A PRIMEIRA VEZ QUE MORRI - CAPÍTULO 1

CAPÍTULO 1- UM GIRO NO COMEÇO E UMA VOLTA NO FIM

Levando em conta a percepção linear do tempo pelos humanos, fique atento para as passagens de tempo intencionalmente não tão claras.

Dizem que basta estar vivo para morrer, e eu digo que basta morrer algumas vezes para se viver de verdade. Às vezes não parece bom estar vivo, mas sentir que estar vivo depois de morrer é revigorante. Não lembro quando nasci pela primeira vez, acho que ninguém lembra, dizem que não conseguimos lembrar nada até certa idade porque estamos sob a tutoria celestial e intelectual de anjos, não teríamos a capacidade de nos manter vivos sem a ajuda deles. Bem, parece que vários animais não precisam de anjos.

Eu não acredito em anjos, talvez o extinto e a memória ancestral nos protejam de certas situações. Com esse discurso, talvez já tenha dado para notar que não vou contar sobre uma experiência religiosa ou algo baseado em crenças, não vou contar que tive uma experiência de quase morte e atribui esse livramento a um ser supremo e por isso resolvi me aproximar de Jesus. Jesus foi um cara legal, mas não vou por ele nessa história não. Apesar das minhas raízes religiosas e das minhas superstições, preferi pisar em solos mais firmes do campo da racionalidade humana, na verdade, não tão firmes assim, porque eu também vou falar de amor, de vários e diversos amores. Talvez essa história esteja mais para um conto de amor do que para um drama biográfico, fictio-científico ou um terror.

“As pessoas são tão desprezíveis’’

“Juan?’’

“Gente, o Juan não tá nada bem’’

“O Juan tá transtornado’’

“Vai nadando, nadando, pega o remo, puxa o barquinho’’

“Melhorou Juan?’’

“Gente, o Juan não tá nada bem’’

“O Juan tá transtornado’’

“As pessoas são tão desprezíveis’’

“Vou ligar para minha mãe’’

2003 Quandú

Abri meus olhos, minha mãe estava do meu lado com uma panela de água fria com uma mamadeira de mingau esfriando dentro, essa foi umas das primeiras cenas que consigo lembrar da minha vida depois que nasci, não, eu não era um bebê, eu já tinha 5 anos. Minha mãe passou muito tempo me tratando como criança, e talvez até hoje ela tem um pouco disso, talvez por ser o filho mais novo. Depois de tomar o mingau, me levantei e fui no quintal, caminhei pelo terreno e passo a observar um pintinho preto, começo a correr atrás dele pela relva, ainda molhada com o sereno da madrugada. Pisei em falso e escorreguei, caindo com a bunda na grama , não doeu e logo consigo me levantar. Ao me levantar me deparo com um arbusto se mexendo na minha frente, escuto um grunhido, curioso, fui ver o que era, abri o arbusto e vejo uma ninhada de gatos novinhos, me encantei e tentei pegar um, fui surpreendido com a mãe dele saltando no meu rosto, unhando e soltando uma espuma branca no meu rosto, gritei alto.

Minha mãe ouve meu grito e corre com meu irmão para ver o que tá acontecendo, quando eles chegaram até mim, eu estava vomitando e chorando, mamãe me pega e coloca no braço me acalmando e perguntando o que aconteceu, meu irmão que já tinha 12 anos fala:

- Esse menino já é doente, vai ficar mais doente ainda pegando nesses gatos, duvido que ele chegue pelo menos na minha idade.

Meu irmão pega um dos gatos pelas patas e gira no ar, até hoje me lembro do grito desesperado do bichano, depois disso ele solta o gato no ar, que é arremessado bem longe.

Um outro fato que me lembro da minha infância, foi quando eu tinha 6 anos, eram 5:30 da tarde e eu voltava da escola na garupa da bicicleta da minha mãe, comecei a olhar para os raios do pneu rodando e comecei a pensar: - o que será que acontece se eu colocar meu pé aqui? Não sei o que me levou a fazer isso, só fui lá e fiz, coloquei meu pé. A bicicleta para de repente, minha mãe perde o esquilíbrio e caímos no acostamento, mamãe começa a gritar e pedir socorro para as pessoas que passavam na estrada, lembro que quem tirou o meu pé entre os raios do aro da bicicleta foi meu vizinho, esse vizinho sempre brigava com minha família por motivos banais e tentava bater no meu irmão. Lembro que meu pé ficou machucado por um bom tempo, lembro também que minha professora ficava admirada, que mesmo me liberando, eu insistia em continuar indo para a aula, com certa dificuldade mancando e com dores. Fiquei com uma marca em cima do osso arredondado do tornozelo, hoje ainda tenho essa marca, ela fica dois dedos acima desse osso.

Eu não costumo muito ficar lembrando desses fatos, mas talvez eles dizem muito sobre o que sou hoje. O fato deu ter uma mãe super-protetora, um irmão violento, uma família que se envolvia em conflitos intensos e pesados com os vizinhos e ser uma criança ''doente’’. Por ter asma e outras coisas, me livrei do trabalho na roça, ao contrário do meu irmão e da minha irmã, que sempre buscavam um motivo para me chamar de vagabundo e preguiçoso. Talvez eu seja preguiçoso, mas eu usei esse “privilégio’’ de ser doente ao meu favor. Tive muito tempo para estudar e ficar resolvendo exercícios de raciocínio lógico, sempre tirei notas boas na escola. Meus tio-avós admiravam minhas habilidades, eles também eram bons em matemática, mesmo alguns deles sendo analfabetos.

Em 2015, passei para a faculdade de agronomia, sai da minha cidadezinha e fui para capital, para estudar algo que já fazia parte da minha vida no interior. Foi uma mudança e tanto, saí debaixo das asas da minha mãe e do convívio louco da minha família. A partir de então comecei a ter experiências muitos diferentes e intensas, conheci coisas e pessoas, entendi certas coisas e pessoas erradas, conheci também pessoas muito fantásticas e incríveis. Comecei a entender como parte do mundo funcionava, por mais que hoje eu ainda não entenda como minha cabeça funciona.

[Meu primeiro dia na universidade]

Peguei três ônibus da periferia onde passei a morar até chegar na universidade, estava chovendo e o trânsito estava caótico, cheguei atrasado e não sabia onde era minha aula, saí correndo pelo campus, sem guarda-chuva e sem rumo, perguntava a um e a outro onde era o bloco 909 e ninguém me respondia direito, corria, corria e não chegava a lugar algum. Tropecei e cai numa poça de água, o cúmulo, para minha surpresa, quando me levantei, meu olhar bateu na placa onde indicava onde era o 909, - é lá.

Cheguei, todo molhado, tímido, entrei no auditório e fui sentar lá atrás, era aula de Zoologia, a professora estava falando sobre métodos de defesa utilizados por alguns invertebrados marinhos. Ela apagou a luz da sala e deu play num vídeo, era um vídeo de um bicho esquisito que até hoje nãe sei o nome, ele estava fora d´água e alguém gravava de perto, 10 segundos e nada acontecia, de repente o bicho expele uma gosma branca na pessoa que estava gravando, KKKKKKKK, a sala toda começou a rir daquilo e eu mais ainda, aquilo foi o alívio cômico do meu dia. No final da aula, uma garota vem falar comigo: - nossa, sua risada é engraçada. - eu também sou. - hahaha, qual é seu nome? - Juan, e o seu? - Prazer, Mavinni. Tá sabendo da calourada de amanhã? vai ser bem legal, você vai? [...]

Já eram 18h15 e eu estava ansioso, o professor de cálculo ainda não tinha encerrado a aula, também, passou a tarde falando indevidamente de Deus durante a aula. A aula encerrou e a turma resolve não jantar no restaurante e ir direto para a calourada. Eu estava com Mavinni, queria ficar com ela aquela noite, esse talvez seria meu objetivo principal, além de me enturmar com a galera. Não demorou muito para os funks começarem a tocar e as vaquinhas para comprar bebida já se formavam; eu, Mavinni e mais três colegas compramos três vinhos São Braz, talvez fosse o suficiente. Com dois copos eu já comecei a me soltar, nem sabia que eu sabia dançar, peguei Mavinni e começamos a dançar um reggaeton; (é agora) no meio da música alguém puxa e começa a dançar com ela, não demorou muito e eles já estavam se beijando. Puts, que bad, fiquei com raiva e comecei a beber vorazmente.

Um rapaz chega do meu lado e fala: - Vai com calma baby, temos mais 5 anos pela frente; ele pega o copo da minha mão vira na sua boca, joga o copo no chão, se aproxima de mim e me beija. Uau, a galera olha para nós e grita: - uhhh eita. Não lembro mais de muita coisa dessa festa, não vi mais Mavinni e certamente fiquei rodando e vomitando pelo local. A festa acaba e vou esperar meu primeiro ônibus, vomitei horrores na parada, depois de pegar três ônibus talvez eu chegasse em casa normal e minha tia não perceberia que bebi, mesmo assim, ela iria me perguntar porque cheguei tarde. Chego em casa e minha tia já me aguardava no portão. - Onde tu tava menino? Chegou muito tarde, quando tua mãe souber que você chegou essa hora, ela te manda de volta pro interior imediatamente.

Continua...

PRÓXIMO CAPÍTULO: MUDANÇAS E VIAGENS

previsão de lançamento 27/01/2020

Juan Bercles
Enviado por Juan Bercles em 24/01/2020
Reeditado em 04/05/2020
Código do texto: T6849822
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