Lembranças do meu aniversário

Deito-me em minha cama, já não mais preocupada, com o passar do tempo. Em meu íntimo sei que se não pensar muito no assunto, até pode ser que não me lembre. Bobeira minha achar que posso fugir, do que me espera no breu que toma conta de meu quarto. Até que poderia acender a luz do abajur – pequenas fresta saem dele, em formatos de estrelas e pequenas luas minguantes, que tomam conta do forro branco de pvc que cobre as telhas de meu quarto- aquele que ganhei de aniversário de 18 anos. Porém, seria essa a noite fatídica, que assola as minhas noites de descanso. Se durmo pouco, é porque acordo desses pesadelos, quando durmo muito, fico presa nesses terríveis sonhos. Quando eles não aparecem, acordo com mais medo ainda, por que acho que estou morta e minha vida, é o inferno que espera, uma pecadora como eu. Nunca fui de frequentar a igreja, muito menos meus pais, que nem em batismo acreditavam, pouco me lembro deles, desde os 7 criada por minha tia, após o acidente que os levou de mim.

Devaneio por boa parte da noite, pensamentos que pouco me lembro quando acordo no meio da noite. Com o corpo tomado de um gélido suor, muito gélido, isso sempre me assusta, por isso conservo em meu pulso, um daqueles relógios da moda, que mede os batimentos cardíacos. 145bpm, até que já tive piores. Isso me acalma, não por estar com os batimentos alterados, mas isso é um bom sinal, ainda estou viva, 145! Estou bem viva, vendo desse ponto de vista. Me levanto rapidamente, chego ao espelho que fica ao canto de meu quarto, meus olhos estão de uma vermelhidão sangrenta, me pergunto se é possível chorar durante o sono. Percebo que não são lagrimas que envermelharam meus olhos, SIM! FUMAÇA! Aquela maldita fumaça, que chega logo antes do meu despertar. Todas as noites são bem parecidas, demoro até acreditar que estou desperta e viva. Volto para minha cama e tento me lembrar do sonho, ainda vivido na minha memória. Só nos lembramos dos nossos sonhos, quando acordamos dez minutos após esse acabar, li sobre isso uma vez em um blog. Quem me dera ser dessas pessoas que nunca se lembra do que sonhou. Mas, a lembrança é minha grande companheira, esta ao meu lado, senão em pensamentos, nos pesadelos que me despertam na calada da noite.

Tudo se dá início, na noite de comemoração de minha décima oitava primavera. Engraçado, pois faço aniversario no primeiro dia em que a estação das flores começa. Nada acontece por coincidência nesse mundo, nem a criação dele se deu pelo acaso, como os cientistas tentam nos fazer acreditar. Estava eu, a chegar do mercado com as compras para o jantar dessa noite. Não seria nada especial, apenas minha tia e umas amigas mais intimas dela, todas companheiras do seu grupo de leitura dos sábados a noite. Com o passar dos anos, após a morte de meus pais, acostumei-me com todas elas, como se me fosse uma grande família de várias tias. Fiquei responsável por receber nossas visitantes, enquanto tia Clair cuidava do nosso jantar, muito barulho vinha da cozinha, que era dividida por uma porta da sala, até hoje não me acostumo com sua cantoria. Uma após a outra, todas foram achegando-se em nosso lar, oito mulheres ao total, a casa estava cheia. Grandes risadas tomavam conta do lugar, muita fumaça tomava conta do ambiente, todas elas fumante inveteradas. Acendo um incenso para disfarçar o odor de câncer que exala de suas baforadas. Tia Isabel, deveria ter uns 80 e lá vá pedrada, me oferece um drink que ela mesmo preparou antes de sair de casa. Com 18 anos já era eu uma mulher, insistiu a senhora, enquanto eu fitava a bebida de cor estranha, um verde musgo com pequenas bolhas que emergiam do fundo do cálice.

— Beba, tudo de uma vez menina boba!

Tia Clair, me educou para nunca desobedecer aos mais velhos, ainda mais uma de suas fiéis companheiras de leitura. Tampando o nariz, com uma das minhas mão, virei o cálice por goela baixo, como diriam os antigos. O sabor era ainda pior que a aparência, mas pelo menos não era difícil de engolir, bastante liquefeito era a bebida estranha que me ofereceram. Me sinto um pouco cansada, olho para minha poltrona predileta, preta com pequenas flores ao redor de sua almofada, decido me sentar um pouco. O dia fora longo, merecia um descanso, já que era meu aniversário. A porta sanfonada que dava para a cozinha se abre de supetão, era tia Clair, com uma bandeja de prata retangular, com alças em suas duas extremidades, rodeadas em seu entorno com flores silvestre que subiam em relevo, como se fossem sair para fora da superfície. Seus braços pareciam firmes, para uma mulher, já de idade avançada. Demorei para perceber o que estava sobre a bandeja, seja pela fumaça que agora se adensava mais no ressinto ou pelo fato de me sentir um pouco estranha, após me sentar. A imagem que me vinha aos olhos, era de um bebê despido e pálido, sobre o brilho prateado do objeto que havia nos braços de Clair. Conseguindo virar apenas a cabeça para o lado, todos meus músculos agora enrijecidos, observo a velha tia Isabel caminhando até nossa estante de canto, aquela com duas grandes janela que se abrem para as laterais, de vidro muito bem limpos por minha pessoa, em seu interior o vasto conjunto literários das mais variadas obras escritas, nas quais minha tia e suas amigas, devotam todos os sábados de suas vidas. Duas gavetas de madeiras, com ornamentos em forma de cabeças de leões, ficam logo abaixo das prateleiras. Estas sempre chaveadas, até hoje nunca vira seu interior. De uma corrente ao redor de seu pescoço, Isabel puxa do interior do decote do seu vestido, uma chave muito pequena. Abrindo a fechadura com certa solenidade e respeito, ela retira lá de dentro, uma faca fina e comprida, em seu punhal uma pedra de rubi brilha singelamente. Uma lagrima que escorre por meu rosto, entrega que no íntimo de meu coração, já sei os próximos passos que se sucederão essa noite. Armada com a adaga em suas mãos, tia Isabel golpeia o pequeno bebê, que a pouco deveria ter vindo ao mundo, na altura do seu coração.

— Mesmo não sendo onipresente, aqui agora ele se torna presente! – A voz aguda, vem do outro extremo da sala, da jovem Marta, essa não muito mais velha que eu, nunca a enxerguei com uma tia, assim como as outras mais velhas.

— Que nossa pequena oferenda, nos faça merecedoras de seu abraço! – retribuem em coro as outras senhoras.

Minhas pálpebras estão muito pesadas, não consigo mais me manter acordada, temo que não abra meus olhos nunca mais, se adormecer.

— Se algo de bom nesse mundo existir, que me proteja quando eu cair! – repito sem muita confiança, antes de cair em sono profundo.

A cena em questão ainda é difícil de descrever. Com algumas palavras, posso tentar relatar tudo que vi, quando despertei. Encostada em uma pedra afastada, com uma fogueira quase extinta esta meu corpo em repouso, pouco consigo me mexer. Percebo que estou no meio do deserto, apesar de não existir nada assim, perto de minha casa, acredito que estou realmente acordada. Um pouco longe de meu lugar de despertar, esta um grupo de mulheres sentadas ao chão, uma ao lado da outra. A mais jovem, com o busto de fora, uma saia verde água, com pedaços de seda branca que lhe caiem a cintura. Uma moça de costa para mim, não consigo ao certo saber quem seria, um lenço cobre sua cabeça e ombros. Tia Clair, segura o bebê já desfalecido em seu braços, com a boca em seu peito desnudo, como se quisesse amamentá-lo. Outras mulheres sentadas mais ao seu lado, essas não consigo reconhecer muito bem, a noite se torna ainda mais densa, com o passar do tempo. O céu tomado com o azul escuro de uma noite sem luar. Ao fundo não sei dizer se o final de um poente ou uma lua que cairá do céu, uma luz resplandecerdes caída em algum lugar. Um tipo de ser voador, plaina ao longe, a meu ver poderiam ser algum bando de morcegos perdidos de suas cavernas. Tia Isabel, com seu vestido negro da cor da noite, essa de qualquer lugar eu reconheceria, um bebê está aposto em seus braços. A criança disfere largas gargalhadas para o ser ali presente, à sua frente. Me pergunto se não havia notado o ser ali antes, ou acabara de chegar como em uma passe de mágica. Sentado em uma pedra, com os braços estendidos em um grande gesto de abraço. No lugar onde deveriam estar suas mãos, saiam negros cascos rígidos como a rocha que solidifica nossa terra. Pelos, marrom escuros sobem por todo o seu corpo, ate chegar a uma espécie de cavanhaque que origina de onde seria um queixo. Olhos de um tom laranja, saltam da orbita ocular, ele fita a criança em sua frente com tamanha admiração, como a que um pai tem pelo seu filho. Uma coroa de lírios, circulam longos cifres que saem de seu crânio, tão compridos que quase alcançam os céus. Tia Isabel, apresenta, a criança como sendo sua filha Francisca ...

Todas as noites são iguais. Acordo assim como hoje, desperta em suor, tentando me esquecer dos pesadelos que tenho, mas sendo infortuna nessa missão. Já se passaram três meses, desde que os pesadelos começaram. Tia Clair, me tranquiliza que são apenas isso. Me jura com suas amigas, que adormeci no sofá e sonhei com tamanhas bobagens. Passos pesados, sobem as escadas, que dão para o meu quarto. Uma luz acende por baixo da porta fechada. Duas batidas fortes na porta e uma voz pergunta...

— Outro pesadelo, minha pequena Francisca?

Demetrius de Oliveira
Enviado por Demetrius de Oliveira em 12/01/2020
Código do texto: T6840082
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