Mal Interior

Relato eu, a amargura de uma existência angustiada e desprezível... Pois escolha é o que não tenho, desde que o acaso me abatera como os pregos fincados às mãos de Cristo. Pois descrente sou hoje, inconsciente em meu corpo e mente que fogem de mim, oscilando como um bêbado entre a instabilidade mental e a realidade... Num frenesi colérico. Não suporto mais guardar para mim mesmo tanta aflição. Por isso, não tendo a quem advir escrevo esta última carta, aflito.

Moramos eu e minha noiva numa velha, mas muito bem conservada casa no alto de uma depressão montanhosa que barra o mar. Da janela do segundo andar a vista é fascinante e ao mesmo tempo assustosa vendo-se as pedras lá embaixo. Não temos vizinhos e as habitações mais próximas ficam onde a vista não alcança. Antes de tudo acontecer éramos o casal mais feliz... Exceto o meu problema com o alcoolismo.

“Mate-a!”, diziam as vozes. ”Sem dó, sem pensar!” insistiam.

Enterrei-a no jardim nos fundos da casa. Tudo com o auxílio de meu vício alcoólico. Depois de algum tempo, silente, sentado em minha poltrona, era como se nada de meu ato atroz, frio e brutal houvesse ocorrido...

“Ela nunca existira” diziam-me as vozes, ecoando em meus ouvidos. ”Jamais!”

---NUNCA!---Gritei eu à casa vazia, insensível a meus atos.

*****

Impelido por uma terrível e desconhecida força, com uma pá, esta laminada nas bordas altamente afiadas, escondida num canto da casa, esperei-a dormir... E às horas mais mórbidas da noite, já entorpecido pelo álcool, julgava eu ser o momento almejado. Lá fora, através os vidros das janelas eu via as gotas d’água golpearem fortemente e a luz dos relâmpagos de uma torrencial e intrépida tempestade, que transformara a casa num jogo intermitente de luzes e sombras.

Peguei o instrumento cortante quase que por instinto, num transe inconsciente, como se alguém me tivesse deixado em mãos. Fui ao quarto na parte superior da casa, subindo as escadas; a mão esquerda deslizando no corrimão de madeira e a outra com a pá, o gume afiado e reluzente à luz dos relâmpagos... O som rangido dos degraus de madeira eram abafados pelo som da tempestade que caía fortemente.

Segui pelo corredor mal-iluminado pela janela de vidro em seu término, de modo a quem andasse pelo corredor via de frente a janela. Andei passando por outros dormitórios à minha direita quando, no instante em que o relâmpago projetou sua claridade através do vidro da janela, vislumbro um movimento a meu lado esquerdo, na parede... Por um momento fiquei inerte. Até que reconheci a silhueta em minha frente, desvelada novamente pelo clarão de um relâmpago que iluminou todo o corredor: Era um espelho. Não pude ver, a princípio, pois havia pouca luz. Apesar de não lembrar-me daquele espelho... Outro relâmpago, desta vez tomei um susto com o estrondo e por pouco não soltei a pá. Notei algo estranho: No escuro do corredor meus olhos tinham adotado um brilho rubro, vermelho como brasas; mas aquele não era eu!... Notava-se um sorriso sagaz e diabólico em meu reflexo iluminado pela luz vinda da janela ao meu lado, no fim do corredor. Metade do meu rosto iluminado era eu, a outra não. O lado escuro da lua sorria para mim impiamente. Talvez fosse minha imaginação.... Talvez não. Esperei o próximo lampejo. Seria a qualquer momento, só assim teria eu certeza. A meia-luz do corredor apavorava-me. Os olhos incandescentes. Foi o medo que me enraizou os pés ali, não me deixando sair. Um calafrio negro que já me atingia até a medula dos ossos, e, ao mesmo tempo, a necessidade de convencer a mim mesmo ter sido a bebida em excesso a causa das... “alucinações? ” Alucinações: É isso que eu queria que fosse. Neste momento, meio que hipnotizado com o meu outro–eu, veio o lampejo desvelador, expondo com suficiente luminosidade o meu rosto original. Mas logo, com o retorno das sombras, aquele sorriso sarcástico e os olhos em brasa retornavam, aos poucos, ostentando novamente a minha efígie diabolicamente transformada, até que, repentinamente, aquela moldura caiu da parede onde estava, quebrando-se em pedaços pelo chão de madeira. Foi um susto, mas ao mesmo tempo um súbito alívio.

Meio atordoado, saí de encontro ao já tão desejado quarto, com o coração a arrebentar-me a caixa-torácica. A porta encontrava-se entreaberta a minha espera. Fiquei observando entre a estreita passagem: À luz do luar, que entrava pela janela de vidro no teto do grande quarto, ela resplandecia insidiosa sobre o leito... Dormia.

Entrei cuidadosamente no aposento, empurrando a porta que gemeu um pouco as dobradiças. Pego uma cadeira e contemplo-a próximo ao leito. “Como é bela!”, pensei eu naquele instante. ”Um anjo eu diria”: Pele alva, cabelos negros como a noite mais desnuda, lábios rosados e encantadores. Mas parecia haver ela chorado muito; Olhos inchados, um lenço ainda úmido sobre a cabeceira da cama. Por isso o sono tão profundo.

Quase havia me esquecido o que vim fazer ali, até a luz de um relâmpago me despertar do estupor que aquela beleza inspirava. Não havia de perder tempo. Subi na cama, de frente para a cabeceira, de modo que aquele corpo inerme ficasse entre minhas pernas e em minha frente, tomando o cuidado de não despertá-la. E, com a frieza de um símio furioso, cravei a pá laminada e cortante em seu corpo indefeso, começando pelo pescoço, como no de um animal nojento... Depois em seu rosto, desmembrando-lhe os dentes e lhe rasgando a boca quase até a base da mandíbula... Enquanto eu desferia os golpes, o sangue a jorrar, a tempestade parecia se intensificar ainda mais. Não houve grito, nem arquejo. Só o sangue em abundância que jorrou forte e rubro em lençóis brancos, que enterrei junto ao corpo, como em mortalha.

Não é preciso dizer o motivo e o porquê de meu ato desumano, e que agora me arrependo. Pois hoje, após o término deste desafortunado relato, irei jogar-me ao mar, barrado por um penhasco logo atrás da casa, e morrer. Pois esta madrugada, quando despertei insone, em minha cama senti incrédulo um toque frio e assustador. Relutante, abro os olhos; Vejo aquele corpo, um dia belo, inanimado e imóvel sobre a cama junto a mim; um braço gélido em meu pescoço. Com olhos arregalados fico inerte, aterrorizado, a respiração contida em meus pulmões. Pálida, gélida e morta ela sorria uma falsa alegria, deitada de bruços com a cabeça virada para mim, com seus dentes quebrados e deslocados em sua boca rasgada e escancarada, como se desejasse me engolir. Ainda continha, em seus lábios e dentes, vestígios de sangue ressecado e terra; Como se aquele corpo tivesse, sem a menor explicação, saído dos não-sei-quantos–quilos-de-terra, no jardim, e se acomodado sobre a cama. Aqueles olhos cegamente fixos e leitosos em meu encalço, aqueles cabelos engrenhados misturados com terra e pétalas das flores do jardim...

“E claro que eu a enterrei... E óbvio! Mas como está aqui?!” Mas isso eu só me perguntei depois que saí dalí, pois naquele instante eu só pensava em como me desvencilhar daqueles braços... Eu, com os nervos e músculos duros e inflexíveis de pânico.

Depois de algum tempo (Não sei ao certo quanto) saí do desde então hostil e repugnante aposento, sem dar às costas àquele repulsivo corpo inanimado, que já dispersava seu fétido e nauseante odor de morte pelo quarto. A porta estava entreaberta. Enquanto eu me retirava, de costas em direção a porta, àqueles olhos, brancos como um par de pérolas, pareciam sempre me fitar, fixos em mim. Abri a porta, que fez gemer as dobradiças, bati com força e corri loucamente escada abaixo, e agora escrevo, em letras trêmulas e desnorteado, a última carta de meu infortúnio... Os trovões a ribombar.

Ouço a porta bater lá encima... O ranger das dobradiças... Passos letárgicos.

No caminho de saída da casa, passando pelo jardim, agora totalmente destruído, ainda ouvia eu a lânguida voz a me chamar. Vejo um enorme buraco e a pá ainda suja de sangue a seu lado... ESTOU EU NUM PESADELO! MAS NÃO...

PS: Quem quer que encontre este bilhete tão incoerente, mas verdadeiro, pois vejo-me um homem lúcido e são, vos peço que não o considere ilegítimo. Pois agora exorcizarei tudo de mal que me rodeia, junto aos meus tormentos mais profundos, nas insondáveis águas deste mar. ADEUS.

(CARTA ENCONTRADA EM PEQUENO BAÚ DE MADEIRA, SOB A CÓPA DE UMA ÁRVORE, NO ALTO DE UM ABISSAL). O suposto corpo jamais foi encontrado.

H Mastroiany
Enviado por H Mastroiany em 18/01/2020
Reeditado em 01/12/2022
Código do texto: T6844775
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