Ela Nem Sempre Vem (Ou: Um Suposto Exorcismo que deu Errado)

O investigador Josué olhava para a sala de interrogatório, para uma moça que devia ter uns quatorze anos, através do vidro especial que não permite que quem está dentro da sala veja quem está do lado de fora. Ela era muito magra, curvada na cadeira em que estava amarrada com várias correntes e algemas, de modo que o seu longo cabelo negro ocultava seu rosto. Seu vestido sujo de sangue seco sinalizava que todo aquele aparato para imobilizá-la era realmente necessário. Leonardo, seu companheiro, lhe contava a história de como ela havia parado ali.

O irmão dela, Matheus, o único sobrevivente, percebeu que as coisas estavam estranhas quando viu seu pai entrar em seu quarto com pânico em seus olhos. O medo dele era contagiante, de modo que tomou conta do menino de doze anos também. O pai não conseguiu dizer nada entretanto, dando as costas e indo embora. O menino o seguiu, imaginando que o jantar estava pronto.

Ao chegar na sala, a temperatura pareceu cair de repente. Sua irmã mais velha, Amanda, estava com um olhar vazio fixo no prato igualmente vazio diante de si. A mãe estava com os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar. A sensação de pavor aumentava em ondas cada vez maiores no coração de Matheus, tanto que ele sentia que se o medo crescesse ainda mais, ele acabaria morrendo; mas sempre parecia haver mais espaço dentro de si para o horror. Essas ondas de pavor emanavam de Amanda.

A pele da moça estava levemente cinzenta, o cabelo bagunçado. Não houve conversa ou diálogo durante o jantar, apenas um silêncio assustador. A comida descia muito mal, e só o pai conseguiu, com muito esforço, comer metade do prato. Amanda devorou tudo e pediu mais, sem alterar o olhar vazio. De vez em quando sussurros incompreensíveis emanavam da boca dela, fazendo todos tremerem.

A partir de então, a família fez muito esforço para prosseguir com sua rotina normal, tentando simplesmente ignorar Amanda, que perambulava pela casa como uma zumbi, sempre murmurando. De fato, a sensação de medo diminuia muito quando eles saiam de casa, mas parecia que aquela presença maligna os seguia onde quer que eles fossem. Alguns dias, porém, eles conseguiam ignorar o que estava acontecendo, o que tornava esses momentos meramente suportáveis.

Quem mais sofria era a mãe, pois era quem passava mais tempo em casa com Amanda, enquanto Matheus ia para escola, ou para a casa de um amigo, e o pai ia trabalhar. Por isso, não é de se estranhar que ela foi a primeira a surtar. Um dia, Matheus e seu pai estavam na sala, quando a mãe começou a gritar com Amanda, exigindo que ela parasse de fazer o que quer que estivesse fazendo. Eles correram para o segundo andar e tudo que viram foi Amanda no quarto coberta de sangue, com as roupas de sua mãe caídas aos seus pés. Eles nunca mais a viram.

Naquele mesma noite, o pai chamou um pastor local, que junto com dois irmãos, foram fazer uma visita. Então se reuniram os três crentes, Matheus, o pai e a irmã na sala. Os homens fizeram uma roda de oração em volta dela e o pastor começou a orar, aos berros. Amanda gargalhou, indiferente, como não ria há muito tempo.

- É demônio, tenho certeza. - Disse o pastor Augustus, sereno. Ele abriu então sua grande Bíblia em um local aleatório. Ele e os irmãos pareciam totalmente indiferentes às ondas de medo emanavam da moça, o que tranquilizou um pouco Matheus. - A fé vem pelo ouvir a Palavra de Deus. Então ouçamos a Palavra do Senhor: "Se confessares com a tua boca a Jesus como Senhor, e creres no teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo; porque com o coração se crê para a justiça, e com a boca se confessa para a salvação. Pois a Escritura (...)"

Nesse momento, ainda rindo, ela se levantou, empurrou Matheus e subiu para seu quarto, deixando um rastro de medo no caminho, que dessa vez afetou até os crentes. O pastor pareceu ainda sereno, embora sua testa suasse bastante, enquanto todos os outros na sala tremiam. A gargalhada de Amanda, agora mais alta, ecoava pela casa.

- Deviam ter chamado um padre. - O delegado Josué brincou, interrompendo a história contada por Leonardo.

- Você estudou para padre, não?

- Nem vem com essa. Eu não sei, nem tenho a graça necessária, para expulsar um demônio. E essa garota não está possuída. Ela só tem algum problema mental grave ou coisa que o valha. Nós vamos é nos ferrar em manter ela presa daquele jeito.

- Foram precisos sete homens para segurar ela, chefe. E a família toda desapareceu. Você não viu o que eu vi.

- Termine a história, então.

O pastor Augustus conversou com os outros para prepará-los para o que estava por vir. Disse que quando ele começasse uma "oração mais forte", o demônio ia se manifestar mais intensamente. O segredo para vencê-lo era ter fé em Deus e ignorar os seus ardis. Isso incluia qualquer coisa que ele falasse. Então eles subiram e...

Josué fez um sinal para Leonardo parar. A moça na sala de interrogatório se mexeu, fixando os olhos no vidro especial entre ela e os dois homens que a observavam, que impedia que ela os visse. Ela contemplou o próprio reflexo, intrigada, e começou a murmurar palavras que, para Leonardo, eram incompreensíveis.

- O que é isso, latim? - Ele perguntou.

- Grego antigo. - Josué corrigiu.

- Você consegue entender o que ela está dizendo?

- Poucas palavras. Diga-me, como terminou a história?

- Bem, segundo o irmão, ela matou o pastor, os dois crentes que vieram com ele e o pai.

- Os corpos?

- Desapareceram.

- Onde garoto está?

- Dormindo. Estava exausto quando deu seu depoimento. Mas não tinha nenhum ferimento.

O delegado olhou nos olhos negros da moça. Suas pupilas estavam dilatadas, seu rosto levemente enrugado. Uma pequena sensação de medo o atingiu como um tiro, e depois ela foi aumentando gradualmente. Leonardo sentia o mesmo. Seu peito ardia, a garganta secou totalmente, o suor escorreu, os dentes batiam, as pernas começaram a tremer. Josué queria sair correndo dali.

A moça começou a se balançar e se sacudir, como se tentasse se soltar, mas sem fazer tanta força. Nesse momento, outros policiais se aproximaram e ficaram olhando. Todos eles rapidamente foram tomados por aquela sensação de perigo crescente. Alguns começaram a sangrar pelas narinas e orelhas, enquanto ela parecia indiferente à angústia deles, olhando para o espelho diante de si. Eles ficaram paralisados de medo por alguns minutos.

Então a moça se levantou arrebentando as correntes e algemas que a prendiam, uma a uma. Ainda murmurando palavras em uma língua estranha, ela caminhou lentamente até o espelho. Seus ossos estalavam enquanto ela se movia. Josué foi o único que teve forças para sacar sua arma e apontar para ela. Amanda colocou suas duas mãos cinzentas, enrugadas e muito magras no vidro. Ela então disse as últimas palavras, de um modo muito claro, de maneira que Josué pôde ouvi-las muito bem: "Blepo tous anthropous".

Aquelas palavras atingiram a mente de Josué em cheio, de maneira que ele foi obrigado a abaixar as mãos. As veias das suas têmporas começaram a latejar, sua garganta inchou, tornando a respiração difícil, do seu nariz começou a correr sangue, um gosto amargo encheu sua boca. Ele quis muito desviar o olhar, mas não conseguiu. Sentiu as pessoas ao seu redor caírem, até que só ele ficou de pé.

Amanda soltou uma risadinha rouca. Seu rosto sujo e coberto de veias se iluminou de uma forma macabra com um sorriso, os olhos selvagens se arregalaram, enquanto as pontas de seus dentes irregulares se revelaram. Então ela bateu no vidro com força, estilhaçando-o. Josué, instintivamente, levou os braços ao rosto, protegendo-o. Quando olhou novamente, Amanda havia desaparecido.

Josué liberou todos os que haviam passado por aquele evento traumático para irem para casa, enquanto ele mesmo passou o resto da noite tentando resolver as difíceis questões burocráticas que aquelas mortes estranhas implicavam. É óbvio que ele não podia registrar o que de fato aconteceu. O único conselho que deu a todos era que rezassem, se tivesse alguma crença e tentassem ao máximo ignorar o que havia acontecido, pois quanto mais pensassem naquilo, mais dariam força ao medo.

Ele, contudo, não conseguia seguir o próprio conselho. Aquelas palavras, "blepo tous anthropous", ecoavam em sua mente. Ele sabia exatamente o que significava: "eu vejo humanos". Ela os estava observando através do vidro especial o tempo todo. Mais do que isso, se era mesmo um demônio, ele sabia que Josué era o único naquele lugar que podia compreender aquelas palavras. Por alguma razão, ele havia pessoalmente chamado a atenção daquela coisa. Era como se ela dissesse: "eu posso ver você".

Quando chegou em casa, ao invés de ir dormir, ele tomou uma Bíblia empoeirada, e começou a procurar nos evangelhos. Após alguns minutos, encontrou o que buscava: aquela frase era, como ele desconfiava, uma citação do Evangelho de Marcos. Lembrando-se das palavras do pastor no relato de Leonardo, de que a fé vinha por ouvir, ele começou a ler em voz alta Marcos 8, esperando que a fé viesse. Leu ainda o 9, 10, 11, até o fim do Evangelho, mas a fé simplesmente não vinha.

Quando Josué finalmente desistiu e jogou o livro de lado, uma onda de medo crescente o atingiu, e uma mão enrugada deslizou pelo seu rosto.