GRITOS DO SILÊNCIO.

Afonso estacionou o carro na garagem do condomínio. Cumprimentou o porteiro. Um sorriso. Tirou os óculos. Maleta preta. Terno bem cortado. Subiu as escadas. A porta do apartamento 206. Deu um beijo na esposa Sabrina. O filho Enzo, de quatro anos, veio correndo e abraçou as pernas do pai. Uma família feliz. Um lar cristão. Afonso era advogado e psicólogo. Estava no seu segundo mandato de conselheiro tutelar. Tinha sido vereador mas preferia atuar no conselho tutelar do que na Câmara, embora tivesse sido um ótimo edil. Sua luta e bandeira sempre foram o abuso e trabalho infantil. Ganhou muitas medalhas e prêmios assim como muitos inimigos, na sociedade, na igreja e dentro de sua própria família. Afonso encarava tudo e a todos na defesa dos pequeninos, como chamava as crianças. -"Onde deveriam estar protegidos, é onde sofrem as maiores e cruéis violências!!! No lar, no seio das famílias! É um número alarmante! Não podemos ficar indiferentes!!! Crianças indefesas, sofrendo e colhendo os frutos da baixa estima, depressão, isolamento, ansiedade e pânico. Crianças e adolescentes com desenvolvimento emocional, físico e intelectual comprometidos. Os agressores e abusadores estão nas redes sociais mas também no núcleo da família, perto da vítima. Estão acima de qualquer suspeita. Essas crianças gritam em silêncio. Sofrem em silêncio!!!!" Repetia Afonso nas suas palestras. -" O crime sexual é uma agressão e invasão cruel a integridade física e mental dos pequeninos. Mais que isso, fere o crescimento sadio delas. O crescimento físico, espiritual, mental, moral e social. O estatuto da criança e do adolescente, criado em 1990, é uma vitória contra tudo isso mas a luta é diária. É preciso combater a impunidade. A infância é a fase mais bela da vida e quando o abuso ocorre, isso é roubado. O mundo fica feio. Tudo fica feio. É preciso observar se a criança muda de comportamento repentinamente, vigiar com quem ela interage, desconfiar se ela não gosta de ficar junto de algum parente ou amigo. Os pais devem observar se ela se isola, se ela passa a se alimentar de modo diferente, se prefere a solidão, se passa a urinar muito a noite pois isso não é comum. Peça aos seus filhos pra desenhar as atividades da escola pois, muitas vezes, ela vai se expressar melhor nos desenhos do que falando. Em caso de suspeita, investiguem. Amem muito, protejam, dediquem muita atenção e carinho aos seus filhos, se coloquem no lugar deles. Se confirmado os abusos, não se desesperem. É um trauma muitas vezes superável, tratado. Busquem ajuda na polícia, num psicólogo ou psiquiatra. Muitos pequeninos têm medo de falar com a família. Esses profissionais poderão auxiliar. A auto estima e a identidade das vítimas vão lá pra baixo. Um abuso, um bullying, podem levar a consequências gravíssimas como homicídios, a auto mutilação das vítimas ou o suicídio delas. É um inferno. No mundo são cerca de 300 milhões de crianças nessa situação. O abusador é um sedutor. Ele faz a vítima se sentir única e especial. Utiliza jogos, mentiras e ameaças. Compram presentes caros. São, aos olhos da sociedade, gentis e confiáveis, quando na verdade, são cruéis, neuróticos e perversos. O fato é que, a maioria dos agressores foram também abusados na infância. Isso é triste!!! É uma questão cultural. Se a sociedade não mudar, os agredidos de hoje serão os agressores de amanhã!!! Às vezes, a própria vítima se rebaixa e se acha merecedora de sofrer. Distorce tudo. Sofre distúrbios, culpa, raiva, ressentimento, problemas sexuais e muito sofrimento. Muitos buscam apoio no álcool e drogas. É uma fuga. Crianças são frágeis, inocentes e é preciso lutar contra esse crime de abuso, de roubo da alegria delas. É importante conscientizar pais e professores. Conversem com seus filhos sobre os riscos. Prevenir. Orientar. Conhecer os direitos já é um grande passo." Afonso terminava suas palestras com uma oração. Ele ficava esgotado emocionalmente ao final pois usava fatos de sua vida como exemplo. Como na vez que seus pais foram convidados para uma festa numa chácara. Afonso tinha dez anos. Seu pai era bombeiro, a mãe era professora. Uma chácara linda às margens de uma represa. O pai distraído com o futebol no minicampo. A mãe saboreando um delicioso churrasco com as amigas da secretaria de educação. O filho se esbaldando com outras crianças na cama elástica e outros brinquedos. Um grupo de pagode tocava ao vivo. As crianças queriam passear de pedalinho no lago. Afonso chamou o pai. Ouviu um não. -" Chame sua mãe, filhão!!! Estou no meio de uma partida de sinuca. A mãe estava na piscina, proseando com as amigas. Dilermando, um bombeiro aposentado, se ofereceu, prontamente, pra levar Afonso para o passeio no lago. -" Filho, vai com o Dilermando!!! Se está com ele, está com Deus!!! Bom passeio!!!!

O bombeiro aposentado tomou o garoto nos braços. Afonso sorriu com a careta engraçado do homem. Dilermando frequentava a casa da família. Era colega de igreja também. Pai de três filhos. Um bombeiro com uma coleção de medalhas e honrarias. Um verdadeiro palhaço com as crianças. Havia seis pedalinhos. Dilermando e Afonso escolheram o pedalinho em formato de cisne. -" Força nessas pernas, Afonsinho. Vamos lá no meio do lago!!!" Dilermando massageou as pernas do garoto. -"Não pode ter câimbras!!!!" O homem vestiu no menino o colete salva vidas!! -" Já imaginou se a gente vira o pedalinho e morre afogado sem coletes??? Num lugar com mais de quarenta bombeiros??!! Vai ser uma vergonha!!!" Durante o passeio, o homem foi fazendo perguntas sobre a escola, a relação com os pais, as brincadeiras de Afonso. O inocente menino não tinha malícia, ao contrário do adulto. -" Na sua idade eu tinha três namoradas na escola. Você está devagar. Eu já tinha dado o primeiro beijo com sete anos. Não, Afonsinho, tem que melhorar isso!!! Posso te ensinar mas deverá manter segredo!!!" O garoto sorriu e concordou. Dilermando deu um selinho no menino. Afonso sorriu. -"Tenho que roubar o beijo da menina????" O homem sorriu. -" Sim. Agarra e beija. Escolha as mais bonitas!!!!" Durante os quarenta minutos de passeio no lago, o garoto ouviu conselhos e dicas de Dilermando. -" Você não é mais criança mas sim um pré adolescente!!! Já tem idade pra ter um celular. Meus filhos já têm. Vai poder ver vídeos, escondidinho de seus pais caretas." Afonso estava admirado e adorando o passeio. Estava se sentindo especial. -" Que tal você dormir lá em casa no fim de semana??? Estou separado de Nadine. A casa é toda nossa, meu amigo. Poderá jogar videogame com Thomas, Gustavo e Kauan por várias horas!!! Se empanturrar de chocolate e ficar a tarde toda na piscina!!! Vou falar com seu pai." Afonso passou a frequentar a casa de Dilermando, que aproveitava momentos a sós pra passar dicas ao menino. Os filhos de Dilermando nadavam nus na piscina. Afonso foi convidado a tirar a sunga. Dilermando entrou na piscina, também nu. Afonso achou estranho mas se acostumou com o tempo. Dilermando enviava filmes adultos ao celular de Afonso. -" Eu via tudo aquilo como algo normal mas era impróprio para uma criança!!! Um mundo deturpado e perigoso. Dilermando reatou com a esposa, um ano depois. Ele morreu num acidente de trânsito, meses depois!!! Chorei muito e queria me matar também. Meus pais estranharam minha reação. Contei tudo a eles. Meu pai ficou chocado. Contei a eles que até presenciaram Dilermando tendo relações com uma garota de programa. Fazia parte do meu aprendizado!!!!" Afonso percorria as escolas com suas palestras e relatava tudo isso. -" O ambiente escolar, assim como o religioso, é onde também ocorre uma violência silenciosa contra a criança e o adolescente. A vergonha e o meio impedem que as vozes, os gritos do silêncio das vítimas, sejam ouvidos. Na escola um ensina, outro aprende. Um manda, outro obedece. Um abusa, outro sofre. Na escola a criança passa longas horas com centenas de pessoas. Maus tratos ocorrem diariamente, debaixo dos olhos de educadores. Pais, vejam, durante o banho, se há lesões no seu filho. Fiquem atentos aos órgãos sexuais da criança. Muitas pedem ajuda aos professores e, infelizmente, são ignoradas, negligenciadas, ridicularizadas pelos inclusive pelos colegas de classe. O abuso pode ocorrer nas salas, recreio ou quadras de esportes. A escola deve agir pra impedir e diminuir esses abusos com palestras, colocando o assunto em debate. Promover o bem comum, o respeito e a convivência agradável no ambiente escolar deve ser tarefa de todos." Afonso lavou a louça do jantar. Leu uma história para o filho, após montarem um quebra cabeças do Homem Aranha com quinhentas peças. Assistindo o desenho da Galinha Pintadinha, Enzo dormiu. Afonso ligou o abajur. O filho era muito parecido com ele. Afonso, quando criança, não dormia sem a presença de alguma luz. Ele observava o filho dormindo. Olhos marejados. O pensamento viajou. Afonso tinha doze quando apanhava na escola. Um garoto, menor que ele, o enchia de bolachas e tapas. Afonso fazia as tarefas de casa do garoto valente. Afonso passou a ter notas baixas e ser rebelde em casa. Vivia isolado e passou a curtir rock e roupas pretas. Economizou, durante seis meses, a sua mesada para pagar um menino muito forte pra quebrar o garoto que lhe batia. Os abusos terminaram. -" Se encostar em mim, colocarei o Zeca Montanha pra te arrebentar de novo!!! Ele vai quebrar seu outro braço!!! Afonso passou a treinar judô. Queria se proteger. Os pais frequentavam a igreja católica. Afonso virou coroinha, igual seu irmão mais velho. Estava feliz com a batina. Auxiliava nas missas e celebrações. O garoto de quatorze anos, loiro, de olhos azuis, inteligente, era o coroinha preferido do padre Armando. Em pouco tempo se tornou o coordenador dos coroinhas. O padre se reunia com Afonso, uma vez por semana, pra passar as orientações dos acólitos. O adolescente ria, ao ver o padre molhar os dedos na boca pra folhear os livros. Afonso mal sabia que naquele ambiente de fé também existia o mal e a violência sexual. Afonso não via malícia e achava normal os abraços do padre. Os beijos no rosto. Os carinhos nos passeios. A predileção do religioso. Os elogios. Com quatorze anos, Afonso ganhara altura e músculos. Beleza idem. Ganhava a atenção e olhares das garotas da paróquia, pra desespero e ciúmes do padre Armando. Um religioso elogiado e querido. O padre das crianças. O padre da missa festiva e agradável. O padre do sermão belo e cativante. O padre que dopou Afonso e abusou dele, num passeio dos acólitos a Ubatuba. O garoto foi intimidado a guardar segredo. -" Acidentes acontecem, Afonso. Pense nos seus pais!!! Tenho poder!!!!" Ameaçou. Passou o dia todo calado. Amedrontado. A viagem de volta da praia foi um tormento pois Afonso fingia, perante os demais coroinhas, que estava tudo bem. Olhava o padre sorrindo e agindo naturalmente. Em casa, Afonso contou tudo a seus pais. Levado ao hospital, o pai de Afonso disse ao doutor que o filho tinha se machucado numa cerca de arame. O médico, meio desconfiado, confirmou alguns ferimentos nas partes íntimas do menino. -" Ninguém vai acreditar em você, Afonso. O padre negará e será, no mínimo transferido. Ele sabe o que fez de errado e você não foi o primeiro, provavelmente." Disse Hector, pai de Afonso, ao filho. A família mudou de cidade e de estado. Afonso passou por cinco longos anos de tratamento psicológico. Tinha pesadelos com o padre. Com vinte anos, Afonso decidiu estudar Direito e Psicologia, a fim de ajudar no combate a esse tipo de violência. Falava sempre com energia e autoridade nas suas palestras pois ele passara por tudo. Sentira na pele o que os pequeninos lhe relatavam. A esposa dele já dormia. Afonso foi ao banheiro antes de se deitar. Ele navegava na internet, no dia seguinte. Embora não frequentasse muito a igreja, depois que os pais morreram, dizia ser ainda católico. Algumas vezes atendia telefonemas durante a madrugada. Nenhuma voz do outro lado. Nenhuma resposta. Foram uns cinco telefonemas assim. O aparelho tocava mas quando Afonso atendia, desligavam. Afonso intuiu que o padre Armando descobrira seu endereço. Afonso monitorava o padre Armando fazia tempo!!! Acompanhava as notícias da igreja. Estava lá, num belo dia, na página da internet, que o padre Armando seria ordenado bispo. Iria pra capital do país. Uma subida na hierarquia da igreja. -" Aquele verme não pode se tornar bispo." Afonso ficou muito revoltado. Os tempos são outros. Tempos de um papa do povo, latino. Afonso decidiu contar sua história pra esposa. Ele decidiu ir a polícia e aos jornais. Denunciado, o padre Armando negou tudo. Outros jovens ganharam coragem e também denunciaram o religioso. Choveram denúncias contra o sacerdote. Seis meses depois, Afonso vibrou quando a indicação do padre pra ser bispo foi retirada. Era pouco pra ele. Afonso deu um grito forte. Um grito de quem ficara muito tempo em silêncio!!! Afonso, ainda adolescente, tinha assistido o filme O Nome da Rosa, com Sean Connery. Um assassino passa veneno nas páginas de um livro proibido. Os monges, com o hábito de umedecer os dedos na boca pra passar as páginas, morriam envenenados. Um ano se passou. A polícia arquivou o caso do padre Armando. Para o delegado, Alfredo Sondas, o bom padre Armando era inocente. Um representante do Vaticano investigou o caso e, meses depois, anunciou aos jornais que o bom padre Armando era inocente!!! Um ano depois, o bom padre Armando recebeu com alegria um pacote. A cozinheira Ritinha recolhera-o, junto de outras cartas dos correios. Eram dois livros de Jean Paul Sartre!! Novinhos. Belos livros. -" Estranho não ter remetente!!! Estão endereçados a mim. Amo Sartre!!!!!" O religioso parecia ter recebido um tesouro. Amava livros e Sartre. -" Abençoado seja quem me enviou essas raridades!!!! Amei. Vou compartilhar!!!!" Eram livros raros e caros. O padre ficou radiante com os mimos. -" Isso é coisa do monsenhor Roberto. Ele sabe que amo Sartre. Danadinho!!!!" Após a missa e o jantar, o bom padre Armando se esticou na cama King com os novos livros. Seis almofadas. Acompanhado do cigarro e da tradicional cervejinha, leu quase um livro inteiro. Meia noite. Nos dois dias seguintes, leu os dois livros inteiros. Chegou a citar o filósofo francês durante um sermão. De vez em quando folheava os livros. Ocupavam o lugar de destaque na sua estante. Semanas depois, o padre começou a ter sintomas de falta de ar. O padre sentiu um cansaço repentino. A vista escureceu. -"Ritinha!!! Ritinha!!! Estou com a vista escura. Meu Jesus, misericórdia!!!" Gritou, segurando-se na parede da luxuosa casa paroquial do centro da cidade. Ritinha levou-o pra cama. A cozinheira ligou para o médico e para o amigo, monsenhor Roberto. Padre Armando recebeu, no hospital, a extrema unção. Quis se confessar com o monsenhor. Confessou seus crimes e abusos. -" O inferno me espera, monsenhor. Disse Jesus que, se alguém fizer o mal às crianças, estará fazendo a ele. Vejo vultos negros me puxarem ao abismo." O padre faleceu, uma hora depois. -" Causas naturais!" Foi o que disse o médico ao triste monsenhor Roberto . F I M

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 05/02/2020
Reeditado em 11/02/2020
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