A Igreja
Campo Dourado é uma cidadezinha interiorana de pouco mais de dois mil habitantes. A mineradora Golden é a maior contratante da pequena cidade. Fora a indústria de minério há pequenas lojas, tavernas, dois hospitais modestos, um pequeno corpo policial, algumas dezenas de produtores agrícolas e a Igreja. E que IGREJA!!
Victor, um rapaz de 22 anos, magricela e míope, cabelos negros lisos, porém rebeldes, é integrante do quadro de funcionários do Hospital Central onde desempenha a função de recepcionista. Todo santo dia o rapaz percorre o caminho até o trabalho a pé. Posiciona seus fones de ouvido auriculares e ao som do melhor Rock Indie segue seu caminho. Para chegar ao hospital é necessário serpentear todo dia a bela Igreja da cidade.
Curiosamente, a dita igreja contrasta e difere das demais construções do pequeno local. Voluptuosa, Pintura em salmão intacta e retocada, ladrilhos decorativos em mármore e no topo uma linda cruz dourada, que alguns ousam afirmar “a boca pequena” que seja de ouro maciço. Como em uma cidade tão humilde e quase nada religiosa a igreja é a construção mais soberba e arrogante? Questiona Victor todo santo dia ao vislumbrar a construção. Mas este detalhe não é o mais intrigante! Por que uma igreja precisaria de guardas armados?
Victor estava ciente que os seus conterrâneos também achavam aquilo estranho, mas nada tão estimulante a ponto de se enveredar uma investigação. A verdade era que todos estavam preocupados demais com suas próprias vidas para mergulhar nessa questão.
Mas sempre que possível ocorria uma socialzinha entre vizinhos e o povo todo teorizava. Dona Vanessa da padaria dissera certa vez que o motivo dos seguranças era devido a uma réplica da arca da aliança que estaria guardada dentro da igreja, mas oficialmente isso nunca foi comprovado. Seu José, vigilante do hospital Central, tinha certeza de que era para que não houvesse roubo do dízimo. O pai de Victor era convicto de que o motivo dos guardas era para que não ocorresse depredação, já que o maior benfeitor da construção era Fernando, CEO e principal dirigente da GOLDEN, que nas palavras dele era: Um católico fervoroso e obstinado.
A teoria mais bizarra, no entanto, é a do seu Antônio dono do Mercadinho Fênix, onde Victor costuma comprar pães toda manha para tomar seu café assim que chega no serviço, ele jura de pé junto que certo domingo de madrugada, por volta das três, ao voltar embriagado do bar seguiu até sua casa passando pelo entorno da Igreja.
Enquanto caminhava ao lado do belo edifício o caminho estava ermo segundo o dito cujo, com apenas alguns cães virando latas de lixo e gatos zanzando de lá para cá. Ele afirma ter voltado os olhos em direção a igreja e por uma das janelas, que no seu interior continha uma luz sutil mas acessível, conseguiu ver um grupo de pessoas com túnicas vermelhas.
O homem afirmou que elas continham na cabeça máscaras de bode escondendo suas identidades e em círculo bailavam de mãos dadas parecendo proferir alguma cantiga estranha.
Antes que ele fosse tomado por severa angústia e se arremessasse na moita mais próxima do outro lado da rua, ainda conseguiu ver que os olhos das máscaras de bode brilhavam em um vermelho vivo apavorante e que as bocas dos adereços tinham nelas talhado um sorriso depravado e maléfico.
O álcool pareceu esvair-se de sua corrente sanguínea, estava horrorizado e temendo ser capturado por aquelas pessoas estranhas caso fosse avistado, então permaneceu na moita. A vegetação era generosa e cobria todo o corpo do bebum. Ele inspirava e expirava vertiginosamente, na ânsia de recuperar o controle. No ápice do desespero resolveu girar na terra e com isso levar o corpo alguns centímetros para esquerda conseguindo adentrar na vegetação mais densa e se afastar ainda mais da igreja nefasta. Dali não sairia até que raiasse o dia, já havia decidido, então ficou de cócoras bem posicionado entre as folhas.
Já instalado na vegetação alta, suando as bicas e com as pernas tremendo como vara verde, firmou sua atenção toda na igreja, já que alguém poderia tê-lo visto e isso significaria seu fim, por suposto.
Com o coração quase para ser ejetado pela boca, seu Antônio num esforço de melhorar o que via (já que estava mais longe agora), apertou bem os olhos e ainda conseguiu ver que os participantes daquele ritual bizarro haviam tirado as túnicas e estavam completamente nus, mantendo apenas as cabeças de bode horrorosas.
A iluminação dentro da igreja de repente foi desligada e seu Antônio jura ainda ter ouvido gemidos e gritos no decorrer de todo aquele show demoníaco.
E foi apenas quando o sol brotava resplandecente no horizonte que seu Antônio discretamente saiu da vegetação alta e seguiu caminho para casa como se nada houvesse ocorrido, estava exausto, olhos fundos, e parecia ter envelhecido uns dez anos.
Para um pedestre mais desatento era como se ele tivesse ido pegar algo no chão perto das arvores e depois retomado seu trajeto na calçada. Será que alguém teria o avistado? Ele não lembra de ter visto os guardas ao lado de fora naquele horário, mas vai saber? Ele estava com uma alta concentração de álcool no sangue, poderia apenas não ter notado a presença dos mesmos.
Agora, quando seu Antonio vai beber ele prefere dar a volta na outra rua e andar um pouquinho mais até chegar a sua casa. Não passa perto e nunca mais irá adentrar o recinto. Estas são palavras do próprio.
Na teoria do seu Antônio, extremamente controversa, os poucos moradores abastados da cidade realizariam na igreja rituais satânicos com todo tipo de profanação e até sacrifícios humanos para manter o domínio da cidade e conseguir prosperidade e dinheiro.
Victor sempre ouvia as histórias do seu Antônio com muita paciência e respeito. No decurso do testemunho ora com vontade de rir, ora apreensivo e com certo medo. Como crer que a casa de Deus estaria sendo utilizada para rituais de depravação? E como ninguém impediria isso? E o padre? E os funcionários? Não saberiam ou estariam envolvidos? E a própria polícia? Não não, é muita loucura ter o mínimo de consideração por essa teoria.
Mas de todo modo ninguém acreditava no seu Antônio. As pessoas sempre diziam as mesmas coisas: — Ele é louco e bebum, o que teve foi apenas um delírio, ou diziam: —Quando não está trabalhando em sua mercearia está mergulhado em cachaça, pobre diabo.
Mas sempre que Victor percorre o caminho ao lado da igreja a história de seu Antônio emerge à consciência. Um súbito frio na espinha quase sempre dá o ar da graça. "—Não, não pode ser". Profere Victor mentalmente.
O rapaz solta uma gargalhada e segue seu caminho.
Mas...........
— Será?