A Pensão
A Pensão
por: Rose Paz
Alex, um jovem recém-formado professor de história antiga, andava deprimido. As aulas particulares não rendiam o suficiente para viver e ansiava, como muitos, por um contrato efetivo. Já havia mandado inúmeros currículos, mas nada aparecia além de bicos por temporada em cursinhos e as férias de fim de ano haviam chegado.
Porém, certa noite, além da luz da geladeira vazia, um e-mail solitário iluminou seus olhos. Uma oportunidade no interior de Minas Gerais estava disponível há dois meses. Parecia que ninguém havia preenchido as exigências para a vaga de professor. Respondeu e recebeu a confirmação com o endereço da escola logo no dia seguinte. Era uma sexta-feira, quando juntou o pouco que tinha, entregou o quarto e partiu durante a tarde. Estava tão ansioso que não se ateve aos detalhes.
Pegou um ônibus na Rodoviária rumo à cidade de Varginha. Não dispunha de muito dinheiro e esperava conseguir um quarto barato até poder se estabilizar.
Chegou à noite e decidiu pedir um UBER, mas o serviço não estava disponível na região. Pensou em dormir no banco da pequena rodoviária até que amanhecesse, mas o fiscal, com “cara de poucos amigos”, orientou que procurasse por uma pensão no centro.
“Até que está agradável para uma caminhada” – pensou, resignado.
Tudo que Alex possuía estava no mochilão pendurado em suas costas. A fome dava sinais sonoros de existência, mas o comércio já havia fechado. Olhou o relógio e viu que já era bem tarde.
De acordo com o fiscal, a pensão não era muito longe. Cerca de uns trinta minutos da rodoviária. Colocou o endereço indicado no bolso da calça e, enquanto andava, um calafrio percorreu sua espinha. Normal estar apreensivo - pensou -, tudo era novidade. Uma oportunidade, numa nova cidade.
Há muito havia se acostumado a vida de alojamento da faculdade e desde cedo tinha aprendido a se virar. Não tinha amigos, só conhecidos e, portanto, ninguém importante a ser deixado para trás que não pudesse ser contatado com um telefonema.
Realmente não foi difícil encontrar a tal pensão. Estava ansioso por um prato de comida, mas o lugar parecia decadente e estava às escuras. Tocou a campainha, bateu na porta, mas ninguém atendeu. Concluiu que talvez tivesse falido e o fiscal ainda não soubesse.
Passava da meia noite, e a luz do único poste em frente ao velho estabelecimento começou a piscar. Ficou incomodado; contudo, um carro passando do outro lado da rua aliviou sua tensão. Parecia ser um grupo de pessoas vindo de uma festa. Fez sinal para que parassem e agradeceu aos céus por não estar mais sozinho.
- Oi. Boa noite. Podem me dar uma informação? – perguntou pela janela.
Eram três rapazes e uma moça, aparentemente embriagados.
- Claro! O que você quer saber? – falou o cara ao volante.
- Me deram o endereço dessa pensão, mas parece que tá fechada há séculos e fiquei sem ter pra onde ir. Sabem de algum outro lugar?
- Ela não tá fechada não. Depois das onze a entrada é por trás. Ninguém te avisou? – falou a moça sentada atrás.
Agradeceu e deu um adeus vendo o carro se afastar. Ficou parado um tempo, observando a fachada, procurando identificar algum sinal de vida, mas nada. Cabreiro, circundou a propriedade procurando a tal entrada que haviam falado, até que uma lâmpada incandescente chamou sua atenção. Era uma porta simples que à luz do dia poderia passar despercebida. Não havia campainha, por isso bateu.
- Quem é? – disse uma voz abafada vinda de dentro.
- Boa noite senhor. Venho de longe e o fiscal da rodoviária me disse que podia arrumar um quarto aqui. – informou, pela fresta.
A porta se abriu com um ranger das dobradiças, mas ele não viu ninguém. O ambiente estava na penumbra. Mal deu dois passos e ouviu a porta fechar e ser trancada atrás de si. O vulto de um homem baixinho circundou o balcão e jogou um enorme livro preto sobre ele.
- Quanto tempo vai ficar?
- Apenas essa noite. – disse Alex, pretendendo encontrar um lugar definitivo no dia seguinte.
Está sozinho?
- Sim.
- Tem bagagem?
- Só esse mochilão.
- Escreva seu nome completo e o número de um documento ao lado. Pagamento adiantado. Café de oito às dez, aqui em baixo.
Alex tentou ver o rosto do homem, mas ele estava envolto em sombras contra uma luz amarela e fraca. Sentiu novamente um calafrio percorrer sua espinha, mas atribuiu o fato ao cansaço da viagem.
- Tome. Vai ficar no 301. – disse o homem jogando uma chave sobre o livro. – Suba dois lances de escada. O quarto é no final do corredor.
Sem dizer mais nada, o homenzinho sumiu por uma porta por trás do balcão, de onde uma agulha pulava a mesma faixa abafada em um disco de vinil.
Alex guardou a carteira com o documento no bolso de trás da calça jeans e subiu os dois lances da escada, que rangeram a cada pisada. O lugar era sinistro, mal iluminado e cheirava a mofo, mas, por uma noite bastaria.
Assim que colocou a chave na fechadura, a mesma se abriu e novamente um ranger se ouviu das dobradiças. Custou a achar o interruptor que, na verdade, não existia. A luz se acendia por uma cordinha presa à lâmpada que pendia do teto. Parecia um cenário dos anos trinta. Deu uma olhada ao redor pensando que, mesmo em seus piores dias, nunca havia se instalado em um local tão ruim. Aquele pardieiro não via uma tinta há anos. Uma cama de ferro, uma mesinha estreita, uma cadeira e um guarda roupas com duas portas, compunham a mobília pobre e sem graça. A única coisa relativamente moderna era uma pequena geladeira na parede oposta.
Estava esgotado. Jogou a mochila dentro do guarda roupas e desabou sobre a cama do jeito que estava. Pouco tempo depois, a sensação de estar sendo observado o fez sentar sobressaltado. O baixinho estava de pé, aos pés de sua cama, carregando lençóis e toalhas. Tinha certeza de ter fechado a porta, mas não de havê-la trancado. Ainda assim, isso não lhe dava direito de entrar sem bater.
- O senhor me assustou. Não o ouvi bater.
- Não bati. Não queria incomodar. Achei que fosse precisar de roupa de cama e toalhas limpas.
O homem colocou o fardo sobre a mesinha e saiu em silêncio, sem esperar por um agradecimento ou interpelação.
Alex não estava dormindo, apenas de olhos fechados. Estranhou não ter ouvido o ranger do assoalho velho ou das dobradiças oxidadas. Aquilo o deixou tenso e decidiu que, agora com toalhas, um banho quente podia ajudá-lo a dormir.
O banheiro no quarto era pequeno, o espelho manchado, o sanitário amarelado e uma banheira antiga com cortina de plástico ocupava o lugar do box. Pediu aos céus que tivesse água limpa e quente e suas preces foram atendidas, ainda que um barulho no encanamento confirmasse que a água não passava por ele há um bom tempo. Encheu a banheira e se permitiu ficar imerso até relaxar. Seu hálito frio acusou que a temperatura tinha caído sensivelmente, apesar de estar na primavera. Enrolou-se nas toalhas, vestiu-se rapidamente e se abrigou debaixo das cobertas finas. Ele não era religioso, mas achou melhor fazer uma prece antes de dormir.
Ainda estava escuro quando abriu os olhos. Um barulho irritante, vindo da geladeira, o despertou. A porta estava aberta. O celular sobre a mesinha acusava três da madrugada.
- Ah, isso só pode ser brincadeira! – lamentou com os olhos injetados.
A luz amarela de dentro do eletrodoméstico refletia exatamente sobre seus olhos e uma trepidação insistente vinha do motor.
Alex arrastou seu corpo para fora da cama, sentindo os dedos dos pés congelarem pelo bafo nebuloso do refrigerador. Bateu a porta com força e correu para debaixo das cobertas, mas novamente a porta se abriu. Podia jurar ter ouvido um sussurro vindo de dentro dela, entretanto, calculou que só podia ser uma alucinação auditiva provocada pelo cansaço, a fome e o ruminar desagradável do motor. Irritado, levantou-se outra vez trazendo a cadeira pelas mãos e travando a bendita porta com ela. Ficou de pé por mais um minuto, observando seu feito, e tentou dormir.
O sol já estava alto no céu quando acordou. Eram nove e trinta, segundo o celular, e estava faminto. Desceu as escadas as pressas com medo de perder o café. Na certa os outros hóspedes já teriam acabado. Porém, ao chegar ao pé das escadas não encontrou a tal sala de refeições. Tocou a campainha do balcão e o homenzinho apareceu vindo da mesma porta da noite anterior.
- Bom dia. Não estou conseguindo achar a sala de refeições.
O homenzinho nada respondeu apenas se deslocou para a direita da bancada e arrastou uma porta de correr que dava para uma sala escura e vazia.
- Cadê os outros? – perguntou surpreso.
- Quem?
- Os outros hóspedes?
- Só tem você.
O atendente abriu as cortinas de duas janelas basculantes e se dirigiu para o fundo da sala, retornando com uma garrafa de café e uma bandeja com pão e margarina.
- Só isso? – perguntou indignado.
- Acho que é o suficiente. Não é bom desperdiçar comida. Atrai insetos.
Alex não queria criar confusão, apesar da evidente grosseria do homem. Mal tinha chegado à cidade e esse não seria um bom cartão de visitas, mas algo o intrigava e não podia deixar pra lá.
- Só mais uma coisa? – chamou a atenção do atendente, antes que este sumisse como de costume. – Por que me deu o quarto do ultimo andar se só tem eu de hóspede?
O velho o observou por um momento antes de responder.
- É o melhor aposento. Só tem geladeira nele.
Alex se deu por satisfeito, imaginando as condições precárias em que deviam estar os outros. Tomou o pobre café da manhã e retornou ao seu quarto. Queria explorar a cidade e localizar a escola. Trocou de roupa e saiu, mas não deixou a chave no claviculário sobre o balcão da recepção.
Era sábado, o dia estava bonito e agradavelmente ensolarado, contrastando com o frio que sentiu na noite anterior. Andou por alguns minutos, mas não viu muitas pessoas como esperava em uma cidade do interior. Parecia deserta, excetuando as pessoas que entravam em suas casas e estabelecimentos a medida que passava. Não era paranoico, mas algo dizia que estavam se escondendo de alguma coisa, ou dele. Tentou tirar a impressão da cabeça pedindo um café no balcão do primeiro bar que viu.
- Bom dia! – cumprimentou efusivo.
- O que vai querer? – perguntou o atendente de forma rude.
- Um café e uma informação, por favor.
- Não servimos informações. – cortou o homem.
Alex não entendeu o motivo da aspereza e o interpelou.
- Perdão, mas desde que cheguei ontem a noite, tenho percebido uma hostilidade gratuita. Por acaso não gostam de turistas?
O homem olhou furtivo para os lados, como quisesse ter a certeza de que não poderia ser ouvido.
- Olha rapaz, não sei quem você é e pouco me interessa, mas se estivesse em seu lugar, pegaria minhas coisas e dava o fora daqui, principalmente do lugar onde se hospedou. Coisas estranhas acontecem por lá e acabam afetando a mente das pessoas. - sussurrou tenso.
Sem dizer mais nada, o homem botou o café sobre o balcão e foi para os fundos do estabelecimento. Alex, desconcertado, viu-o desaparecer sem ter tido a chance de perguntar pelo endereço da escola. Sorveu devagar a bebida quente, botou dois reais sobre o vidro da bancada e saiu a esmo. Tentaria achar a escola nem que fosse por sorte. “Não deve ser longe” - pensou.
Eram cerca de dez horas, mas estranhamente não haviam pessoas transitando pelas ruas, ou mães nas calçadas com seus carrinhos de bebê. O mais curioso era a percepção de que ele era a causa da distopia, principalmente pela incômoda sensação de estar sendo constantemente observado. Por trás dos arbustos que ladeavam as calçadas, um leve chacoalhar das folhas confirmava a sensação.
Em sua vida solitária, já tinha visto um pouco de tudo. Suas pesquisas em história antiga confirmavam que a crença é uma necessidade humana que tende a projetar os frutos da imaginação como um fato real. Esse tipo de comportamento costuma ser bem peculiar em cidades do interior, podendo criar situações interessantes, e até engraçadas. A imaginação das pessoas é um terreno fértil, mas quando adubado por fortes emoções, pode ser perigoso. Entretanto, a referência à pousada o perturbou.
A escola ficava a dez minutos de caminhada da pensão, e tinha uma construção linear que tomava um quarteirão ao fim de um cruzamento. Não viu outros estabelecimentos com quartos para alugar no trajeto. Circundou as grades que davam visibilidade para o terreno, e chegou a se imaginar fazendo parte de tudo aquilo, mas não identificou qualquer atividade ou um segurança que pudesse lhe esclarecer alguma coisa. Passou em um mercadinho e comprou algumas frutas, recebendo o mesmo atendimento hostil. Retornou para a pensão ainda sob o olhar escuso dos eventuais passantes, que não respondiam aos seus cumprimentos.
O relógio sobre a recepção marcavam doze horas e o salão de refeições estava aberto, mas não localizou o velho carrancudo. Estava um tanto decepcionado com a receptividade da cidade e decidiu comer no quarto. Como único hospede, almoçar entre mesas vazias seria um tanto deprimente.
Colocou as compras na geladeira e fechou a porta, mas ao se virar, a porta se abriu e ouviu os mesmos sussurros da madrugada anterior. Não era o barulho do motor. O quarto estava silencioso e ele bem desperto. Aproximou-se lentamente, observando a luz do interior piscar, quando um enxame de baratas saiu pelas prateleiras devorando suas compras. Assustado, correu para a porta, mas esta não se abria. Os insetos saíam em profusão, tomando conta das paredes, enegrecendo a pintura descascada e obstruindo a luminosidade vinda da janela. Nervoso, subiu na cadeira e gritou pelo velho do qual nem tinha perguntado o nome.
Um som do ranger das escadas indicava que alguém vinha em seu socorro, mas quem quer que fosse, parou do lado oposto da porta sem a abrir.
Alex tirou um dos sapatos tentando matar o máximo possível dos insetos, até que a porta enfim se abriu:
- Por que de tanto barulho? O que é que você quer? – perguntou o velho atendente.
- O senhor não está vendo? – disse Alex ao apontar para as paredes, mas, surpreendentemente, não havia nada. Olhou para a geladeira e a porta estava fechada. Atônito, desceu da cadeira e abriu a porta do eletrodoméstico. Tudo estava normal. Suas frutas, a luz amarela, e nenhum vestígio dos insetos.
- Eu posso jurar que elas estavam aqui! – gritou ofegante.
- Elas quem? – olhou o velho apático.
- Milhares de baratas! Elas saíram da geladeira e forraram as paredes.
- Sei...- disse o homem com ar descrente.- Você usa drogas rapaz?
- Não! Claro que não! – respondeu ofendido.
- Então foi o sol. Você ficou muito tempo na rua. Beba um pouco d’água, tome um banho e desça pra almoçar. Você deve estar precisando de uma boa refeição. – disse o atendente saindo e batendo a porta atrás de si.
Alex tinha perdido a fome. Não havia explicação para o que tinha visto. Não se tratava de um delírio provocado por insolação. Ele estava bem e tinha absoluta certeza do que tinha visto. Desceu correndo as escadas a tempo de alcançar o velho.
- Quero outro quarto!
- Não tenho disponível. – continuou descendo.
- Mas, o senhor disse que eu sou o único hóspede! Não faço questão da merda da geladeira.
- Impossível, os outros estão em obras.
- Quero ver, então!
Com ar de enfado, o atendente rumou a recepção e pegou um molho de chaves. Percorreu todos os quartos com Alex abrindo cada uma das portas, constatando o que o velho havia dito. Contudo, antes do atendente trancar a última porta, Alex observou uma mala encostada próxima a janela do quarto.
- Espera! – gritou, travando a passagem do homem com o braço. – O que é aquilo?
- Isso não é nada. Deve ser de alguém da obra.
Desconfiado, Alex entrou e deitou a maleta no chão, inspecionando o fecho que se abriu sem esforço.
- Isso é uma mala de mulher, e o que tem dentro não parece de alguém que trabalhe com obra.
- Não sei o que esse troço tá fazendo aí. Provavelmente alguma hóspede deixou pra trás. Você é da polícia, por acaso?
A resposta não o convenceu. Estava exasperado, confuso, mas não a ponto de ignorar que alguma coisa de errado tinha naquele lugar. Desceu as escadas com o homem e passou direto pela portaria. Não se importou de ter deixado a porta do quarto aberta, não tinha nada de muito valor em sua mochila, bastava a certeza de ter sua carteira junto a si.
Voltou ao bar onde tinha tomado café e procurou pelo balconista, que não estava a vista. Olhou ao redor e, não vendo mais ninguém, contornou o balcão adentrando o estabelecimento.
- Desculpe-me por entrar assim, mas como ninguém atendeu eu...
O homem levantou sobressaltado, quase derrubando seu almoço.
- O que quer de novo? Não disse pra pegar suas coisas e dar o fora? – interrompeu-o com aspereza.
- Escute, o senhor tinha razão. Aconteceu uma coisa muito bizarra lá na pensão, mas não posso ir embora sem entender o que está havendo. Vim pra pegar a vaga de professor, mas cidade parece estar me rejeitando... Teve a coisa das baratas e uma mala de mulher esquecida em um dos quartos e...
- Não quero saber! Cai fora! – disse o homem tapando os ouvidos.
- Isso tudo parece loucura! Me ajude, por favor! – implorou.
O homem parecia não saber o que fazer, mas ao ver a angústia do rapaz, respondeu:
- Olha, você não foi o primeiro. Desde que aquele velho abriu o lugar, há uns cinco anos, todo mundo que se hospeda lá, some. A cidade passou a ter má fama e ninguém quer mais vir pra cá.
Alex achou impossível que a pensão tivesse apenas cinco anos de funcionamento.
- Não pode ter tão pouco tempo, o lugar está caindo aos pedaços. E como é possível as pessoas sumirem e ninguém dar por falta? Varginha não fica no fim do mundo.
- Varginha? Onde fica Varginha?
Alex, nervoso, pegou a carteira no bolso de trás da calça procurando pelo canhoto da passagem. Não podia estar tão enganado, mas, quando o pegou estava em branco.
Percebendo que o ar intrigado do homem era genuíno, deu passos lentos para trás até alcançar a porta do estabelecimento.
- Ei rapaz, espere! – chamou o homem, mas Alex já não o ouvia.
Ganhou a rua rapidamente, intentando retornar à pousada, pegar suas coisas e partir. Já não importava o emprego ou o que quer que estivesse acontecendo por ali. Sua intuição dizia que era hora de ir embora e era isso que pretendia fazer. No entanto as calçadas, antes desertas, agora estavam com as pessoas que antes se escondiam dele, como se o esperassem passar. Diminuiu a passada tentando adivinhar o que nele as tinham atraído, quando percebeu que, dos bueiros, uma imensidão de baratas e vermes o seguiam como um cortejo nojento, subindo pelas suas pernas e devorando sua carne.
***
Dizem que quando olhamos para o abismo, ele nos olha de volta. Talvez Alex tenha olhado demais para o vazio da geladeira de seu quartinho de aluguel. Afinal, nunca tinha saído de lá.
O delírio da fome tem dessas coisas; puxar a pessoa para um lugar imaginário, onde a realidade dura se confunde com insondáveis possibilidades de uma mente obscurecida pelo abandono - a pior das inanições.
Quando seu carrancudo senhorio conseguiu arrombar a porta do quarto, o corpo do rapaz jazia encolhido sob os lençóis da cama, onde baratas roíam seus pés. Os olhos estavam estáticos e arregalados de desespero. Talvez a última expressão gravada em um rosto que não teve forças e nem a quem gritar por socorro. Bêbados, mendigos e prostitutas foram os únicos curiosos a cercar o local, aproveitando-se para saquear o pouco que restara ao rapaz. As pessoas ditas de bem não costumam passar por perto de lugares como este, apenas o órgão público encarregado da remoção do corpo. Em sua memória, somente o nome registrado nas cartas de cobrança espalhadas pelo chão, e a porta aberta da geladeira vazia, cuja luz se apagou com o corte da energia.
O demônio da decadência não tem rabo, nem chifres, mas costuma assombrar qualquer mortal com uma possível realidade.
Fim
***
Caro Leitor:
Caso tenha apreciado a leitura, registre seu comentário e indique a seus amigos.
Grata ;)