotesco, um único corpo com duas cabeças que, mal romperam a placenta, se colocaram a sugar as úberes de Filó com ferocidade.
Ao ver aquilo, vomitei a sopa da janta e tremendo corri para fora. Tentei contar para meu pai sobre o porco de duas cabeças que Filó havia parido, mas ele estava preocupado demais com tudo que estava acontecendo naquela noite e ainda tínhamos muito trabalho pela frente.
Quando amenheceu, o mundo começou a voltar ao normal. Guardamos os animais e arrumamos da melhor forma possível as cercas para evitar que fugissem novamente. Foi só depois de muito tempo, quando a manhã já avançava, que meu pai e meus irmãos entenderam o que eu os tinha contado. Diante daquela notícia, mesmo cansados, todos correram para o cocho para ver aquela que seria a maior aberração daquela noite de estranhezas.
Quando chegamos lá, nos deparamos com a cena que me fez congelar até o fundo da alma. Sobre a palha encharcada de sangue, a leitoa estrebuchava enquanto o filhote de duas cabeças devorava suas carnes. Aquelas pequenas bocas de dentes afiados, em vez de sugar o leite materno, se refestelavam saboreando a agonia da mãe.
O olhar do meu pai turvou-se por um instante, então ele apontou a arma em direção a Filó e com um tiro acabou com o seu sofrimento.
Ao perceber o que tinha acontecido, o filhote virou suas duas cabeças em nossa direção e, com um olhar maligno, nos atacou. Mas antes que aquilo nos alcançasse, meu pai explodiu com um tiro certeiro primeiro uma, depois a outra cabeça, fazendo o bicho tombar ali mesmo.
Passado o susto, salgamos e guardamos o corpo com uma das cabeças quase esfaceladas pelo tiro. Meu pai — homem prático — disse que era bom guardar, porque só contando, ninguém acreditaria.