BRANCO

No dia que chegou a notícia da morte da melhor amiga de mamãe, ela ficou sentada no sofá por muito tempo em silêncio. Olhava pro chão e nada. Dona Cláudia era sempre presente na vida de mamãe e ajudava ela em tudo. Inclusive foi o ombro amigo no período que ela se separou do meu pai.

Ele foi morar em Minas. Nunca mais tive notícias. De vez em quando manda um áudio no whatsapp e quando me dá vontade respondo. Já meus irmãos moram todos num canto do mundo. A mais velha nos EUA e o do meio vive viajando pela empresa.

Meu casamento também acabou há três anos e decidi morar com mamãe. Só eu e ela. Trabalhava consertando computadores em casa e ela vendia produtos de limpeza. Vida difícil, mas honrada.

Meus irmãos nunca trataram a mãe muito bem e depois que viajaram depositavam na conta dela uma "ajuda mensal" com intuito dela não morrer de fome. Porém quando falavam por telefone (isso é, quando lembravam que tinham mãe), o assunto era quase o mesmo:

"Mãe, a senhora tem que pensar mais em si mesma. Esquecer o pai e viver a vida. Compra umas roupas com o dinheiro que depositamos."

Porém eles não sabiam que mamãe não estava mais na antiga casa e estava morando de aluguel. E lá ela vendia os produtos para os vizinhos. O dinheiro que recebia servia boa parte para o aluguel. O restante era dividido nas contas de água, luz, na internet da vizinha, compras do mês e remédios.

Sim. No posto de saúde não tinha os remédios de mamãe. Ela foi adoecendo muito depois que se separou, e o médico disse que se passasse mais nervoso poderia desenvolver o Alzheimer. O divórcio fez muito mal à sua mente. As brigas e supostas traições a abalaram demais.

Ah sim. Ia me esquecendo: a morte de Dona Cláudia. Calma, eu chego lá.

Quando fui morar com mamãe perguntei porque ela deixou a antiga casa. Disse ela que não queria lembrar de mais nada da sua vida passada e só desejava paz e viver sossegada. Ficamos de aluguel por alguns meses. Porém eu acabei arranjando uma briga com o dono da casa, haja vista toda vez ele chegava bêbado e fazia uma algazarra no quintal. Não deixava ninguém dormir e perturbava todo mundo:

"Eu vou despejar vocês tudinho, sua cambada de..."

Não gosto de palavrão.

Desci de noite, pedi silêncio. Ele me bateu. Revidei. Mas bater num idoso de setenta anos não foi minha melhor idéia. Fomos despejados.

Perguntei pra minha mãe se ela pelo menos pensou em alugar a antiga casa. Que nada. Apenas fez as malas e partiu. Os móveis ainda estavam lá. Paguei o carreto com o dinheiro que minha irmã depositou e retornamos.

A casa estava um nojo. Mandei passar uma massa corrida aqui e ali. Pintei todos os quartos. Compramos outros móveis e reformamos a entrada. Mas mamãe não ficou contente. Seu sorriso era contido e sempre mudava de assunto quando via que eu me empolgava a falar da casa que ficou nova.

Saímos pouco de casa. E quando se casa e regressa, o diálogo não é a mesma coisa. Você se sente filho e intruso simultaneamente. Pelo menos eu era o filho que menos deu trabalho em casa. Amava muito minha mãe.

Dona Cláudia, que sempre morou no mesmo lugar, alguns quarteirões da nossa rua, voltou a frequentar nossa casa. Ela e mamãe passavam um bom tempo juntas. Eu trampando no quarto.

Os negócios iam mal. Depois do celular quase ninguém mais tinha PC pra arrumar. Fome não passávamos.

Com o tempo mamãe foi ficando mais doente. Irritava-se com facilidade. Ora explodia a me xingar, ora chorava sem motivo. Tinha motivo sim. Era meu pai. O único alento dela foi Dona Cláudia. Gentil, ajudadora. Cansei de ver ela subindo e descendo as escadas da entrada da nossa casa com os galões de cândida, cloro e desinfetante cheios sem reclamar. Mamãe não podia pegar tanto peso.

Então, veio a notícia.

Mamãe não se movia. Ficou em silêncio por longo tempo. Só abriu a boca pra falar:

"Ela era amante do seu pai, Júnior."

O choque dessa notícia foi maior que o falecimento dela. Senti-me culpado. Quase não visitara meus pais.

"Ma... mas quem disse isso, mãe?"

"Ela me confessou. Um mês atrás."

Quis xingar ela. Amaldiçoa-la por tudo que é entidade. Amparei minha mãe. Sei como é perder um amigo. Afastei-me de todos depois que casei.

Fomos no velório. O corpo estava gelado. Os amigos choravam, porém ninguém chorava mais que minha mãe. Ela a amava de verdade. Não sei se eram lágrimas pela perda da melhor amiga ou pela traição. Passamos a noite toda velando. O enterro seria pela manhã cedinho.

6h00. O carro da funerária chegou. Não quis ir no enterro. Ela foi. Voltei pra casa.

Quando mamãe retornou seu olhar me dizia que ela perdeu tudo o que tinha. Abracei-a e ela desabou a chorar, mas não disse palavra. Aquele foi o dia mais silencioso da minha vida. Ela foi dormir. Eu não. Fiquei virado.

Já de noite, fui levar o remédio dela. Ela me apontou pro seu guarda roupa e tirei uma cartela de comprimidos. Dei um. Inclinei-me nela e com um beijo em sua testa disse:

"Vai ficar tudo bem, mãe. Estou aqui com a senhora. Te amo. Bênção." Ela sorriu.

Fui pro quarto. Dormi só a noite. Não consigo dormir fora de horário.

Na manhã seguinte fui ao quarto de mamãe... ela deu um grito. Não me reconheceu. Só depois de muito tempo mostrando algumas fotos minhas e falando apelidos que ela me dera quando criança que lembrou-se de mim.

Levei-a ao médico. Alzheimer confirmado. Entretanto, a doença avançou rapidamente e do dia pra noite o seu cérebro foi corroído de modo anormal. É como se um parasita se alojasse em sua cabeça e durante aquela noite drenasse suas funções cerebrais.

Foi aí que o médico me disse:

"A doença dela é grave e muito estranha. Esse tipo de anomalia causa perda de memória permanente, mas gradativamente."

"Como assim, doutor?"

"Sua mãe só tem mais quatro meses de funcionamento do cérebro. Depois disso ela vai virar um vegetal pelo resto da vida."

Diante disso, dediquei boa parte do meu tempo a cuidar de mamãe. Meus irmãos ligavam só pra dizer a mesma coisa:

"Coloca ela num asilo. Eles vão saber cuidar melhor."

Minha vontade era mandar eles se ferrarem, pois estavam numa vida boa e muito bem casados. E agora só queriam se "livrar" da sua culpa me fazendo ser negligente como eles. Ou porque não queriam mais ficar mandando dinheiro pra casa.

Mamãe estava muito frágil. Eu dava de comer, dava banho, e colocava pra dormir. Ela ainda tinha consciência de muitas coisas, mas conforme os dias se seguiam, esquecia o nome de um objeto, de uma rua, até de programas que gostava de assistir.

As primeiras semanas não foi tão difícil cuidar de mamãe, mas eu chorava escondido sempre que podia. Ela perderia todas as lembranças, esqueceria até a mim. Parei de sair de casa. Parei com os consertos de computador. Minha vida parou.

Então, após o primeiro mês, vi que tinha uma mancha branca na parede do quarto dela. Pensei que era a pintura que caíra. Mas não. Era uma mancha branca enorme, como se fosse giz.

No outro dia, a mancha estava maior. Pensei que poderia ser um vazamento ou infiltração e quis passar uma mão de tinta ali quando um cliente que não me pagou tudo acertasse o restante do conserto. Muita gente ainda me devia.

Ele me pagou numa noite. De manhã deixei mamãe dormindo e fui cedinho comprar a tinta. Quando voltei, a mancha tinha tomado a parede inteira. Toda a parede do quarto estava branca.

Nessa altura mamãe não lembrava mais que deveria fazer suas necessidades no banheiro. Passou a usar fraldas geriátricas. Afastei sua cama, e me pus a pintar o quarto. Só que enquanto eu passava o rolo de tinta, a mesma ia desaparecendo aos poucos e ficava branca.

Dentro de um mês e meio, o todo o quarto dela ficou branco. Até brilhava. Parecia que eu entrava em uma sala de cirurgia.

Mamãe começou a esquecer do nome dos cômodos da casa e que tinha parentes distantes como primos, sobrinhos e tios. A foto de nenhum deles era familiar. Mas ainda lembrava meu nome.

A mancha branca foi para as escadas. Decidi chamar um vizinho meu, o seu Zé, conhecido por todo mundo na rua, pra ver o que estava acontecendo. Quando ele chegou na porta de casa mamãe disparou a gritar e se agitar. Ela não o reconheceu. Tentei acalma-la, mas foi em vão. Então combinei de traze-lo numa outra ocasião.

Fiz um buraco na parede pra saber se era infiltração. Não havia nada ali. O curioso é que só eu me dava conta daquele branco. Já minha mãe nunca reclamou.

Consegui trazer o seu Zé. Ele olhou, olhou de novo e respondeu:

"Tá. Qual é o problema?"

"Como assim qual o problema? O quarto da minha mãe tá todo branco. Teto, chão, parede. Já chegou nos degraus da escada. O senhor não está vendo?"

"Vendo... o que? Você não pintou o quarto da sua mãe de lilás? As escadas não são azulejados com azulejo cinza?"

"Sim! Mas acontece que tem uma mancha branca estranha no quarto dela e agora tá descendo as escadas."

Ele repetiu a assertiva. Foi embora.

Coloquei mãe pra dormir. Só que eu não conseguia dormir. Ficava com medo de sonhar que estava entrando num limbo espectral e acordasse naquelas salas de tortura, ou naqueles manicômios amarrado numa cama com um monte de gente vestido de branco em minha volta me segurando.

Fiquei no celular até tarde da noite. Meus olhos pesaram. Adormeci. Não sonhei, graças a Deus.

Quando acordei, a escada estava toda branca. Por completo. O teto da sala também estava ficando branco. Exceto meu quarto, tudo o mais naquela casa foi ficando Branco. E brilhante.

Mamãe não lembrava mais de comer. Esquecera o nome da rua que morava. Que vendia produtos de limpeza. E o número da conta que recebia dinheiro dos meus irmãos.

Meus irmãos insistiam: "coloca mamãe num asilo. Tem horas que não tem o que fazer, meu. O jeito é aceitar a situação e tentar amenizar. Mas você não vai cura-la. Deixa com os profissionais que eles cuidam."

Agora sim os mandei a merda. E a todos os lugares possíveis. Chamei-os de insensíveis e que eles não passavam de sanguessugas.

Os depósitos diminuíram. Agora eu e mamãe sobrevivíamos com metade do dinheiro. Ainda sim era o suficiente. Dava pra pagar o Uber ida e volta nas consultas e ainda sobrava quando eu a levava para comer algo diferente. Nunca gostei de privar alguém de comer isso ou aquilo. Morrer todos nós vamos. Não sendo engasgado, aceito comer de tudo.

A casa continuava sendo contaminada pela mancha branca. Porém não sujava. Eu podia pisar meu sapato nas fezes de um mendigo e arrastar na parede. Não ficava nem marca, nem cheiro. A mancha engolia tudo.

O quadro dela piorou.

Mamãe ficava muito irritada. E não poucas vezes desbocava a falar palavrões de madrugada. Não se sabe com quem. Até eu descobrir (ou parar de fingir) que era comigo. Ela não queria mais me ver. Quando me via, me xingava:

"Você é igualzinho ao seu pai. Ele foi embora por culpa de vocês que me abandonaram aqui sozinha. E eu que dei meu sangue e minha vida pra criar vocês e agora eu estou aqui, inválida. Um monte de bosta! Sai da minha frente!"

E deixava ela assistindo TV até dormir.

A mancha branca tomou toda a sala e toda a cozinha. Com exceção do meu quarto, tudo o mais foi ficando Branco. Só que ninguém via. Mamãe não enxergava. Até bati uma foto da casa toda e mandei para meus irmãos. Eles não viram nada de mais. Só reclamaram que eu gastei muito com a reforma da casa.

No final do terceiro mês, toda a casa estava branca. Móveis, fotos, lençóis. Parecia muito a poesia de João Cabral de Melo Neto, onde o amor comeu nome, identidade, retrato, endereço, tudo. Tudo branco. Menos meu quarto.

Nada no meu quarto ficou branco. Até a água ficou. O café ficava branco. Tudo. Tudo. Eu só lavava minhas roupas agora.

Mamãe esqueceu quem era. Não se reconhecia mais no espelho. Esqueceu de comer. De se lavar. Do cheiro das flores. E de que um dia foi casada. Esqueceu de Dona Cláudia. Dos meus irmãos. Só não esqueceu de mim.

Quarto mês. Fomos no asilo.

Quando conversei com a moça responsável pelo local, ela me explicou que muitos são os casos de Alzheirer que eles recebiam. Porém eles tinham toda a estrutura para cuidar bem deles.

Uma enfermeira me fez dar uma volta pelo local. Observei cada idoso. Cada rosto murcho pela idade. Em cada rosto imaginei uma história. Boa, alucinante. Como um concurso de contos, mas todos com um final trágico. Tinha gente de todas as idades ali. Sessenta, setenta, oitenta e até quase cem anos. Mamãe só tinha setenta e dois.

"Moça, já viu a casa de alguém ficar toda branca?"

"Não entendi. Desculpe. Como é que é?" Ela me respondeu.

"Nada. Nada. Cuidem bem da minha mamãe."

"Podem deixar. Cuidaremos sim. Não esqueça de nos ajudar com doações."

Antes de sair, dei um beijo na testa da minha mãe. Chorei copiosamente. Ela não reagiu. Quando eu ia embora, puxou na manga da minha camisa e me aproximou de seus lábios. Como um último suspirou sussurou:

"Eu te amo, filho."

Uma lágrima rolou do seu rosto. E depois disso seus olhos se confundiam ao olhar pra mim. Ela me esqueceu enfim.

Voltei pra casa. Mesmo com as luzes apagadas, eu podia ver a claridade branca daquele ambiente. Dormi ali só por mais uma noite. Na manhã seguinte arrumei minhas coisas, pedi para meus irmãos uma passagem só de ida para fora do Brasil. Eles depositaram na minha conta uma boa quantia.

Pedi um Uber até o aeroporto. Quando o motorista chegou, saí correndo de casa e entrei no carro quase sem fôlego, pois percebi que o branco da casa se arrastou para o meu quarto e de repente todo o cômodo começou a sangrar.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 13/02/2020
Reeditado em 24/02/2020
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