Azevinho
Instituto Psiquiátrico de Azevinho, 1970. 03h: 30min.
Azevinho, São Paulo – Brasil.
O trem parava na pequena estação. Um homem de meia idade, vestido de branco aguardava o desembarque e enfileirava todos os recém-chegados. Amarrados em correntes e presos com cadeados. Assim que desciam, o homem subiu e entregou um pacote para o motorista.
- Aí estão, sete mil cruzeiros. – disse o homem de branco com sua voz rouca. – De a volta, o segurança estará com uma encomenda para você levar. – O motorista não conferiu e nem respondeu, apenas deu partida no trem obrigando o homem a descer.
Os internos eram trazidos aos montes, de todo e qualquer lugar do país. Seus rostos, às vezes familiar, às vezes desconhecidos. Suas histórias? Irrelevantes àquele lugar; lugar sombrio, aterrorizante e esquecido pelo Estado. Assim que chegavam eram levados pelos fundos do Instituto e entravam por uma porta de alçapão aos porões.
Doutor Antônio Carlos, mestre em distúrbios mentais, era o diretor do Instituto. Oriundo de família abastada, pequena e de fama reconhecida. Passeava livremente entre os corredores mal iluminados dos porões do instituto, corredores estes que apenas um grupo seleto de psiquiatras conhecia. O instituto sofrera reformas há 10 anos e o Doutor Antônio Carlos solicitou tal obra escondida do Estado e de todos os que não participavam de seu grupo seleto de pesquisas secretas. Estranhamente, todos os homens que trabalharam na reforma do instituto morreram pouco tempo depois.
O Doutor Antônio Carlos guiava o grupo de internos recém-chegados e os alojava em pequenos quartos apertados, separando-os em duplas. A porta era trancada assim que o segundo entrava. Não tinham chance de questionar nada, de solicitar nada, apenas obedecer às ordens e permitir serem trancafiados.
***
Os internos eram separados por pavilhões que denominavam as classes de suas doenças mentais e subjugavam seus comportamentos frente ao tratamento. A equipe de enfermaria e medicina se separava para o trabalho de acordo com os pavilhões, os novatos eram destinados os pavilhões de menos riscos e iam conhecendo os outros com o tempo, primeiro acompanhados dos veteranos que os protegiam até não precisarem mais de companhia.
Os pavilhões possuíam muros altíssimos para que os internos não tivessem chances de fuga, enquanto sua realidade os enlouquecia mais que suas possíveis doenças mentais. Os auxiliares, que mais pareciam carcereiros, cuidavam do controle dos internos enquanto estavam no banho de sol e quando estavam no refeitório. Eram os principais abusadores de poder, utilizavam de meios psicológicos e físicos para torturar os internos.
Pavilhão 07 – Inermes
O dia amanhecera instável, como sempre. Gritos apavorantes eram ouvidos das enfermarias. Os internos se acolhiam independentes de onde estavam, conhecedores das dores que o gritante estava passando. Os corredores eram cheios de transeuntes, alguns com uniformes de novatos, outros com uniformes surrados e sujos.
Naquela manhã, uma interna sentada no pátio, banhada pela luz solar deixava sua voz ecoar o que os olhos expunham para fora em lágrimas:
“Mais um triste dia chegou
Mais um triste dia sem ti
Já nem sei mais o que sou
Já nem sei mais de ti
Aquele pavor que gerou
A separação entre nós
O silêncio que nos calou
Transborda e enlouquece a sós
Jamais hei de me esquecer
Dos olhos brilhando entre lágrimas
Por ti sigo sem esmorecer
Enlouquecendo em cada página
Desta vida miserável
Que se encerra a cada garfada
De comida intragável
Onde definho a cada lufada
De vento gélido, condenada”.
Pavilhão 06 – Insolentes
Tal pavilhão era o destino dos homens difíceis, os que relutavam contra o tratamento e/ou os que criavam muitas confusões entre os internos. Tratados com mais brutalidade que o Pavilhão 07, pois mereciam ser castigados por sua desordem e desobediência.
Aqui se via homens nus com muita frequência, pois rasgavam suas roupas e diziam que eram as vozes que mandavam. Seus grilhões eram mentais sobre a diferença de realidades que viviam e de horror passados. Muitas vezes, em abstinência de contato feminino, os estupros eram frequentes entre si, sempre as vítimas eram usadas por muitos agressores, os gritos suprimidos por socos eram ouvidos sempre.
Naquela manhã, todos estavam calados. Mal se olhavam. A noite havia sido intragável; um dos internos estava em crise.
- Pra matar! – repetia. – Para grudar no pescoço.
O interno não parava de repetir as frases. O interno deitado sem roupas em folhagens espalhadas irritou-se e o agarrou. O pegou por trás e gritava para ele se calar. O outro continuava a repetir que era para matar, balançando a cabeça agitadamente. O homem sem roupas jogou o outro no chão e debruçou-se sobre ele, abaixou suas calças ferozmente.
- Você vai se calar. Quer ver? – gritou a pergunta.
O interno que estava por baixo sacou um canivete e enterrou no pescoço de seu algoz, que caiu estrebuchando para o lado. Recebendo mais duas penetrações do canivete brutalmente. Os outros internos começaram a gritar e logo os guardas apareceram. O homem foi levado à solitária, e o corpo arrancado do pavilhão.
Na sala silenciosa de Antônio Carlos o guarda entra.
- Doutor, um corpo o aguarda naquele lugar. – disse o guarda que retirara o corpo do pavilhão.
- Obrigado Cesar. Pode ir. – respondeu o psiquiatra.
O médico pegou o telefone e discou. Aguardou alguns minutos.
- Carol, tenho mais um. – disse sorrindo cinicamente. – Chegará aí logo pela manhã. – desligando o telefone.
***
Porões
A luz era pouca e os corredores apertados. As portas com numerações eram infinitas, o Doutor Antônio Carlos passeava por entre os corredores escolhendo a dedo quem seria utilizado, como quem escolhe um doce em uma bomboniere. A prancheta foi riscada quando estacou frente à porta 85.
Giuseppe Monte Servilla – 29 anos, caucasiano, 1,77 m,
olhos azuis e cabelos pretos.
José Santos da Silva – 27 anos, negro, 1,60 m,
olhos e cabelos pretos.
Foram retirados da sala e levados acorrentados corredor adentro. Chegando ao destino, o Doutor Antônio Carlos abriu a porta e ao adentrar os internos se surpreenderam com o que viam. Um laboratório grande e equipado com muitas ferramentas e maquinário. José notou o picador de gelo e o martelo em cima da mesa dos esterilizados e entrou em choque, gritando que não. Giuseppe o questionou e ao ser explicado qual a serventia do picador de gelo desesperou-se e os dois começaram a algazarra dentro do laboratório.
Saído das sombras um dos médicos se fez presente por trás dos pacientes e aplicou uma seringa no braço de cada um, ao passo que logo os dois caíram ao chão, desacordados.
- Esses foram trazidos do Centro de São Paulo. Subversivos. – disse o Doutor Antônio Carlos.
- Serão esquecidos logo. – respondeu o outro médico.
- A lobotomia vai fazê-los esquecer de muitas coisas. – respondeu Antônio Carlos, e os dois riram descaradamente.
Colocaram os corpos em mesas separadas e prepararam os equipamentos. O picador de gelo e o martelo foram usados em Giuseppe, sob a manutenção do médico. A cada batida do martelo o som ecoava sob a sala. José sofreu o processo de lobotomia original, com a abertura de sua cabeça, tendo suas vias de ligamento dos lobos frontais ao tálamo seccionadas, sob a manutenção de Antônio Carlos. Após o fechamento com pontos na abertura realizada, Antônio Carlos olhou para os dois e sorriu faceiramente. Olhou para o outro médico que estava extasiado.
- Agora vamos transferi-los para o Corredor B e aguardar o despertar.
***
Pavilhão 05 – Alucinados
Os internos com distúrbios graves eram mantidos no pavilhão 05. Local onde a enfermaria era equipada com tarjas pretas e equipamentos para contenção. Onde todos os profissionais mantinham seringas de sonífero nos bolsos, para conter qualquer ataque surpresa.
Leandro, 29 anos, caucasiano, 1,69 m, com olhos verdes e cabelos negros; um médico psiquiatra recém-formado, analisava os prontuários dos internos do pavilhão fora do horário de trabalho, a noite chegara sem que ele tenha percebido o passar das horas.
- Depressão profunda; Delírios constantes; Esquizofrenia; Psicopatia. – dizia separando os prontuários por doenças.
A sala do Doutor Leandro era grande, com prateleiras forradas de livros e revistas sobre psiquiatria e doenças mentais. Estava debruçado sob a mesa na separação dos prontuários quando uma linda jovem de estatura mediana; cabelos penteados cobrindo a testa, de olhos negros; entra na sala e o chama sedutoramente.
- Doutor! – disse a jovem.
- Olá Joseane, em que posso te ajudar? – estranhou o médico.
- Eu preciso de uma pequena ajuda.
- Sim. – entoou Leandro segurando a seringa de sonífero no bolso.
- Sabe o que é... Eu estou há alguns meses aqui e tenho escutado alguns gritos agudos vindos do chão. Debruço-me ao chão para escutar melhor. – fazendo gestos de deitar-se, deixando os seios sobressalentes.
- O que quer dizer com isso? – questionou o médico selecionando o prontuário de Psicopatia de Joseane e o colocando em evidência na mesa. Sem tirar os olhos da jovem.
- Eu tenho muito medo de ser abusada aqui. De ser levada a tratamentos de choque ou remédios desconhecidos, como muitos falam.
- Suponho que... – estava suando.
Leandro teve sua fala interrompida com o ataque de Joseane, que cortou sua garganta com um canivete, fazendo seu sangue jorrar por todo lado. A jovem deu a volta na mesa e pegou as chaves do bolso do defunto. Saiu da sala e encontrou um grupo de internos que a esperava.
As chaves de Leandro foram usadas para abrir o portão externo do pavilhão dando acesso ao corredor que os levaria para os fundos do Instituto. Seguiram em frente e abriram a porta do alçapão, novamente com o acesso das chaves.
- Eu tinha certeza que aquele filho da mãe fazia parte desse grupo.
- Ele foi só o primeiro, Joseane. Vamos pegar os outros. – disse um dos internos.
- Antônio Carlos é meu! – disse Joseane tirando os cabelos da testa deixando à mostra a cicatriz da lobotomia recente.
O grupo sorriu e passaram pela porta, trancando-a por dentro.
***
Corredor B – Lobotomizados
O Doutor Antônio Carlos entrou na sala de lobotomia fechando o jaleco, falou com o outro médico e não obteve resposta. Assustou-se ao ouvir a sirene de alarme soar, preocupou-se e chamou o médico novamente, sem receber uma palavra do médico.
Não notou uma sombra atrás de si que trancou a porta.
Foi de encontro ao médico sentado na cadeira e o tocou, virando a cadeira. Gritou de pavor ao notar o médico morto com um canivete penetrado na testa, como se fosse um picador de gelo. O doutor Antônio Carlos assustou-se quando se virou e notou Joseane o fitando, com um olhar gélido. Sentiu um calafrio o percorrer a espinha. Seus olhos demonstravam seu medo. Joseane lentamente foi de encontro a ele e não o seguiu quando o Doutor deu a volta na mesa e correu para a porta, Joseane lentamente foi até a mesa e pegou o picador de gelo.
O Doutor Antônio Carlos abriu a porta e assombrou-se com o exército de lobotomizados que o aguardava na porta. Seus olhos esbugalharam-se e ele gritou por socorro, porém o porão não existia meios de ser ouvido, primeiro por conta da sirene altíssima do alarme que soava e segundo pela própria opção em deixar o porão inaudível às outras áreas do Instituto.
Dentro do instituto o caos estava gerado, os companheiros de Joseane mataram um dos guardas e com as chaves abriram os portões dos pavilhões, todos os internos estavam agitados. Uma grande rebelião fora criada, internos lutavam contra internos, lutavam contra equipe médica. As mulheres divergiam-se em sentimentos, enquanto algumas ficavam aterrorizadas com toda aquela luta, outras se deixavam dominar por seus instintos e saíam para a batalha.
Até que o facilitador chegou ao portão do pavilhão 01. Colocou a chave e estagnou. Pensou um pouco e logo sorriu estranhamente, girou a chave e o portão foi aberto. O barulho da rebelião tomou conta do pavilhão. Os internos começaram a sair, e o horror fora exposto. O pavilhão 01 era o destino dos deficientes por má formação. Internos sem olhos, sem abertura da boca, com cabeça gigante ou cabeça minúscula, membros incompletos.
- Estava esperando você Tocha! – disse o facilitador.
O homem apareceu sob a luz e expôs seu rosto todo queimado, não possuía um dos olhos, o outro estava com a esclera do olho quase saltando, as orelhas grudadas na pele queimada por completa.
- Estava ansioso. – respondeu o Tocha.
Todos saíram pelos corredores, quando notaram que alguém colocou fogo no Pátio Central os internos foram investindo contra os médicos e enfermeiros que se aproximavam, o Tocha com um canivete penetrava-os e jogava os corpos no fogo, seus gritos eram estridentes.
No porão, os lobotomizados cercaram e arrastaram o Doutor Antônio Carlos para o corredor B, ele foi jogado de cela em cela e os donos da cela o perfurava com o picador de gelo pelo corpo. Ao fim de todas as celas, com o corpo cheio de furos, sangue escorrendo pela boca, Joseane recebeu o picador de gelo. Encostou seu rosto próximo ao do Doutor, quase o beijando. Com um olhar desfocado e sombrio.
- Por favor, não... – Antônio Carlos engasgou com o próprio sangue.
Joseane investiu o picador de gelo contra sua testa, fazendo o estrebuchar e debater-se. Mais uma investida e ouviu-se um sussurro. Outra investida e o corpo estagnou. A cabeça virou para o lado, os olhos estavam arregalados, as marcas das três investidas do picador de gelo estavam latentes e espirrando sangue, o rosto todo vermelho.
Joseane se aproximou novamente do corpo morto.
- Vai para o inferno.
Tema: Manicômio